terça-feira, 29 de março de 2011

Orfeu (II)



na fumaça do meu cachimbo redemoinham
os mares de aqui e de acolá
as peripécias de poemas que nunca escreverei
o perfume das mulheres que não conheci
as reminiscências das milhares de vidas que não tive
a liturgia mambembe do juízo final de uma briga de facas
na bodega borgeana de minha imaginação bêbada

mas elas passam apenas por esta escrivanhinha desgastada
tamboliram minha preguiça, meu ódio à vida de reuniões
com os de lá, os da superfície, os homens opacos dos autos-de-fé
e dos automóveis, dos parques temáticos, dos jornais dominicais

mas é certo que esta opacidade está em mim, em meu platonismo às avessas
habitante deliberado da escuridão e da fumaça de pensamentos agrestes

Volto a olhar todos os dias para Eurídice
e sob meus ombros vejo apenas o chão poeirento deste Hades de apartamento.


Imagem: 1886. Van Gogh Museum, Amsterdam. 

3 comentários:

Piter disse...

que posso dizer?!
Fatos inenarráveis, vomitados quase que em vão, não fossem os corações dos outros poetas... e que bom que não são muitos....

Jnf disse...

poesia minoritária - como a de um poeta pescador dos campos gerais...salve P. Zander!!

Anônimo disse...

Há uma gota de sangue em cada poema...