quarta-feira, 16 de março de 2011

Pequenas confusões


Como em passos faltosos caminhei durante uma manhã luminosa e azul. Era um dia banal no qual os compromissos eram quase escassos, senão os que a minha cabeça criava. Estes sim, eram tantos. A caminhada se insinuara em trajetos retos e longilíneos, mas os pensamentos eram tortuosos e despedaçados. A ambiguidade desse dia, o jogo de opostos, era um reflexo patente do momento. O sonho da noite tinha trazido para o porto da consciência várias imagens que latejavam, doíam e quase como que rompiam minha carne. Qual a razão disso? Que razão? Sentia os músculos de minhas pernas em extrema tensão; meu corpo era carregado, a reta se alongava cada vez mais, a visão do horizonte povoado por gentes outras era metodicamente descortinada pelas minhas retinas cansadas (as pedras estavam por tudo, caro Drummond). Descia em direção ao cemitério, onde eu deveria encontrar meus pedaços já sepultados, e eram tantos...
Continuava na reta límpida e clara, mas com as pedras imaginadas que pesavam tanto (Sísifo, Sísifo, por que te incorporei?) ao ponto de eu querer desistir. Mas a vontade de encontrar os meus ossos naquele canto onde jaziam os meus era maior. Talvez a montanha poderia ser levada nas costas; talvez o seu toque carinhoso que sentira no meu rosto durante o sonho (o qual me despertou no meio da noite, como às vezes costumava acontecer) pudesse ser combustível para aquela conversa que eu haveria de ter comigo mesmo e com os meus pedaços já sepultados.
É muito fácil se movimentar nesta cidade: basta seguir o traçado dos ingleses (os quais, talvez por alguma aposta, arquitetaram um grande tabuleiro onde as peças futuras - dentre as quais, eu mesmo - poderiam fazer seus jogos de amor e ódio). E em tal traçado continuava em minha linha, agora agoniado com a entrada no campo dos mortos. Por ali já passara incontáveis vezes. Conhecia todos os cantos, sabia onde estavam os mais antigos, quais eram as nacionalidades de origem de cada família, onde estavam os conhecidos em vida... Era como entrar num grande fichário onde as gavetas estavam todas abertas com os ofícios, certidões, documentos, designações à mostra. Porém, chegar perto dos meus pedaços era mais difícil. Algo como uma dor de olhar-se no espelho e sentir o peso da própria imagem como um outro eu; ou ainda a sensação inusitada de sentir-se em falta consigo mesmo (como um cão a correr atrás da própria cauda).
Quando passava por ali gostava de inventar histórias: será que o senhor que habita aquela tumba adornada em granito com a grande estátua do Cristo que bate à porta conhecia aquele outro, da lápide simples, com uma foto que exibia a fragilidade de uma vida passada? Será que este fora funcionário daquele? Como chegaram aqui? E assim montava o desenho do meu jogo de xadrez. Mas eu precisava voltar para o canto dos meus ossos; era meu desejo não me enveredar nas histórias dos outros (que, de fato, eram apenas minhas criações... mas, quais histórias alheias não são criações nossas?). Queria olhar para os meus pedaços. Aliás, era numa autobiografia despedaçada que pensava agora. Os passos em falso, a sensação de vácuo entre as minhas pernas e o chão, tudo parecia ser um grande jogo entre a retidão desejada (e, por sorte - penso que essa palavra deveria ser dita em francês: chance -, malfadada) e a sinuosidade dos desejos.
Eu sentia, sentia profundamente seus abraços - daqueles pequenos braços que mal me enlaçavam - no momento em que eu não mais a encontrava, e isso era estranho; eu via seu corpo frágil ainda iluminado sutilmente pela luz da manhã (e seu perfume de baunilha); eu me deixava levar pelas curvas, ainda que as retas é que estavam em minha frente; eu achei-me com os meus e, como num degelo ártico, senti o movimento das águas subterrâneas primeiro e, depois, vi o fragmentar-se da crosta; vi que a vida só pode dar-se em vida... E por que via? (via e vida... a força da pedra "d" no meio do mundo...) Ah, minhas retinas cansadas, ah pedras do caminho, ah falsos encontros (e esperava que Vinícius me dissesse ao pé do ouvido: "embora haja tanto desencontro pela vida...")... Onde eu estava? Por que sabia onde estavam mas não encontrava meus pedaços? Talvez não fosse o caso de tentar encontrá-los ou de buscar na morte algum traço do meu círculo vital; talvez esses pedaços meus e de outros fossem agora tão somente ruínas a serem apenas tocadas de leve antes de uma possível (??) reconstrução.
Confuso viro as costas para meus encontros, fecho-me na redoma em que finjo a verdade das coisas. Mas é hora de talvez saber que a verdade do fingimento está no ato de fingir e que as coisas não carregam nenhuma verdade. A ficção aporta na realidade, a verdade das coisas é um vapor cru que sai daqueles corpos mortos; não mais respiro, escrevo sem mais pensar em quê... talvez um pouco confuso...

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