terça-feira, 26 de abril de 2011

Notas sobre o local


Tudo o que para nós hoje compõe uma paisagem aceitável é o fruto de violências sanguinárias e de conflitos de uma rara brutalidade.
Pode-se assim resumir o que o governo demokrático quer nos fazer esquecer. Esquecer que a periferia devorou o campo, que a fábrica devorou a periferia, que a metrópole tentacular, ensurdecedora e sem descanso devorou tudo.
Constatar isso não significa lamentar. Constatar significa: apreender as possibilidades. No passado, no presente.
O território quadriculado no qual corre nosso quotidiano, entre o supermercado e os códigos digitais das portas de entrada, entre as luzes da sinalização e as passagens de pedestres, constitui-nos. Nós somos, desse modo, habitados pelo espaço no qual vivemos. E mais do que tudo ou quase tudo, agora ele funciona como mensagem subliminar. Nós não fazemos certas coisas em certos lugares porque isso não se faz.
O mobiliário urbano, por exemplo, não tem quase nenhuma utilidade - quantas vezes não nos surpreendemos pensando sobre quem poderia ocupar os bancos de uma nova praça sem sucumbir ao mais violento desespero? -; ele tem um sentido e uma função, e esse sentido e essa função são dissuasivas: sua missão é nos lembrar de que "você não está em sua casa a não ser em sua casa, ou onde você paga, ou onde você é vigiado".

O mundo se globaliza, mas ele se estreita,
A paisagem física que nós atravessamos todos os dias em alta velocidade (de carro, nos transportes públicos, a pé, com pressa) tem efetivamente um caráter irreal porque ninguém aí vive nada nem pode nada aí viver. É uma espécie de micro-deserto no qual estamos como exilados, entre uma propriedade privada e outra, entre uma obrigação e outra.
Muito mais acolhedora nos parece a paisagem virtual. A tela de cristal líquido do computador, a navegação na Internet, os universos televisivos ou o playstation nos são infinitamente mais familiares do que as ruas do nosso bairro, povoadas durante a noite pela luz lunar da iluminação pública e pelas portas metálicas das lojas fechadas.
O que se opõe ao local não é o global, mas o virtual.

O global opõe-se tão pouco ao local pois é ele quem o produz. O global designa somente certa distribuição de diferenças a partir de uma norma que as homogeniza. O folclore é o efeito do cosmopolitismo. Se nós não soubéssemos que o local é local, ele seria para nós uma pequena globalidade. O local aparece na medida em que o global se torna possível e necessário. Ir trabalhar, fazer suas compras, viajar para longe de casa, é isso que faz do local o local, este que, de outro modo, seria modestamente o lugar onde vivemos.
Desse modo, falando claramente, nós não vivemos em nenhuma parte.
Nossa existência é somente organizada segundo os horários e topologias dos hábitos personalizados.

Mas não é tudo, quer-SE-ia nos fazer viver hoje no virtual, definitivamente deportados. Aí se recomporia numa curiosa unidade de não-tempo e de não-lugar a vida que SE nos deseja. O virtual, diz uma publicidade para Internet, é "o lugar onde você pode fazer tudo o que você não pode fazer na realidade". Mas aí onde "tudo é permitido" está o mecanismo de passagem da potência ao ato sob vigia. Em outros termos: o virtual é o endereço em que os possíveis jamais se tornam reais e permanecem indefinidamente no estado de virtualidade. Aqui a prevenção ganhou da intervenção: se tudo é possível no virtual é porque o dispositivo assegura que tudo permanece imutável na nossa vida real.

Logo, diz-SE, nós tele-trabalharemos e tele-consumiremos. Na televida nós seremos mais atingidos pelo doloroso sentimento de aborto dos possíveis que ainda habitam o espaço público, a cada nova perspectiva e tão logo abandonada. O desconforto de estar imerso entre nossos contemporâneos frequentemente desconhecidos, nas ruas ou em qualquer outra parte, será abolido. O local, expulso do global, será projetado no virtual para nos fazer definitivamente crer que há somente o global. Recobrir essa uniformidade com multi-etnia e multi-culturalismo será necessário para fazer engolir a pílula.

Aguardando a televida nós lançamos a hipótese de que nossos corpos no espaço têm um sentido político e de que a dominação faz manipulações permanentes para oculta-lo.
Criar um slogan na própria casa não é a mesma coisa que cria-lo numa escadaria pública ou na rua. O fazer sozinho não é a mesma coisa que o fazer em muitos, e assim sucessivamente.

O espaço é político e o espaço é vivo, porque o espaço é povoado, povoado pelos nossos corpos que o transformam pelo simples fato de que ele os contém. E é por isso que ele é vigiado e é por isso que ele é fechado.
É uma falsa ideia de espaço aquela que o apresenta como um vazio que seria preenchido por objetos, corpos, coisas. Ao contrário, é essa ideia do espaço que é obtida removendo mentalmente de um espaço concreto todos os objetos, todos os corpos, todas as coisas que o habitam. O poder presente certamente materializou essa ideia nas suas esplanadas, nas suas auto-estradas, nas sua arquitetura. Mas ela é frequentemente ameaçada pelo seu vício de origem. Que algo tenha lugar no espaço que ela controla, que em favor de um evento um pedaço desse espaço torne-se um lugar, faça uma dobra inesperada, eis tudo o que quer conjurar a ordem global. E contra isso ele, o poder, inventou "o local", no sentido de um ajustamento contínuo de todos os seus dispositivos de apreensão, de captura e de gestão.

É por isso que digo que o local é político, pois ele é o lugar do confronto presente.

TIQQUN. Notes sur le local. In.: Tout a failli, vive le communisme! Paris: La Fabrique, 2009. pp. 218-220. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

Um comentário:

Marlon disse...

envia p/ esses caras: http://www.bloom0101.org/translations.html