segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Um buquê


Um buquê de rosas de papel com o perfume dela era um aconchego das noites de neblina. A umidade da nova casa, os dissabores e desencontros com a vizinhança irritavam-no profundamente, porém, bastava um aspirar do perfume para que caísse de novo nas graças do fantasma da memória. A vida, como o andar desajeitado de um coxo, passava torta por entre as paredes estreitas cheias de quadros dos passado. Era um surto? Eram devaneios decorrentes do uso de entorpecentes? Era o álcool vibrando saltitante dentro da alma lamuriosa? Não se sabe. No mesmo instante lembrava-se das angústias juvenis e sentia o que sentia outrora; ou era a falsificação da memória a construir sentimentos no passado, sem alvará de licença, sem permissão da secretaria de obras? Um falsear de vida que o irritava. Queria a verdade das coisas. "Por que não posso sentir o que senti, saber o que soube, entender o entendido?!?!" Eis as indagações mais que constantes dos momentos de fúria.
Sentado num banco de praça qualquer arrancava do bolso seu caderno de anotações e relia cada passagem que havia apenas escrito. Já não eram dele aquelas palavras, já não eram dele as assombrações de dois, três dias antes. Olhava um passante com seu cachorro vira-latas, sentia o perfume de uma dondoca que acabara de passar, ouvia o maldito sino da igreja que todos os dias o acordava e, ao mesmo tempo, já não olhava mais nada, não sentia mais nada, não ouvia mais nada. Imergia nas profundezas da falsidade, nas profundezas da memória. Não sabia muito bem qual era o mecanismo que abria a casquinha da ferida, mas, tão logo aberta, bastava um suspiro meio torto para mergulhar fundo nela. O pus e a fedentina da área recém visitada misturava-se imediatamente com o odor do sangue e vida. Era como se o rasgar da pele traumatizada fosse a porta de entrada para as zonas capciosas em que pouco conseguia discernir entre passado, presente e futuro. O anjo da história de Klee! Era essa a imagem desejada: caminhar para frente sem tirar os olhos do passado. Mas que tarefa infernal!!! As mentiras, as invencionices da memória mereciam ser consideradas da ordem do dia? Não lhe restavam alternativas, cada passo era carregado daquelas imagens.
A brisa úmida daquela tarde fria começava a atacar seus pulmões; o latido daquele vira-latas irritava-o; o perfume azedo da dondoca lhe enjoava; os sinos não se dobravam de modo algum... Era um embuste, uma cilada preparada por uma cabeça que não parava de pensar, como se isso lhe fosse uma sina. Cansado de reler o caderno, arrancou-lhe as páginas num ato que parecia indiferente, porém, como que a tentar apagar aquilo que via a todo instante. Inútil! As páginas faltantes eram agora as que ele sabia de cor. A ferida da memória funcionava como as chagas do cristo que estão sempre lá, a mostrar para os fiéis que a travessia para a outra vida deve ser dura. Mas o cansaço já o tomava e, finalmente, parecia que não pensava mais em nada. Voltou para casa, aspirou o perfume do buquê e dormiu um sono profundo.

Imagem: Pierre-Auguste Renoir. Nature morte avec fleurs. 1890.

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