quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Democracia finita e infinita - Partes I a V

1.

Há um sentido em dizer-se "democrata"? É claro que se pode e que se deve igualmente responder: "não, o menor sentido, já que não é mais possível dizer outra coisa" - ou: "sim, claro, já que por toda parte são ameaçadas a igualdade, a justiça e a liberdade - pelos plutocratas, pelos tecnocratas, pelos mafiocratas".

"Democracia" tornou-se um caso exemplar de insignificância: forçada a representar o todo da política virtuosa e a única maneira de garantir o bem comum, a palavra acabou por absorver e por dissolver todo caráter problemático, toda possibilidade de interrogação ou de pôr-se em questão. Ainda restam certas discussões marginais sobre as diferenças entre diversos sistemas ou diversas sensibilidades democráticas. "Democracia" quer, em suma, tudo dizer - política, ética, direito, civilização - e, portanto, não quer dizer nada.

Essa insignificância deve ser tomada muito seriamente, e é isto que faz o trabalho contemporâneo do pensamento, como testemunha a presente "investigação": não se contenta mais em deixar flutuar as intermitências do sentido comum. Exige-se fazer comparecer a insignificância democrática diante do tribunal da razão.

Recorro a essa metáfora kantiana pois penso que se trata de uma exigência igual à que se impunha a Kant de submeter ao discernimento crítico o sentido mesmo do "saber". No entanto, de qualquer modo que se pretenda fazer isso, não se pode mais anular agora, mesmo tendencialmente, a demarcação entre objeto de conhecimento para um sujeito e o saber - digamos "de sujeito sem objeto" para tornar abruptamente mais simples (e mesmo sem explicá-la em outra parte). Ou precisamos, num curto espaço de tempo, tornarmo-nos capazes de uma demarcação mais clara e consistente entre dois sentidos, dois valores e duas questões que cobrem indistintamente a insignificância confusa da palavra "democracia".

De um lado essa palavra designa - de um modo parecido, para girar a analogia, ao regime kantiano do "entendimento" - as condições das práticas possíveis de governo e de organização, desde que nenhum princípio transcendente não as possa regrar (compreendido que nem o "homem", nem o "direito" podem, a esse respeito, valer transcendência).

De outro lado, essa mesma palavra designa - sob um modo desta vez parecido ao regime da "razão" - a Ideia do homem e/ou aquela do mundo desde que, subtraída à toda aliança com um além-mundo, eles não postulem a respeito disso nada mais do que sua capacidade de serem por si próprios, sem se furtarem à sua imanência, sujeitos de uma transcendência incondicionada, isto é, capazes de implantar uma autonomia plena. (Como se deve imaginar, eu emprego o verbo "postular" segundo a analogia kantiana para designar o modo legítimo, em regime de finitude, isto é, de "morte de Deus", de uma abertura ao infinito.)

Essa segunda acepção certamente não pode ser dita "própria" e nenhum dicionário a autoriza. Mas mesmo não sendo um significado do termo, é a significação que se lhe acopla: a democracia promove e promete a liberdade de todo ser humano na igualdade de todos os seres humanos. Nesse sentido, a democracia moderna compromete o homem absolutamente, ontologicamente e não somente o "cidadão". Ou ainda, ela tendencialmente confunde os dois. Em todo caso, a democracia moderna corresponde muito mais do que a uma mutação política: a uma mutação de cultura ou de civilização tão profunda que ela tem valor antropológico, juntamente com a mutação técnica e econômica da qual ela é solidária. É por isso que o contrato de Rousseau não institui somente um corpo político: ele produz o homem mesmo, a humanidade do homem.

2.

Para que seja possível tal anfibologia de uma palavra, tinha de ser possível uma ambiguidade, ou uma confusão ou indistinção qualquer, sobre o registro de origem e de uso dessa palavra, a saber, o registro da política.

É como efeito de uma dualidade ou de uma duplicidade constitutivas da "política" que procede a ambivalência mal discernida e mal regrada da "democracia". A política jamais cessou, desde os Gregos até nossos dias, de se manter numa disposição dupla: de uma parte o único regramento da existência comum, de outra a assunção do sentido ou da verdade dessa existência. Às vezes a política destaca claramente sua esfera de ação e de pretensão, às vezes, ao contrário, ela a estende à totalidade da existência (portanto, indiscernivelmente comum e singular). Nada espantoso se as grandes tentativas de cumprimento político do século XX foram feitas sob o signo de tal assunção: que o ser comum venha como auto-ultrapassagem ou auto-sublimação das relações e das forças. Essa ultrapassagem ou essa sublimação que pôde ser nomeada "povo", "comunidade" ou ainda com outros nomes (dentre os quais a "república"), representou exatamente o desejo da política de ultrapassar a si mesma (necessariamente eliminando-se como esfera separada e, por exemplo, absolvendo e dissolvendo o Estado). É dessa auto-ultrapassagem - ou auto-sublimação - que procedem a ambivalência e a insignificância da "democracia".

3.

Tudo começa, na realidade, com a política mesmo. Pois é preciso lembrar que ela começou. Nós estamos frequentemente prontos a pensar que há desde sempre e por toda parte política. Mas não houve desde sempre política. Ela é, com a filosofia, uma invenção grega e, como a filosofia, é uma invenção resultante do fim das presenças divinas: cultos agrários e teocráticos. Do mesmo modo que o logos se edifica sobre a desqualificação do mythos, assim também a política se ordena sobre a desaparição do deus-rei.

A democracia é, portanto, o outro da teocracia. Isso quer dizer também que ela é o outro do direito dado: o direito, ela deve inventá-lo. Ela deve inventar a si própria. Contrariamente às imagens piedosas que amamos (e por causa delas...) fazer da democracia ateniense, a história dessas mostra-nos imediatamente e sempre dentro da inquietude dela mesma e das preocupações de sua reinvenção. Toda a questão de Sócrates a Platão se produz nesse contexto, como a busca pela logocracia que deveria colocar fim às falhas da democracia. Essa busca, no fundo, é perseguida até nossos dias por meio de muitas transformações dentre as quais a mais importante foi a tentativa de estabelecer com o Estado e sua soberania uma fundação decididamente autônoma do direito público.

Transferindo a soberania ao povo, a democracia moderna mostrou o que permanecia ainda (mal) dissimulado pela aparência de "direito divino" da monarquia (ao menos francesa): a saber, que a soberania não é fundada nem no logos, nem no mythos. Desde seu nascimento, a democracia (aquela de Rousseau) sabe-se infundada. É sua sorte e sua fraqueza: nós estamos no coração desse quiasma.

É preciso discernir para onde levam respectivamente a sorte a fraqueza.

4.

Comecemos, por isso, observando que a democracia não começou nem recomeçou sem ser acompanhada de "religião civil". Ou melhor: enquanto ela acreditou em si, soube também que lhe era preciso não certamente "secularizar" a teocracia, mas inventar o que poderia ser, em relação ao direito dado, um equivalente sem ser um sucedâneo ou um substituto: uma figura da doação que seria tutelar para a invenção sempre por fazer. Uma religião portanto que, sem fundar o direito, daria sua benção à sua criação política.

É assim que Atenas e Roma viveram religiões políticas e delas fizeram uso - as quais talvez jamais, ou raramente, tiveram toda a consistência tutelar esperada. Não é por acaso que Sócrates é condenado por impiedade em relação à religião civil, não é também por acaso que o cristianismo se separa ao por sua vez da religião civil de Roma (esta já enfraquecida, tendo cedido em relação a sua verdadeira fé, que era a República). A filosofia e o cristianismo acompanham a longa derrota da religião civil na Antiguidade. Quando o cristianismo desocupar o lugar, não justamente o de uma nova teocracia nem o de uma religião civil, mas o de uma partição ambígua - associação, competição, dissociação - entre o trono e o altar, a religião civil poderá procurar renascer no seu ensino (na América) ou no seu exemplo (na França), mas ela será votada a permanecer mais civil do que religiosa e, em todo caso, querendo-se discutir as palavras, mais política do que espiritual.

Dá-se uma atenção muito pequena à relação de Platão com a democracia. A reverência que se dá àquele que não é o primeiro dos filósofos somente no sentido cronológico, mas que tem um papel estritamente fundador, tem por efeito que no nosso habitus democrático nós admitimos como um simples desvio, como uma tendência aristocrática, sua hostilidade em relação ao regime ateniense tal como ele o conhecia. Mas a questão é muito mais importante: o que Platão reprova na democracia é o fato de ela não ser fundada em verdade, de não poder produzir os títulos de sua legitimidade primeira. A suspeita em relação aos deuses da cidade - e a suspeita em relação aos deuses e mitos em geral - abre a possibilidade de uma fundação em logos (em um logos cujo theos, no singular, torna-se um outro nome).

5.

Desde então, uma alternativa atravessa toda nossa história: ou bem a política é infundada e assim deve permanecer (com o direito), ou bem ela se dá um fundamento, uma "razão suficiente" leibniziana. No primeiro caso, ela se contenta com móveis faltas de razão(ões): a segurança, a proteção contra a natureza e contra a insociabilidade, a junção de interesses. No segundo caso, a razão ou Razão invocada - direito divino ou razão de Estado, mito nacional ou internacional - transforma inevitavelmente a assunção comum que ela anuncia em dominação e em opressão.

A sorte da ideia de "revolução" foi jogada na articulação entre os dois lados da alternativa. A democracia exige de fato uma revolução: fazer girar a base mesma da política. Ela deve expô-la à ausência de fundamento. Mas ela não permite, no entanto, que a revolução retorne ao ponto suposto de um fundamento. Revolução suspensa, portanto.

Nos últimos tempos vimos se desenvolver em muitos estilos pensamentos da revolução suspensa, pensamentos do momento insurrecional opostos à instalação - ao Estado - revolucionária, pensamentos da política como ato sempre renovado de uma revolta, crítica e subversão despojadas de pretensão fundadora, pensamentos do assédio continuo mais do que da destruição do Estado (isto é, literalmente, daquilo que está estabelecido, assegurado, e, assim, supostamente fundado na verdade). Esses pensamento são justos: eles assumem tudo isto, que "política" não legitima a assunção da humanidade, nem do mundo (já que, a partir de então, homem, natureza, universo são indissociáveis). É um passo necessário para a dissipação daquilo que foi uma grande ilusão da modernidade, aquela que há muito tempo foi expressa por meio do desejo de desaparecimento do Estado, isto é, da substituição do fundamento reconhecido não consistindo de um fundamento em verdade - a verdade mesma residindo na projeção democrática do homem (e do mundo) igual, justo, fraterno e subtraído ao poder.

Torna-se necessário dar um passo a mais: pensar como a política infundada e, de alguma maneira, em estado de revolução permanente (se é possível desviar assim esse sintagma...) tem por tarefa permitir a abertura de esferas que lhe são por direito estrangeiras e que são, por sua parte, as esferas de verdade ou do sentido: aquelas que designam mais ou menos os nomes da "arte", do "pensamento", do "amor", do "desejo" ou todas as outras designações possíveis da relação ao infinito - ou, para melhor dizer, da relação infinita.

Pensar a heterogeneidade dessas esferas em relação à esfera propriamente política é uma necessidade política. Ou a "democracia" - isso que nós cada vez mais temos o hábito de nomear assim - tende, ao contrário, segundo esse hábito, a apresentar uma homogeneidade dessas esferas ou dessas ordens. Mesmo se ela permanece vaga e confusa, essa homogeneidade presumida nos desvia do caminho.


Jean-Luc Nancy. La démocratie finie et infinie. In.: Démocratie, dans quel état? Paris: La fabrique, 2009. pp. 77-82. (trad.: Vinícius Nicastro Honesko)
Pretendo traduzir e postar a parte final do texto (VI - X) nos próximos dias.

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