quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Praeludioum


Domingo de manhã e o começo da Suíte para Cello em Sol maior de Bach lançou objetos passados de novo à luz do dia. O famoso Praeludioum tinha um sabor bitter sweet (Richard Ashcroft disse há uns 14 anos que that's life) e a sinestesia era a marca do dia que estava por vir. Todo o traquejo que certos convívios requisitavam parecia-lhe faltar e a vontade de isolamento surgia às vezes como uma saída (covarde, ele sabia). A coragem do contato, da exposição era uma aspiração, uma vontade de sair do Praeludioum da vida para entrar curioso num novo mundo, este repleto de coisas de outra ordem ou de outro caos. Tudo era uma questão de personagens, mas sabia que o perecimento do molde no qual cunhara suas mil faces não implicava a morte das palavras já proferidas por qualquer um dos seus eus. Estas, as palavras de outrora, eram ecos e, como tais, continuam a reverberar ainda que já muito distantes da boca que as pronunciara.
Como os objetos empoeirados que retirara dos cantos sujas da memória podiam querer outro estatuto? Como queriam sair à luz e novamente darem seu corpo à reflexão dos fótons? Como as palavras queriam ser coisas? Como fazer coisas com as palavras (ah, malditos speech acts)? Mas era tudo distante da questão central: por que tanta insegurança? A loucura, os despojos de outros estados, a cerveja que o deixava ébrio, nada respondia à pergunta sobre seu momento. Era um momento bom ou ruim? Não havia como responder; não há senão momentos e o juízo de valor que fazemos sobre eles é sempre posterior, atrasado, aliás, um outro momento. Lançar-se na vida talvez fosse uma resposta. Mas de que modo? Em que frequência? Não havia como pegar um "bonde chamado desejo", mas só restar imóvel no cone de sombras da vida mesma; sentir o pulsar que se irradia com o batimento cardíaco, sentir o sangue correndo quente pelas artérias... talvez este seja o bom momento.
Ouvir o som de Bach parecia um amálgama de sentimentos: já não hesitava e sabia que a fragilidade do momento só podia ser do momento e, portanto, eterna. Como conchas que são agrupadas por uma criança que brinca à beira da praia, sua vida era agora um amontoado de instantes; mas onde estava a criança para brincar com eles? Talvez a força da precisão técnica imprimida por Starker no seu cello pudesse dar novo alento para o dia; talvez o gosto dessas suítes (acabou escutando as 6) fosse uma intrusão sinestésica demasiadamente insuportável, mas à qual, tal como à vida, era necessário fazer girar novos sentidos...

Nenhum comentário: