domingo, 29 de maio de 2011

Carta



Para a minha destinatária impossível

Querida, escrevo para avisar que cheguei. Onde? Não sei precisamente. Na verdade, acho que cheguei onde sempre chego, para onde sempre vou, de onde sempre venho. Aliás, antes de continuar, peço desculpas pelo possessivo da minha dedicatória, mas não tinha como ser diferente. É comum usarmos possessivos quando temos um carinho, mas com você acho que isso não é possível. Cheguei, mesmo que você pense que eu nunca chego, que estou sempre em andanças. É, talvez você tenha razão, mas sua razão é impedimento para que eu chegue? Acho que não, já que sempre chegamos, mesmo que essa chegada seja um constante movimento. Tampouco busco razões para lhe escrever. Qualquer afirmação que lhe faça não passará de um disfarce, de uma manifestação duplamente falsa e ressentida, de um acreditar-me forte quando sou fraco (não, não quero re-sentir). Deixo o fio das coisas que passaram e chego; talvez seja o fim do caminho, talvez seja o ponto zero do meu labirinto, mas chego alegre e risonho, como não poderia nas suas razões. Não sou Teseu, sou Dionísio! Eu jazia ali há tempos, restava apenas um véu de Teseu sobre minha face, um disfarce que me deixava atônito na minha viagem. E penso que você nunca viu; mas isso porque acho que ainda não nos encontramos (ou será que sim? Não sei...). Ah, não sei se lhe pedi desculpas pelo possessivo que usei quando me dirigi a você, se não o fiz, eis aqui a desculpa. Não pretendo reler o que escrevo aqui, não pretendo revisar, quero que a carta chegue sem que eu me apoie no fio que talvez você mesma tenha me dado. Acho que os encontros aristocráticos, que as armadilhas da viagem me deixaram um pouco transtornados. Você deve saber, mas não sou afeito à vida na coorte. Ah, talvez eu não lhe tenha dito, mas sim, estive com reis e rainhas, em castelos de areia, cartas e cristais. Minhas pupilas, como os pupilos dos gênios que você costumava visitar, viram os recortes precisos e geometricamente alinhados nesses castelos. Mas era impossível ver tudo isso se você fosse possível. Você não é quem você pensa, nem eu sou quem penso ser. Somos uma intermitência no decurso da vida do mundo e nada mais. Talvez nem isso; talvez somos nada. Por que há o ser e não o nada?, já se perguntou um filósofo. Até o Álvaro de Campos uma vez disse que não tinha feito propósito nenhum e que talvez tudo fosse nada. Ah, querida, queria ver seus olhos ausentes na viagem; queria saber se seus punhos cerrados são os mesmos que se abrem diante das minhas vistas cansadas. Mas a viagem foi longa, como você talvez saiba (ou não). É sempre longo o caminho que não se detém nos espaços traçados. Lembro agora que o traço é o corte que separa o mundo do homem do divino. O templo é fruto de um traçado (daí a etimologia comum) e o meu caminhar não se fia a nenhum traçado. Fiar-se também tem a ver com o fio que talvez você tenha me dado. Mas já lhe disse, não sou Teseu, não quero percorrer labirintos; estou apenas na minha viagem. Talvez você é quem deva desfazer a teia não para me dar os fios, mas para dançar as transmutações dessa viagem. Aliás, já lhe disse que acabo de chegar? Pode ser, talvez tenha lhe dito. Mas o caminho é sempre longo demais para eu saber onde cheguei. Sei que sempre vou, venho, volto, parto novamente; tento manter meu movimento contínuo. É, querida, a vida me dá encargos que não carrego. E tantos carregam a mesma coisa, nem que seja em pensamento (e lá na tabacaria penso que há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!), que a vida parece a repetição sempre insólita e imóvel de uma mesma cena. Acho que me alongo nesta carta, querida, mas é a longa travessia da barca que me faz olhar para os dois lados e não me deixa parar onde antes havia parado. Não posso repetir aqui os detalhes das cartas anteriores, já que delas acho que não me lembro (nem me lembro se cheguei a escrevê-las). Cartas são cartas, mas também são mapas e deles agora me livro. Acho que livro esta carta do seu papel de carta quando a coloco aqui, no meio do livro que estou escrevendo. Acho que nunca a enviarei para você.

Um beijo do seu remetente impossível.

p.s.: acho que lhe pedi desculpas pelo possessivo, não?

Imagem: Lorenzo Lotto, Retrato de um homem em seu estúdio. 1527. Venezia. Galleria dell'Accademia.

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