terça-feira, 29 de março de 2011

Nota liminar sobre o conceito de democracia



Todo discurso sobre o termo "democracia" está hoje falsificado por uma ambiguidade preliminar que condena ao mal entendido aqueles que o empregam. De que se fala quando se fala de democracia? Qual racionalidade, com efeito, esse termo revela? Uma observação um pouco atenta mostra que aqueles que debatem hoje sobre a democracia entendem esse termo tanto como uma forma de constituição do corpo político, como uma técnica de governo. Portanto, o termo remete, ao mesmo tempo, à conceitualização do direito público e àquela da prática administrativa: designa tanto a forma de legitimação do poder quanto as modalidades de seu exercício. Como no discurso político contemporâneo fica evidente que esse termo relaciona-se com muito mais frequência a uma técnica de governo - que, enquanto tal, não tem nada de particularmente tranquilizadora -, compreendemos o mal estar de quem continua a empregá-lo de boa fé no primeiro sentido.
Que o entrelaçamento dessas duas conceitualizações - jurídico-política de um lado, econômico-gestional de outro - tenha raízes profundas e não seja fácil desembaraçá-las pode ser visto de maneira clara no seguinte exemplo. Quando, nos clássicos do pensamento político grego, encontramos a palavra politeia (com frequência utilizada numa discussão sobre as diferentes formas de politeia: monarquia, oligarquia, democracia, assim como suas parekbaseis ou desvios), vemos que os tradutores traduzem essa palavra tanto como "constituição" quanto por "governo". Assim, a passagem de A Constituição de Atenas (cap. XXVII) em que Aristóteles descreve a "demagogia" de Péricles: "démotikóteran synebé genesthai tén politeian" é ao inglês traduzida: "the constitution became still more democratic"; pouco depois, Aristóteles acrescenta que a multidão "apasan tén politeian mallon agein eis hautous", e o trecho é traduzido pelo mesmo tradutor como "brought all the government more into their hands" (é evidente que traduzir como brought all the constitution, como a coerência exigiria, teria sido problemático).
De onde vem essa verdadeira "anfibologia", essa ambiguidade do conceito político fundamental, pela qual ele se apresenta tanto como constituição quanto como governo? Será suficiente assinalar aqui, na história do pensamento político ocidental, duas passagens nas quais essa ambiguidade se manifesta com uma particular evidência. A primeira se encontra na Política (1279a 25 seq.), quando Aristóteles declara sua intenção de contar e de estudar as diferentes formas de constituição (politeiai): "Já que politeia e politeuma significam a mesma coisa e que politeuma é o poder supremo (kyrion) das cidades, é necessário que o poder supremo seja o próprio de um só, de alguns ou do grande número..." As traduções correntes trazem o trecho da seguinte forma: "Já que constituição e governo significam a mesma coisa e que o governo é o poder supremo do Estado [...]." Ainda que uma tradução mais fiel tivesse que conservar a proximidade dos dois termos politeia (a atividade política) e politeuma (a coisa política que daquela atividade resulta), fica claro que a tentativa de Aristóteles para reduzir a anfibologia por meio dessa figura que ele chama kyrion é o problema essencial dessa passagem. Para empregar - não sem forçar um pouco o traçado - uma terminologia moderna, poder constituinte (politeia) e poder constituído (politeuma) aqui são ligados na forma de um poder soberano (kyrion), que aqui aparece como aquilo que mantém juntas as duas faces da política. Mas, por que a política é cindida e em virtude de que o kyrion articula, suturando-a, essa cisão?
A segunda passagem encontra-se em O Contrato Social. No seu curso de 1977-1978, "Segurança, território, população", Foucault já havia mostrado que Rousseau colocava-se o problema de conciliar uma terminologia jurídico-constitucional ("contrato", "vontade geral", "soberania") com uma "arte de governar". Mas, na perspectiva que aqui nos interessa, a distinção e a articulação entre soberania e governo, que está na base do pensamento político de Rousseau, é decisiva. "Eu rogo aos meus leitores", escreve ele no seu artigo sobre a "Economia política", "que distingam bem a economia pública, a respeito da qual falo e que chamo governo, da autoridade suprema que chamo soberania; distinção consistente no fato de que uma tem o direito legislativo [...] enquanto a outra tem apenas a potência executiva." Em O Contrato Social a distinção é reafirmada como articulação entre vontade geral e poder legislativo de um lado, e governo e poder executivo de outro. Com efeito, para Rousseau trata-se de, ao mesmo tempo, distinguir e de entrelaçar esses dois elementos (é por isso que no mesmo momento em que ele enuncia a distinção deve com força negar que ela seja uma divisão do soberano). Como em Aristóteles a soberania, o kyrion, é ao mesmo tempo um dos termos da distinção e aquilo que liga em um nó indissolúvel constituição e governo.
Se hoje assistimos à dominação esmagadora do governo e da economia sobre uma soberania popular que foi progressivamente esvaziada de todo sentido, talvez seja porque as democracias ocidentais pagam agora o preço de uma herança filosófica que assumiram sem benefício de inventário. O mal entendido que consiste em conceber o governo como simples poder executivo é um dos erros mais cheios de consequências na história da política ocidental. Isso fez com que a reflexão política da modernidade vagasse atrás de abstrações vazias como a lei, a vontade geral e a soberania popular, deixando sem resposta o problema, sob qualquer ponto de vista decisivo, do governo e de sua articulação com o soberano. Tentei mostrar em um livro recente que o mistério central da política não é a soberania, mas o governo; não é Deus, mas o anjo; não é o rei, mas o ministro; não é a lei, mas a polícia - ou, de modo mais preciso, a dupla máquina governamental que eles formam e mantêm em movimento.
O sistema político ocidental resulta da ligação de dois elementos heterogêneos, os quais se legitimam e dão um ao outro consistência: uma racionalidade político-jurídica e uma racionalidade econômico-governamental, uma "forma de constituição" e uma "forma de governo". Por que a politeia está presa nessa ambiguidade? O que dá ao soberano (ao kyrion) o poder de assumir e de garantir sua união legítima? Não se trataria de uma ficção destinada a dissimular o fato de que o centro da máquina está vazio e de que não há entre os dois elementos e as duas racionalidades nenhuma articulação possível? E não seria a partir de sua desarticulação que, com efeito, poderia surgir esse ingovernável, que é ao mesmo tempo a fonte e o ponto de fuga de toda política?
É provável que enquanto o pensamento não se decida a enfrentar esse entrelaçamento e sua anfibologia toda discussão sobre a democracia - como forma de constituição e como técnica de governo - corra o risco de cair no palavrório.

Giorgio Agamben. Note liminaire sur le concept de démocratie. In.: Démocratie, dans quel état? Paris: La Fabrique, 2009- pp. 9-13. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)

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