segunda-feira, 28 de março de 2011

A morte heróica entre os gregos (II)


No início da Ilíada, os reis estão reunidos, cada um com seu exército, os "basiléis", e Agamenón, o rei dos reis, "basiléutatos", goza da maior honra no plano social. Agamenón deve entregar sua própria filha ao sacerdote de Apolo. Em sua troca, toma a jovem Briseida, que havia sido concedida a Aquiles como sua parte de honra. Quando se distribui o butim, começa-se a dar a cada um uma parte igual a dos demais; posteriormente, a elite recebe uma parte de honra, um "geras" especial. Briseida representava para Aquiles o sinal que todo o exército grego lhe outorgava para mostrar que ele não era como os outros, mas um homem que podia em si mudar completamente a face da guerra, pois dava-lhe um sentido particular devido a sua coragem, a seu ímpeto. É este "geras" o que Agamenón arrebata de Aquiles. Quando o exército se reúne, forma um círculo, deixando livre um espaço no centro, uma espécie de ágora, onde podem falar todos os reis. Aquiles chega até lá e menospreza Agamenón: "Que direito tinhas de tirá-la de mim? É uma grande ofensa que me fizeste! Não és nada mais do que um covarde. Tú, que te refugias nas últimas fileiras, que não sabe o que é, no corpo a corpo com os inimigos, comprometer a "psyché"'. Se pode ver claramente que nesta cena se opõem, por um lado, as honrarias ligada ao mérito e à virtude particular de um combatente e, por outro, as honrarias ordinárias, sociais. Agamenón é o rei dos reis, mas ao mesmo tempo as honrarias que recebe são incomensuravelmente menores que as de Aquiles. É uma verdadeira inversão de nível social, e Aquiles o faz compreender isso.

Quando, mais tarde, Agamenón tenta se reconciliar com Aquiles, que havia se retirado do combate - contudo, sem ele, o exército aqueu não pode enfrentar os troianos -, o rei envia até ele uma delegação. Esta delegação explica que Agamenón reconhece seus erros: devolve-lhe Briseida, já que não havia tocado nela; oferece-lhe todo tipo de riquezas, benfeitorias, animais, parte de suas terras, e inclusive uma de suas filhas, sem lhe exigir dote. Porém Aquiles recusa tudo isso pois, neste contexto de honra heróica que leva a uma morte heróica, encontra-se sempre frente ao "tudo ou nada". Na vida social existem gradações, contrabalanceia-se, contemporiza-se, consideram-se os assuntos, aqui, em contraposição, a ofensa que lhe foi infligida não pode ser reparada. Aquiles explica que pouco lhe importa as honrarias ordinárias que os gregos a ele tributam, pouco lhe importa todos os presentes que lhe oferecem, pois existem dois tipos de bens: os que se intercambiam, ganham-se ou se perdem, e que podem ser trocados quando perdidos; e os bens essenciais desde a perspectiva dos valores humanos - o "tudo ou nada", novamente - aquilo que, quando se perde, não se recupera jamais, ou seja, a vida, a si mesmo. Unicamente isso, em cada momento decisivo, não é comprável nem intercambiável, apenas isso se perde de maneira definitiva. Eis aqui a honra heróica, que se inscreve em uma categoria diferente da mera honra ordinária.

Quando se joga deste modo o "tudo ou nada", pode-se estar certo de morrer um dia ou outro, porque nenhum homem é imortal, nem mesmo Aquiles. Quem vive sua existência - sua própria pessoa - deste modo, que consiste em escolher colocar tudo em jogo, a si mesmo, a fim de mostrar-se e demonstrar-se, de provar que se é em verdade um homem sem acomodação, sem covardia, é certo que morrerá jovem. E esta morte não é como a dos outros. Assim como há uma honra heróica que não é a honra ordinária, também há uma morte heróica que não é uma morte ordinária. Por quê? Por que o jovem na flor da sua idade e beleza que cai em combate não verá seu corpo se desvanecer e amolecer, aquilo que a idade provoca em todas as criaturas mortais. Assim é a lei do gênero humano: cada um nasce, cresce, converte-se em uma criança, em um jovem, em um adulto, e depois, pouco a pouco, contrariamente ao que se passa entre os deuses, converte-se em um velho fatigado que coxeia e que, por conseguinte, está a ponto de se despedir, e é como se não tivesse vivido. Enquanto que, se este morre no momento em que demonstrou o que pôde fazer na beleza de sua juventude, sua existência escapará da usura do tempo, da mortalidade ordinária. Na Ilíada, no momento em que Heitor, perseguido por Aquiles, vai enfrentar o herói, Príamo, desde o alto das muralhas, roga a seu filho que fuja, que passe a porta de entrada para se refugiar no interior dos muros. Diz-lhe mais ou menos estas palavras: "Para o jovem guerreiro que cai no campo de batalha, tudo é belo, tudo é conveniente, 'panta kalá, pant'epéoiken', mas a morte para um velho como eu, Príamo, se você sucumbe, será horrível". Príamo alude que Heitor ficará coberto de sangue e os cachorros, que em outro tempo ele alimentava nos pátios do palácio, virão devorar seus genitais. Tirteo, em Esparta, retomará a mesma imagem afirmando que, para o jovem que cai na primeira fileira na flor de sua juventude, ao arriscar sua própria vida e sua pessoa, "tudo é formoso, tudo convém", os homens o admiram, as mulheres o veneram e as futuras gerações continuarão admirando-o. Não deixará, por intermédio desta morte - que, se ao menos não a escolheu, aceitou-a - de ser o que era em vida, ou seja, um homem jovem no esplendor de sua força e beleza. Isso é o que se dirá inclusive em seu funeral. Por quê?

Na Grécia do séc. IX (a.C.) não existe ainda uma escrita desenvolvida. Contudo, toda sociedade deve ter raízes, um passado para manter sua identidade. Para os gregos deste período, que não possuíam escritos nem arquivos, quando não existia nenhuma declaração durante um matrimônio ou um nascimento, a memória social estava assegurada por uma pessoa, o "mnemon", aquele que se recorda, que deve armazenar em sua cabeça todo o saber que permita a cada um conhecer sua identidade: quem é seu pai, que são seus avós, e muitos mais, as genealogias, mas também os limites de seu terreno. Ao mesmo tempo, é preciso que esse grupo tenha em comum um certo número de coisas conhecidas, de valores, de imagens do mundo, de concepções de si, de tradições intelectuais e espirituais: são os aedos, os cantores, que possuem o encargo disso. Eles estão inspirados por uma deusa que os gregos chamavam de "Mnemosyne", Memória. A memória está divinizada na medida em que não existem escritos para levar ao registro o que os antropólogos denominam de "saber compartilhado".

Esta memória é o canto dos poetas, a tradição da Ilíada e da Odisséia, dos Cantos Cíprios e inclusive de muitas outras histórias. É o que constitui as raízes do grupo e o que, nos séculos V, IV e também no período helenístico, as crianças da Grécia aprendem de memória e conhecem. Neste sentido, a Ilíada, que para nós é um simples texto, em um momento dado foi este canto tradicional que, de geração em geração, os poetas narravam, repetiam e modificavam a cada vez, retomando o que se lhes havia ensinado e improvisando para um público novo. Tudo isso formava o fundo comum intelectual e espiritual dos gregos, que de certa forma era mais vivo, mais atual que eles próprios. No marco desta civilização grega, que mudou muito desde a época homérica, Aquiles é, mais do que nenhum outro, um personagem sempre presente em cada geração; não há grego, quer seja Platão, Xenofonte ou Alcebíades, que não o tenha a seu lado.

A morte heróica não só proporciona uma honra incomparável, ela também dá conta do paradoxo de uma criatura humana mortal, efêmera, condenada a um ciclo que caracteriza o homem em oposição aos deuses: a passagem em estágios até a morte lamentável. Aquiles escapa de tudo isso. Neste mundo grego não existe a idéia, própria de nossa civilização judeu-cristã, de que em cada um de nós haveria uma parte que seria "nós mesmos" (a interioridade), a alma, o espírito imortal, individualizado e inclusive mais que individualizado, pois finalmente, com a ressurreição da carne, nossos corpos devem voltar e, portanto, estamos condenados a uma imortalidade bem-aventurada. Para os gregos, isso não existe. Pelo contrário, somos um corpo; a alma está composta por sopros inconsistentes e quando morremos, passamos para o Hades, não somos nada.


VERNANT, Jean-Pierre. La traversée des frontières. Entre mythe et politique. Éd. du Seuil, 2004. (Retradução caseira a partir da edição da Fondo de Cultura Económica). Partes III e IV em próximas postagens.
Imagem: COYPEL, Charles-Antoine. Fury of Achilles. 1737.

Nenhum comentário: