domingo, 5 de junho de 2011

Sobre reflexos e sombras



De vez em quando certos cheiros que não sinto desde criança retornam, não ao nariz, como um cheiro propriamente dito, mas ao cérebro do nariz; cheiros vagos e precisos ao mesmo tempo: cheiro de outono; de certas lojas; cheiro de começo de inverno, de início do frio: o primeiro fogo em casa, as luzes a partir das cinco da tarde. A estufa de metal, acesa pela primeira vez, tinha um cheiro peculiar, também porque a superfície fora untada para evitar a ferrugem. E sempre o cheiro do lampião a querosene.
Gosto muito de sentir de novo esse cheiro, mas não é possível evocá-lo por um esforço de vontade. Mesmo assim, de vez em quando acontece que, de repente, por alguma razão misteriosa, a memória desse cheiro retorna.
Nada do que é depositado na memória se perde, ela é um computador que continua acumulando dados a vida inteira, dados que nem sempre se utilizam, porque o homem muitas vezes parece um transatlântico que navega com apenas uma cabine ocupada. Deveríamos conseguir usar continuamente esse imenso acúmulo de dados, mantê-los em exercício, combiná-los entre si, multiplicá-los, reintroduzi-los no curso de nossos pensamentos. Como no caso do retorno desses cheiros, depositados há tantos anos na memória e agora ressuscitados. Talvez eu tenha a sorte de encontrar mais coisas que agora me parecem esquecidas. Gostaria de poder voltar atrás e ver tudo que em algum momento armazenei, mas não percebi, andar atrás de mim mesmo quando tinha dez anos e avaliar, com a cabeça de agora, as condições em que vivia: descobrindo o que então, sem que eu soubesse, ia se depositando no computador.
Tenho muito interesse pelo período logo antes do meu nascimento e fico triste por não tê-lo visto. Tenho a impressão de que, com algum esforço da vontade, poderia revê-lo. É uma época tão próxima de mim que tenho a sensação de conhecê-la bem e me enterneço quando penso nisso. Talvez porque meus pais fossem jovens, não se conhecessem.

Saul Steinberg. Reflexos e Sombras. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011. Trad. Samuel Titan Jr. pp. 14-16.

Imagem: Saul Steinberg. Girl in Bathtub, 1949.

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