quarta-feira, 25 de maio de 2011

Anacronismos



Para E. H., com um amor anacrônico.

Nos discursos, em geral de amor, hodiernos muitas vezes a banalidade das anacronias - falsiformes - surge como recurso cortês (como numa pseudo leitura original de Tristão e Isolda). O jogo entre recordações e devires, nessas anacronias, é mascarado como prazer, como uma espécie de fotografia - emoldurada e agora descrita na mensagem romântica - da fulguração do momento ímpar: um peripatético gesto cuja paixão (e aqui falo dela no seu significar mais ambivalente, como pathos) é estoicamente reprimida e reconfigurada (o gozo póstumo) num esquema moral a partir do qual a pseudo-anacronia é construída.
A memória, o simples lembrar - que no discurso pseudo-anacrônico é vista como uma espécie de mágica das sensações -, irrompe fortuitamente em toda mescla de impertinências do presente. Lendo o conto de Macedônio Ferdandez sobre o Sr. Schmitz (homem cuja faculdade de prever o futuro lhe fora tolhida, ou melhor, reduzida ao mínimo - 8 minutos -, por meio de uma cirurgia cerebral) tenho a sensação de que era uma crítica a essas versões do anacronismo - a essas banalizações dos discursos sobre a faculdade mnemônica - que tinha em mente o escritor argentino. O Sr. Schmitz que antes de perder a capacidade de prever (perda que lhe propiciou a morte sorridente numa cadeira elétrica) havia também sofrido uma intervenção que lhe tirara certa dimensão da recordação (o que lhe tinha possibilitado a criação de um outro passado para si: e era justo neste, no passado inventado a posteriori, que havia cometido o crime que lhe conduzira à cadeira elétrica), passou a vida num eterno presente. Tal presente é o presente dos festivais anacrônicos dos discursos erotológicos contemporâneos.
Nas meras lembranças camufladas de anacronia está inscrita uma capacidade de articular tempos diversos? Ao que parece, não. A presença, a existência (poderíamos dizer uma espécie de Dasein), estaria jogada não numa abertura de mundo, mas num simples ambiente (o véu das diferenças temporais permaneceria intocado). O mundo dominado por narrações e ideais erotológicos - como se a única dimensão humana possível fosse a das trocas libidinais, uma espécie de economia de Eros pautada em desejos de querer ter, de anexar algo a si - desconhece assim uma presença a partir da qual as relações inter hominis podem ser constituídas não em trocas, mas em dons - estes também desejos, mas por reconhecimento. De fato, as trocas fundamentalmente se ligam à percepção do passado e na expiação (satisfação) de ações que nele foram cometidas e cujas lembranças lançam suas sombras no presente: daí o re-sentimento, a declaração amorosa saudosista e a vingança (formas, digamos, de tentar reviver um passado, de anacronizá-lo - e é a tal intento que nomeio pseudo-anacronismo, isto é, nada mais do que aquilo para o que Nietzsche já havia chamado a atenção).
Tentar jogar com tempos - declarar ao outro amado a anacronia dos desejos - requer um presente fugidio sim, porém jamais eterno. Não se foge para o eterno como modo de, a partir dele, tentar encontrar no presente um tempo. Do eterno - este inexistente - não se toca o tempo, isto é, não se toca a vida. Tempo e eternidade (oximoro que em Murilo Mendes é posto à flor da pele) não são as duas faces de um suposto todo completo (a alegoria dos homens esferas platônica é exemplar nesse sentido), mas um presente que, podemos dizer, é decomposto, é, por assim dizer, um presente contemporâneo (com-tempos requer um ir e vir, um esquecer e um relembrar: nem Sr. Schmitz, nem Funes). Viver a vida presente na sua mais absoluta imanência, requer um modo de montá-la e, mais do que declarações de amor saudosas (ditas, anacrônicas - como se anacronismo fosse sinônimo de saudades), uma coragem (que no grego ler-se-ia thymòs; ou uma ira, desta vez humana, não divina) patológica (uma paixão pela existência na lembrança ou na previsão que são presentes).
No escuro quarto de Funes havia cheiro de umidade e, certamente, fungos por ali viviam. Tal como estes, a vida obscena no quarto das memórias é relapsa e, na escuridão do passado inesquecido, deixa crescer ranços luminosos que invadem o presente de maneira soturna e sorrateira. Porém, é na forma de lidar com isso que podemos abrir um tempo efetivamente anacrônico: não um iludir-se (e também um iludir outrem) com as imagens imóveis de outrora (seus cheiros, suas sensibilidades), tampouco um fechar-se como uma concha que guarda um segredo de si (aqui, como na máquina mitológica de Jesi, a parede espessa da concha isolaria um mito da vida sobre o qual não se poderia predicar a existência ou não-existência), mas colocar as imagens sobre a mesa, degluti-las com toda a voracidade possível, compondo um tempo da existência aqui, um mundo onde reconhecer a si mesmo e ao outro.
Nas bordas do texto, um telefonema traz as notícias de uma morte. Uma despretensiosa e dedicada vida acaba. Rompem meus pensamentos tempos outros: nos quais as páscoas eram animadas por ovos pintados, em que me esbaldava com refeições matinais que eram verdadeiros banquetes, quando o frio e a umidade eram alento para boas histórias dos tempos em que nem português naquele povoado se falava... Agora sim, lembro, já saudoso, mas não espero com isso nem prever (seja para os próximos 8 minutos) um lugar hipotético onde reencontrar o ente querido, nem rememorar incessantemente, como se pudesse satisfazer a existência no ressentimento. São apenas lembranças que não deixam de me constituir no meu tempo presente e que, portanto, como imagens na minha mesa, monto e remonto seus sentidos para com isso viver - sem passado, nem futuro, muito menos num eterno presente.

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