quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Satisfação



Alguns significantes são como o Aquiles que corre contra a tartaruga de Zenão: o herói, para chegar ao meio do caminho, precisa chegar ao meio, e para atingir a metade da metade tem que chegar à metade etc. etc.. Assim, os cálculos matemáticos propostos por Zenão aparentemente impedem Aquiles de alcançar a tartaruga, interrompem seu caminho; isto é, não há mais como ultrapassar o infinito criado pelo código matemático que se encarrega de pará-lo. Na lógica de Zenão, portanto, enquanto embrenhadas no desdobramento infinitesimal dos argumentos (penso que seja algo como quando os matemáticos pela primeira vez se depararam com a formação de uma lemniscata no plano geométrico: a indeterminação dos arcos e a partir daí o desenvolvimento de certas funções determinativas... mas isso fica para os experts), as palavras perdem-se enquanto artefatos de discurso, uma vez que passariam a flutuar como significantes vazios. A certeza da não chegada de Aquiles até a tartaruga é sempre pautada no limite para o trajeto do herói: a tartaruga. O infinito é realmente criado a partir da instituição (fictícia) de um referencial para Aquiles; ou seja, enquanto houver uma tartaruga, o movimento de Aquiles será sempre para alcançá-la, porém, já sabendo que nunca conseguirá fazê-lo. Digo, assim, que como o paradoxo de Zenão esvazia os argumentos tornando-os polissêmicos (pois vazios), também os paradoxos em que acabo por me meter quando começo a pensar em algumas palavras (ou pensar algumas palavras) são sempre pontos a partir dos quais não há mais volta para a pretendida (ingenuamente sonhada) univocidade do discurso.
Tal como o referencial "tartaruga" na corrida impede a vitória de Aquiles, parece-me que as palavras sempre estão vazias porque as referenciamos a determinado discurso. E aqui volto a pensar na palavra que me fez viajar por esse infinito criado: satisfação (e, claro, abro este parêntese por me lembrar do belíssimo livro de Murilo Mendes, A Invenção do Finito - e o antagonismo da lembrança ainda é algo sobre o qual penso). Ainda hoje, acabando meu almoço, pensava em quão satisfeito estava. A sensação de ter saboreado uma comida gostosa, de ter tomado o meu tempo para sentar-me à mesa, escutar uma música, tomar um vinho, tudo me era como sinônimo de satisfação. Tudo era meio de regozijo, ainda mais porque não devia satisfação a ninguém, pois almoçava sozinho: como me sentei, o quanto e de que modo comi, por que bebi logo no almoço... enfim, era satisfatório não dar satisfação. E agora a ambiguidade das palavras estava posta à mesa: satisfação - o prazer, o deleite - era um contraponto exato da satisfação - justificativa, reparação.
O jogo desse significante preciso, no entanto, acaba, justamente pelo seu caráter phármakon, colocando-me diante das dificuldades do plano indeterminado do infinito criado pelos discursos: ou seja, como deleitar-me, satisfazer-me, sem ter que dar satisfações para isso ou por isso? Qual é o meu referencial "tartaruga" que parece freiar meu livre movimento? Qual é a minha invenção particular de infinitos? Quantas vezes dou a volta na imagem da lemniscata? Acho que todas as questões se colocam e podem ou não ser satisfeitas. Porém, penso que respostas não surgem com uma tentativa de saltar para fora do discurso (um salto impossível para a não-linguagem, para um indizível). E talvez a epígrafe, tirada de Roland Barthes, que Murilo coloca para seu A Invenção do Finito seja interessante: "... Eu só posso fazer meu o pensamento de Lacan: não é o homem que constitui o simbólico, mas é o simbólico que constitui o homem. Quando o homem entra no mundo, entra dentro do simbólico que já está lá." Sem às vezes perceber que o infinito não há, senão no finito do tempo (isto é, na finitude da vida), tento, em vão, como que romper o laço da lemniscata sem perceber que posso virá-la e revirá-la, tal como uma fita de Möbius, para conseguir novas significações - na dimensão do finito, este, que acabo de inventar e que não tem outro espaço que o de uma imanência absoluta.
A satisfação, portanto, está sim lançada no indeterminado, no fugaz do discurso, carregada de toda a ambiguidade possível; porém, dela não há evasão para um além, para um além da linguagem e toda a sua "farmacologia". E talvez A Invenção do Finito de Murilo seja muito pertinente para essa conjuntura: "Sujeitos ao tempo e ao espaço, acontece-nos de vez em quando esquecer estas duas categorias, e situar-nos num território insólito, fora da faixa dos teólogos e dos poetas. Os tecnocratas de toda a espécie que nos rodeiam, os 'duros', aplicam a esse estado de espírito o nome de 'evasão', condenando-o severamente. O desejo de evadir-se da realidade pode ser substituído por outro: o de mudar de realidade. O defeito maior do 'realismo socialista' reside em reduzir a realidade a um esquema único. Ora, a realidade é poliédrica, inumerável, ambígua."
Não há sistema (esquema) único; aliás, seu funcionamento só seria possível se sob ele (ou, além dele, escondido como um deus tartaruga fundador) existisse um infinito que transcendesse toda a possibilidade humana; porém, um tal infinito transcendente - bradado em sistemas morais e religiosos, em estruturas que tentam apenas um dever-ser para o humano - aposta na falha e sua consequente satisfação - esta que, aí sim, pode ser pensada como satisfação das culpas do homem pelo fato de ele ser homem, querendo com isso um homem que deve ser. Penso, por outro lado, que a satisfação é o meu deleitar, é o meu bastar-me enquanto homem. Não penso, contudo, que ao me satisfazer assim satisfaço o meu sistema, pois, não há como satisfazer seu caráter poliédrico, não há como dar conta do espaço infinito que é o finito. E lembro mais uma vez de Murilo que, tanto nessas análises das obras de Gastone Biggi quanto em vários momentos da sua escritura, elabora seu pensamento do finito coligado ao infinito, do não reconhecimento das fronteiras do real e do irreal, isto é, do caráter insólito da condição humana: o de já sempre estar condenada à linguagem.
Neste momento, satisfaço-me com Dexter Gordon ao sax, com meu vinho, com meus pensamentos... e sinto-me como que a girar a fita de Möbius, na intimidade e alheamento dessas coisas que são as palavras, sem as quais qualquer satisfação me é interdita.

Imagem de uma Fita de Möbius feita pelo artista Blu para o Names Festival, em Praga - República Tcheca.

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