quarta-feira, 15 de julho de 2009

Gestos e infância

“Nunca podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade.”[1] Assim começa Walter Benjamin o texto O jogo das letras, que aparece no seu Infância em Berlim por volta de 1900. O momento do qual Benjamin sente saudades – e diz, é o que lhe causa mais saudades – é aquele de sua alfabetização, de quando brincava com os então muito comuns jogos de letras. Aprender a compor palavras, operação factual dos jogos de letras, é para a criança um momento imaginativo por excelência. Isto é, o jogo das letras se dá como uma espécie de tábua de montagem: uma série de plaquetinhas, na qual vem individualmente gravadas cada uma das letras do alfabeto, é disposta de modo que a criança possa, montando-as em sequências, aprender a ler. O gesto infantil diante das letras (todo o alfabeto que compõe o jogo de letras e que em si, tal qual apresentado à criança, não tem sentido) é o de organizá-las dando-lhes um sentido, isto é, formando palavras. É justamente disso que Benjamin tem saudade: o gesto de apreender a ler. Na saudade despertada pelo jogo das letras Benjamin pretende reencontrar sua infância na integralidade. Porém, isso nunca se dará: “... posso sonhar como no passado aprendi a andar. Mas isso de nada adianta. Hoje sei andar; porém, nunca mais poderei tornar a aprendê-lo.”[2]
A repetição, o retorno daquela imagem da criança aprendiz – o seu retorno em sonho – não é alcançável na sua total integridade por Benjamin. A experiência do aprendizado, ainda que irrepetível na sua configuração imagético-memorial (como artefato – imago – imobilizado por uma intencionalidade rememorativa) deixa um rastro que, efetivamente, não compete à memória voluntária, mas permanece como um gesto. O aprendizado, a iniciação da criança no mundo da escritura – com jogos de letras, cartas etc. – não é, nesse sentido, propriamente uma operação intelectual, mas um gesto.
Numa outra passagem, em Imagens do Pensamento, Benjamin conta um sonho. Encontrava-se ele diante de Notre-Dame. Porém, não havia nada de Notre-Dame ali à sua frente, senão uma grande construção de tijolos. “Mas eu permanecia lá, subjugado, justamente defronte de Notre-Dame. E o que me subjugava era a saudade. Saudade justamente de Paris na qual eu me encontrava aqui no sonho.”[3] Benjamin fala aqui de uma saudade que não impele à distância, à rememoração da imagem que faz falta. “Era a saudade ditosa que já atravessou o limiar da imagem e da posse e só conhece ainda a força do nome, do qual a coisa amada vive, se transforma, envelhece, rejuvenesce e, sem imagem, é o refúgio de todas as imagens.”[4] A saudade de algo que irremediavelmente não volta como tal é o ponto de passagem da imobilização (que não passa de um sonho) à mobilidade da imagem; é a transposição da imagem à pátria do gesto.[5]
Assim, podemos reler o gesto, tal qual sugere Agamben (que, a partir de Varrão, procura dar uma compreensão do gesto como um terceiro gênero de ação, ao lado do fazer e do agir (práxis)), como pura medialidade cuja destinação é a abertura de uma morada habitual (um éthos) para o homem:

O que caracteriza o gesto é que, nele, não se produz, nem se age, mas se assume e suporta. Isto é, o gesto abre a esfera do ethos como esfera mais própria do homem. (...) se o fazer é um meio em vista de um fim e a práxis é um fim sem meios, o gesto rompe a falsa alternativa entre fins e meios que paralisa a moral e apresenta meios que, como tais, se subtraem ao âmbito da medialidade, sem por isso tornarem-se fins. (...)O gesto é a exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal. Este faz aparecer o ser-num-meio do homem e, deste modo, abre para ele a dimensão ética.[6]

A ingenuidade infantil diante do jogo de letras, que à criança se apresenta como um arquivo legado em herança, seu gesto de montar palavras, traz em si um efeito crítico e político: expõe, sem palavras, a palavra humana. Não se trata da compreensão causal do aprendizado infantil (o jogo de letras como meio para a alfabetização – um fazer –, ou ainda como atividade lúdica – uma práxis), mas de tentar ver na montagem das palavras a abertura de uma sempre nova possibilidade.
Essa correspondência encontrada pela criança entre as letras na formação das palavras, a ligação entre as letras (que, é preciso lembrar, é sempre nebulosa para o infante), esconde, mais do que uma simples atividade de pensamento, uma atividade imaginativa. Ao discorrer sobre quatro fotografias feitas clandestinamente por internos de Auschwitz em agosto de 1944, em Images Malgré Tout, Georges Didi-Huberman, para rebater críticas a ele feitas por Gérard Wajcman, lança mão de uma compreensão da imaginação (cuja origem remonta a Baudelaire e que, poderíamos complementar, é fruto do averroísmo) para justamente defender a possibilidade de leitura daquelas fotos (possibilidade atacada por Wajcman).

O valor do conhecimento não teria sido intrínseco a uma só imagem, não mais que a imaginação não consiste em regredir passivamente numa única imagem. Trata-se, ao contrário, de colocar os múltipos em movimento, de nada isolar, de fazer surgir os hiatos e as analogias, as indeterminações e as sobredeterminações na obra.[7]

A montagem das imagens, para a qual Didi-Huberman aqui chama a atenção, é, portanto, um gesto que libera as imagens de sua prisão nos arquivos mnemônicos e lhes dá um sentido histórico. É por meio de uma operação crítica (é tarefa do crítico) que uma construção de sentidos da e para uma leitura da história pode, desse modo, aparecer. Assim, imaginar, tanto para a criança quanto para o crítico, pode ser a porta de acesso ao gesto e à liberação da imagem de sua imobilidade memorial. [8]

A imaginação não é o abandono às miragens de um único reflexo, como frequentemente se crê, mas a construção e montagem de formas plurais colocadas em correspondências: eis porque, longe de ser um privilégio do artista, ou uma pura legitimação subjetivista, ela faz parte integrante do conhecimento no seu movimento mais fecundo, ainda que – já que – mais arriscado.[9]

A arriscada operação perpetrada pela imaginação leva ao extremo o desencanto das imagens. Não é possível falar em retrato imóvel, cujas características, uma vez definidas, seriam a causa do presente a partir do qual tais imagens são observadas (ou rememoradas). As imagens, tocadas pelo gesto crítico (ou infantil), não se cristalizam numa imago (isto é, um interdito passado intocável), mas enchem-se de movimento: são acessíveis apenas no presente. Um jogo de tempos entra em questão, jogo este que articula pendularmente a imagem e sua leitura. Como alerta Didi-Huberman ao analisar os procedimentos de montagem a partir de imagens de arquivos e de “imagens ficcionais” de Godard e de Lanzmann, respectivamente nos filmes Histoire(s) du cinéma e Shoah:

É suficiente não ser ingênuo nem com os arquivos, nem com a montagem que a partir deles se produz: os primeiros de forma alguma dão a verdade “totalmente crua” do passado e somente existem para se construção sobre o conjunto de questões pensadas que nós devemos lhes colocar; a segunda dá precisamente forma a esse conjunto de questões, daí sua importância – estética e epistemológica – crucial.[10]
A idéia de Didi-Huberman é justamente a de que, a partir do gesto crítico (colocar questões sobre as imagens passadas, os arquivos), é possível constatar a montagem da história, sua não totalidade, seu vazio constitutivo; ou seja, não há verdade absoluta na imagem do arquivo (essa é apenas imago, máscara mortuária), tampouco se encontrará verdade alguma pela montagem (que dá uma forma possível ao conjunto de arquivos). Essa dupla operação elíptica, a não-verdade absoluta da imagem e a não-verdade interveniente do crítico, potencializa aquele resquício (que Warburg denominaria Nachleben – sobrevivência) de energia que subjaz como o gesto a ser liberado em toda imagem. Esse desembaraçar da imagem em gesto suspende, portanto, a formação de uma imagem decidida e passa a expor o processo por meio do qual a própria imagem se forma. O gesto expõe a imagem como um processo de processo, isto é, como parte do fluxo do devir histórico; ou ainda, as imagens carregam-se de tempo.

[1] BENJAMIN, Walter. Infância em Berlim por volta de 1900, In: Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1995. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. pp. 104-105.
[2] Idem.
[3] BENJAMIN, Walter. Imagens do Pensamento. In.: Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1995. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. p. 209.
[4] Idem.
[5] AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o Gesto. In: Artefilosofia. nº4, jan. 2008. Ouro Preto: Tessitura, 2008. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. p.12. ”De fato, toda imagem é animada por uma polaridade antinômica: de um lado, ela é a reificação e a anulação de um gesto (é a imago como máscara de cera do morto ou como símbolo), do outro, ela conserva-lhe intacta a dynamis (como nos instantes de Muybridge ou em qualquer fotografia esportiva). A primeira corresponde à lembrança de que se apodera a memória voluntária, a segunda à imagem que lampeja na epifania da memória involuntária. E, enquanto a primeira vive num mágico isolamento, a segunda envia sempre para além de si mesma, para um todo do qual faz parte. Mesmo a Monalisa, mesmo Las Meninas podem ser vistas não como formas imóveis e eternas, mas como fragmentos de um gesto ou de fotogramas de um filme perdido, somente no qual readquiririam o seu verdadeiro sentido. Pois em toda imagem está sempre em ação uma espécie de ligatio, um poder paralisante que é preciso desencantar, e é como se de toda história da arte se elevasse um mudo chamado para a liberação da imagem no gesto.”
[6] Idem. pp. 12-13.
[7] DIDI-HUBERMAN, Georges. Images Malgré Tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. p. 151. “La valeur de connaissance ne saurait être intrinsèque à une seule image, pas plus que l´imagination ne consiste à s´involuer passivement dans une seule image. Il s´agit, au contraire, de mettre le multiple en mouvement, de ne rien isoler, de faire surgir les hiatus et les analogies, les indéterminations et les surdéterminations à l´oeuvre.”
[8] Cf. AGAMBEN, Giorgio. Ninfe. Torino: Bollati Boringhieri, 2007. p. 56. “La storia dell´umanità è sempre storia di fantasmi e di immagini, perché è nell´immaginazione che ha luogo la frattura fra l´individuale e l´impersonale, il molteplice e l´unico, il sensibile e l´intellegibile e, insieme, il compito della sua dialettica ricomposizione.”
[9] DIDI-HUBERMAN, Georges. Images Malgré Tout... p. 151. “L´imagination n´est pas abandon aux mirages d´un seul reflet, comme on le croit trop souvent, mais construction et montage de formes plurielles mises en correspondances: voilà pourquoi, loin d´être un privilège d´artiste ou une pure légitimation subjectiviste, elle fait partie integrante de la connaissance en son mouvement le plus fécond, quoique – parce que – le plus risqué.”
[10] Idem. p. 166. “Il suffit de n´être naïf ni avec les archives ni avec le montage qu´on en produit: les premières ne donnent en rien la vérité ‘tute crue’ du passe et n´existent qu´à se construire sur l´ensemble des questions réfléchies que nous devons leur poser; le second donne précisément forme à cet ensemble de questions, d´où son importance – esthétique et épistémologique – cruciale.”

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