quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Fraude



"Viajo para conhecer minha geografia" escreveu certa vez um interno de um manicômio francês. E foi pensando um pouco nisso que comecei esta noite de insônia. Uma fraude, uma falsificação do que era a sensação do sono, já que era impotente para dormir. No entanto, a referência à frase do maníaco não podia me passar em branco. Ao contrário do que muitas vezes alguns dicionários de etimologia trazem, a mania, essa invenção platônica, é a expulsão gradativa da menis (a ira, o furor que aos heróis guerreiros provinha dos deuses) dos carismas gregos, e não algo a estes ligado em sentido negativo (rumo que acabou tomando nas nossas concepções atuais).
Em certo sentido, na cidade grega, a menis foi domesticada como thymos, a coragem cidadã a partir da qual a estima pelo outro e a amizade poderiam surgir num, digamos, olho no olho, num respeito por si e pelo próximo. Entretanto, nem menis, nem thymos parecem ter qualquer sentido nas horas contemporâneas. Aliás, nem mesmo a mania de olhar para as ideias, à qual se deu o nome de filosofia, parece significar algo. Hoje, tal como meu sono esvaído em insônia, um olho no olho é também uma impossibilidade (salvo os refúgios que, por sorte, ainda são possíveis em alguns olhares), já que, mais do que tudo, o que conta é a impostura, a fraude de si criada para si e para o outro. Tudo isso como uma mania de engrandecer-se diante do outro, de forjar a fraude de si (e a figura do olho no olho pode ser completada com os óculos de sol).
Nesta noite (ainda estou nela) em que a frase do maníaco francês me vem justamente nas horas incertas nas quais me sentia fraudado em meu sono, acabo começando uma viagem. Entretanto, não quero a mania da procura infindável pela minha geografia (mapear é querer conhecer um local, mas, no meu caso, só quero por ele passear), mas descobrir certos recônditos cantos em que ainda encontro certa ira (ou mesmo, certo thymos). Mas, com a fraude (essa mesquinha incapacidade de olhar nos olhos do outro), a dificuldade, quase impossibilidade diria, desse encontro tira-nos até o sono.
A lembrança do maníaco francês não foi em vão. Na verdade, tinha lido sua frase no prefácio de Suicídios Exemplares, do catalão Enrique Vila-Matas, que comecei a ler assim que a insônia me pegou. Morte por saudade, o primeiro conto do livro do catalão e a partir do qual algumas imagens da Lisboa do italiano Antonio Tabucchi ressoaram em mim, era como um desfecho para minhas inquietações. Ali tudo era fraude: desde as lembranças do narrador até as cenas finais de seu suicídio não consumado. Fragilizado pela própria incapacidade de se atirar do alto do miradouro de Santa Luzia (este que fica, aliás, próximo à rua da Saudade, sobre a qual o narrador de Vila-Matas nem comenta, porém, onde Tabucchi faz morar sua personagem de Requiem - da sua missa fúnebre, do depois da sua morte), o suicida impotente se senta e, como que a zombar de si e da morte, diz: "Vou me sentar para esperar, haverá uma cadeira para mim nesta cidade, e nela poderei ver todos os entardeceres, calado, praticando a saudade, o olhar fixo na linha do horizonte, esperando a morte que já se desenha em meus olhos, e que aguardarei, sério e calado, todo o tempo que for necessário, sentado diante deste infinito azul de Lisboa, sabendo que à morte lhe cai bem a tristeza leve de uma severa espera."
A prática da saudade que a personagem queria em um banco qualquer exercer, contemplando o triste horizonte da porta de saída da Europa, talvez tenha sido, mais do que o desfecho da minha noite, o estopim para pensar a fraude. Também eu, saindo do Velho Mundo (do meu e do geográfico), adentrei o Novo Mundo sem mais conseguir ver olhos, mas tão somente óculos escuros. Não morri por saudades (ainda que no meu velho mundo, talvez ludibriado por uma fraude - e não é isso também a memória? -, tenha sentido na pele a metáfora, o morrer de saudades). Tampouco me mataria por saudades. Porém, ao invés da mania de contemplar essas imagens que, impostoras, exibem fraudulentamente seus óculos escuros, quero poder ver a cor dos olhos do outro e também poder lembrar da cor daqueles olhos que penso ter visto, para, aí sim, sentir-me capaz de, num furor timótico, matar por saudades.

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