sexta-feira, 29 de julho de 2011

Vulgar II (obituário)

Do bunker
Dura é a tarde obscura
e seu objetivo:
obliterar o obtuso.
Obstáculos à obra?
Não, obrigado.
O obsessivo não obedece,
como o obelisco, falo, não fala.
Às coisas óbvias,
vias obscenas.
Eis o meu obituário.

Imagem: Erich Hartmann. Mannequin Factory. Long Island City, USA, 1969.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Ecos



Em 1954 e 1955 Murilo Mendes, então em missão cultural na Bélgica e na Holanda, escreveu Siciliana, logo após ter ido para a ilha a passeio. Em 1957 o poeta muda-se definitivamente para a Itália, onde seria professor de cultura brasileira até o fim da vida. No livro de poemas dedicado à Sicília, 13 poemas no total, Murilo percorre e canta em versos várias das belezas da ilha. Do templo de Segesta a Cefalù, de Palermo a Agrigento, Murilo parece querer mostrar um tempo, contagiado de reminiscências e porvires, que era por ele sentido nos confins da ilha, esta que de dominação em dominação moldou sua face singular na trinácria que a representa.
Quando em Taormina, ele se dá conta de que sente uma saudade profunda de algo, de um algo enigmático, o qual talvez não seja nomeado porque encontrar-se-ia numa zona limítrofe entre a beleza e a morte. Por isso faz a Taormina um canto elegíaco, falando de um azul (e talvez a pureza da cor seja a "coisa" de que sente saudade, uma coisa impossível) que desce dos céus e sobe do mar para transpor todos os limites, toda a memória (no seu jogo enigmático de esquecimento e lembrança). "Ao horizonte da mão ter o Etna / Considerado das ruínas do teatro grego, / Descansa." No jogo que acabo de me colocar, também eu revejo agora as ruínas do teatro, os jardins, o mar, porém, faltam-me o azul e o Etna. O tempo estava nublado e qualquer perspectiva anil do mar, do céu, ou qualquer lampejo do monstro de lava era-me interdito. Seriam tais condições visuais já o prenúncio de futuras confusões de imagens e obscurecimentos? Não sei, talvez...
E talvez é pela visão que a imagem da Sicília tenha surgido há pouco. Ainda hoje, enquanto colocava minhas lentes de contato, observei no reflexo de meu antebraço direito no espelho uma cicatriz, exatamente em seu centro, entre a mão e o cotovelo. E foi por causa dessa cicatriz que reli Siciliana, e foi também por ela que refiz itinerários, e pensei em Arquimedes, e olhei agora há pouco para o céu, e comecei a deitar este texto cansado por meio destes meus dedos cansados. Há poucas horas de sair de Siracusa para Taormina, não tomando em conta as simples invenções ali criadas por Arquimedes há milênios, as alavancas (no caso, o jogo de rodas que facilitava a condução de minha mala), acabei por esbarrar em um vaso logo na saída do hotel. Lembro-me que só fui me dar conta de que tinha sofrido o tal corte - hoje a cicatriz que me faz girar a memória - tempos depois, já perto de Catanea.
Curiosa essa explosão (que nada tem de original... Proust já contou suas experiências com as Madeleines há tempos) da memória. Porém, interessante foi pra mim, ao observar a cicatriz do braço, procurar justamente o poema de Murilo que falava de Siracusa, Eco em Siracusa. O poema, que fecha o livro, pareceu-me como que uma exortação para reflexões. Eco, eis a palavra que fecha o poema e, portanto, o livro. E para mim todo o jogo com o som que Murilo quis deixar no seu poema (pensando nas cavernas oblongas, como ele diz), sua tentativa de tocar o mundo com a voz, era uma armadilha que tanto o mineiro quanto eu acabáramos de cair (mas, claro, caímos sabendo que estávamos caindo). No eco, que é forte, que se mantém "mais vivo do que / o Augúrio original", está a falcatrua da mesma voz que toca o mundo. Eco, ecco, é tão somente a indicação de presença, é o que constitui uma presença, uma indicação de algo que aqui está, um eis aqui, enquanto é também o sinal de algo que já não está (tudo a depender do ouvido...).
E disso tudo, desse tramado de recordações e esquecimentos, restou apenas uma timpanização excessiva que jogava com minhas lembranças, com minhas imagens, e, sem piedade, soava a condenação de toda inocência. E como que a coroar esse jogo, que parecia sem fim, estava a cena bíblica, talvez uma das mais representadas de todos os seus livros, em que a voz de Pilatos desdobrava-se num eco (aos meus próprios pensamentos de hoje) de condenação da inocência: "Eis o homem", Ecce homo. Como o messias que era apresentado, também a Sicília que hoje eu indicava para mim mesmo era um eco de desejos distantes, era um eco abafado, uma reverberação que já mal podia ouvir mas que, no entanto, com seu sussurro dizia-me "Ecco qua la tua vita".

Imagem: Caravaggio. Ecce homo. Galleria di Palazzo Bianco, Genova. 1605.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Notas sobre um quadro


Há dias que não escrevo. Não tive visões, não tive empenhos. Eram apenas algumas sensações confusas, um estranho estranhamento de si, uma bagunça de sentimentos. Mas hoje vi um simples meneio de cabeça acompanhado de um sorriso de satisfação que me tocaram de algum modo. Era um pintor que observava os frutos de uma árvore que estava a pintar. Tentava de todas as maneiras apreender uma luz da manhã que, segundo ele, era a mais bela do dia para aquela árvore específica, um marmeleiro. Meio atordoado pela certeza com que o pintor dizia ser aquela luz a mais própria para sua pintura, pus-me a pensar sobre a relação que ali estava estabelecida: um pintor, todo o preparo do terreno onde ele se colocava para pintar, a variante luz, a árvore com seus frutos e folhas que quotidianamente mudam de cores e formas e nosso diálogo a respeito de como víamos o tal marmeleiro.
Pensar a respeito disso era meio que me botar - eu, um terceiro diante das relações ali fundadas, uma vez que não seria eu a pintar - em xeque. Mesmo sendo pelo pintor chamado para ter sua visão diante da árvore (colocara-me exatamente no ponto em que ele se fixava diariamente para pintar, de modo que eu tivesse a mesma visão que ele), não conseguia entrever qualquer tipo de relação entre as cores que usava e as sensações que eu tinha. Claro, as consciências não se comunicam, e eu sabia que isso era empecilho para qualquer possibilidade de compreensão das sensações que o pintor tinha. Porém, a insistência com a qual ele tentava me mostrar e explicar suas visões tocou-me e fez como que um movimento para que eu tentasse novamente escrever.
Curioso como nossas tentativas de ver a mesma coisa sempre é fadada ao dissenso. Não que o pintor insistisse nisso ou naquilo como se houvesse uma razão em jogo, nada disso. A conversa era amigável e sabíamos desde o início que jamais entraríamos em acordo. Aí é que estava o meu ponto e as minhas angústias que voltaram para que eu escrevesse: como viver num mundo em que o que importa é o consenso? Toda a fundamentação do Estado contemporâneo é permeada pela ideia de consenso; parece que até mesmo para se fazer amizades ou amar é preciso, antes de mais nada, o consenso. A ficção de que vemos a mesma coisa é hoje imperativo, é como se o olhar de diferença fosse a priori condenado a outros espaços (diriam alguns entusiastas do consenso que há sim lugar para o diferente, porém, que é um lugar reservado pelo consenso - o que, traduzindo, seria como: "sim, a vocês sobrou um espaço para viver, mas saibam que não entre nós"). Diria ainda que o engenho dos consensuais está em, sob o signo da universalidade ("claro estamos em consenso"), propor relações que sejam autênticas, posto que dialogadas e tramadas num pacto.
Ora, além do ato de fé dos consensuais (pois uma vez estabelecido o consenso - o com-sentido, poderíamos dizer - a vida seria uma série litúrgica: como fazer para respeitar o próximo? como fazer para não infringir os direitos? etc. etc.) é preciso lembrar que sua crença na limpidez e tecnicidade da linguagem - como se nos fosse possível tomar a linguagem como algo que simplesmente é um adendo ao bicho homem - é talvez o maior dos atos metafísicos que ainda imperam neste mundo (crêem numa vida autêntica). Há no consenso, diferentemente também do que aqueles que o criticam afirmam, a tentativa de formação não de uma paróquia (que no grego paroikein significa permanecer provisoriamente num lugar como estrangeiro, ainda que a igreja tenha se apropriado do termo para nomear suas sedes regionais) mas de uma katoikein, de uma permanência definitiva (uma residência, uma cidadania) no mundo, como se a formulação de regras e acordos de convivências com base na comunicação - nessa linguagem tecnicizada tomada por um homem cujas características seriam a de um anjo - fosse suficiente para a criação de um mundo em comum e, pior de tudo, infinito.
Dissentimos as coisas, dissentimos o tempo, dissentimos a vida. Não há como imaginar um conviver sem separação (erro em que incorremos o tempo todo). Com-sentir só se pode a partir do hífen, do que liga e separa. É-nos interdita uma demora eterna no mundo (ainda que as ficções tecnicistas de hoje queiram pensar em algo como uma eternidade na vida), pois somos seres-para-a-morte. Aliás, na nossa tradição judaico-cristã, dissentimos já de deus, o que nos custou a saída do paraíso (o espaço onde não há tempo nem morte: o lugar do consenso) e a entrada no tempo histórico, onde só podemos dissentir na provisoriedade da nossa existência mortal. Um diálogo definitivo que estabelece instituições infinitas, que protege a vida, que dá condições de convivência para os homens é tão somente um mito, uma crença numa bondade intrínseca do homem, uma esperança (talvez até numa salvação...) de viver no paraíso. Mas talvez seja hora de uma conversa infinita que nada funda, que sequer pretende fundar algo, na qual estamos lançados e condenados a permanecer (como estrangeiros) para além das concordâncias e consensos (esses mitos do eterno), mas, justamente, no dissenso transitório da nossa existência.
Voltei os olhos para meu amigo pintor e disse-lhe que jamais conseguiria pintar o quadro como eu gostaria que fosse pintado, mesmo que eu lhe explicasse exatamente como o queria. E foi aí que ele meneou a cabeça, sorriu e me disse: "neste momento, meu caro, nem você nem eu conseguiríamos pintar o que estará em alguns dias pintado".

Vulgar


Em Vancouver ateiam fogo no bairro para tirar fotos em seus celulares descartáveis
Em Oslo um neonazista comete uma chacina e se posta com o perfil de herói
Em Santiago as atenções se voltam para a beleza da líder estudantil
Atenas e Madri e suas rebeliões em torno de bandeiras opacas
O cheiro de pólvora e morte mais uma vez nas terras de Sherazade

Em um condomínio escrevem-se email's, fornica-se, festejam-se aniversários
No canto do centro velho a menina fuma sua pedra diária de crack
Alguns alpinistas morrem ao tentar chegar ao topo do Everest
Alguém perambula de carro na madrugada da cidade
Eu escrevo este poema tosco para tentar fugir da insônia

Neste momento o geóide disforme ainda gira no infinito vazio do espaço.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Maneiras do nada



Pedaços em prosa [Pezzi in prosa] (ou ainda Prosas em pedaços, como quem dissesse prosas ou trabalhos feitos por pedaços), publicada em 1916, é, talvez, não obstante a sua aparência resignada, a mais difícil e complexa das coletâneas walserianas nos anos da grande guerra. Chega aqui, de fato, à sua crise decisiva (à sua catástrofe, poderíamos dizer, se é verdade que toda catástrofe é geradora de formas) o processo que conduz à formulação mais extrema do maneirismo walseriano. Se todo maneirismo contém em si um impulso teatral, aqui a maneira tende, de fato, explicitamente ao balé de circo, radicaliza-se em pantomima. E aqui o maneirismo revela também sua cumplicidade não muito escondida e quase afinidade eletiva que o liga ao niilismo.
Esse parentesco era já evidente em Nietzsche, em quem o elemento paródico e propriamente teatral (Nietzsche, já se disse, vive em íntima simbiose com um espectador) torna-se o único meio expressivo que sobrevive ao niilismo e sem o qual Assim falou Zaratustra - esse primeiro ballet russe do niilismo - seria simplesmente incompreensível. Mas em Walser é como se o maneirismo incorporasse não somente os valores e os sentimentos tradicionais, mas, antes, o próprio niilismo, fazendo-se tão íntimo dele ao ponto de conseguir de algum modo dele sair. Maneiras do nada são exatamente estes Pedaços em prosa.
Toda pantomima contém um elemento iniciador, é iniciação a um mistério (é notório que em Elêusis os místicos assistiam a uma espécie de ação teatral). As pantominas de Walser são iniciações nas quais não há nada para aprender, gestos nos quais o homem se confunde com todo mistério: passeios. Por isso o elemento teatral (que em Nietzsche e até mesmo em Rilke permanece tão rígido) dissolve-se e relaxa-se integralmente em prosa, e o Theaterstück [n. trad.: peça teatral] faz-se Prosastück [n. trad.: peça de prosa]. A estrutura da coletânea é inteiramente articulada nessa passagem: aos esboços teatrais e aos movimentos circenses do início (nos quais não por acaso aparecem também aqueles arcanjos do niilismo que são as máscaras da comédia italiana) segue uma gradual e intensiva exaustão e trivialização da maneira até os dois pedaços que constituem indubitavelmente um vértice da arte de Walser: Schwendimann (arquétipo perfeito da personagem walseriano) e Não tenho nada (esse embrião ou condensação de Passeio, composta nos mesmos meses).
O rapazinho "de aspecto bem humorado e abobado" que, autêntico indigente do ser, deixa para trás, um a um, árvores, campos, arbustos, animais e a cada um destes diz: "não tenho nada para lhe dar, caro animal, dar-lhe-ia com prazer algo se o tivesse" e, ao final de seu passeio, de repente vê como beleza do mundo o abandono de todo ser à própria sorte; este "recruta" metafísico, que parece anunciar o voyou désoeuvré [n. trad.: bandido desocupado; bandido sem obra] de Queneau e de Kojève, por um átimo nos faz ver face a face uma imagem enigmática de um ser juntos dos homens que não tem mais a forma da relação e constitui, portanto, o legado especificamente político que a arte de Walser deixa como herança ao nosso tempo.

Giorgio Agamben. Maniere del nulla. In.: Robert Walser. Pezzi in Prosa. Macerata: Quodlibet, 1994. pp. 9-11. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

Imagem: Robert Walser, Berlim, 1909.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Dos diários mitológicos



Eu já sabia que você iria mesmo antes da sua partida. O que sabia, porém, não queria saber, e os restos desgastados da repetição mecânica das coisas fez a vida se romper. Contemplava, como um Prometeu acorrentado, as ondas do mar e nem ao menos me dava conta de que os abutres roíam-me o fígado. Era sua imagem, que quebrava junto às ondas, o que anestesiava as bicadas dos seres de rapina. Mas o castigo que me era infligido haveria de ser também expiado, não por mim, incapaz de sair da cadeia a que me condenaram os deuses, estas puras figurações mnemônicas da antiguidade humana, mas pela renúncia à imortalidade do incauto guardião dos meus desejos.
Podre e imerso na fedentida de um dia azul, passei a me dar conta de que minhas entranhas tinham sido devoradas e de que sua imagem anestésica era um puro engodo. No mais simples movimento livre das correntes sou tomado por uma dor cáustica e irônica, a qual, num mágico lance, ganha voz e conta-me a história que antes de sua partida fiz-me de surdo para não escutar. Agora ouvir era um inevitável, um acontecimento simplesmente. Entretanto, ainda penso que aquela cera que protegia meus ouvidos da história tantas vezes narradas antes da sua partida também me protegera do seu canto de sereia. Talvez tenha escapado à devoração, ao seu apetite insaciável, mesmo que isso tenha me custado o fígado e milênios atado a um rochedo. Sim, sim, sei que a mistura dos mitos pode parecer cacofônica e patética, mas já não corro mais riscos, pois a vida a mim agora se mostra escancaradamente, com a dor e os percalços de um mundo em que todas as histórias são audíveis.
Mas ainda há algo que me incomoda, há sangue a jorrar das cicatrizes que ficaram das bicadas. Tentei curar meu fígado com Dionísio: tola ilusão. Saquei à luz fantasias de outrora para tentar desmantelar a falsidade daquela imagem anestésica, mas mesmo assim ainda me dominava um desejo voluptuoso, ensurdecedor, com o qual não conseguia conviver. E isso, agora me dou conta, era a falta do guardião que havia se entregado para que eu fosse liberto do castigo eterno. Foi-se a imortalidade, foi-se o que havia de ser perene.
Talvez seja o agora um instante único, sem anestesias, mas também sem prevenções ensurdecedoras. Aberto o mundo, finito o infinito da imortalidade, talvez seja a atual condenação, como a própria existência, um sumo doce e ao mesmo tempo amargo, maldito e bendito, acariciador e flagelador. Sem surdez providencial (e, mudando de mitos, sem A Providência), nem com visões fabuladoras, talvez seja tempo de estancar o sangramento com todas as histórias e todas as imagens assumindo o risco de um absurdo: viver.

Imagem: Pompeo Batoni. Aquiles e o centauro Quírion. 1746. Galleria degli Uffizi, Firenze.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Do diário de um doutorando desolado


A forma da “tese”, ou a “tese” como forma, configuração e exposição histórica de um estilo canônico nos espaços universitários modernos, não deixa de estar atrelada às características de um tipo de racionalidade ainda ancorada nos conceitos de sistema, cumulatividade, na trindade instituição-autor-autoridade (que hoje perpassa os temas da propriedade autoral ou copyrights), e, principalmente, na pretensa garantia da transmissibilidade da tradição. Ainda estamos diante do ideal da velha comunidade humanística, da troca de cartas entre pares, o terreno de cultivo da cultura e sua perfectibilidade infinita.

Diante da erosão quase definitiva das condições de manutenção desta racionalidade, que já foi devidamente prenunciada pela geração do entre guerras e do pós segunda guerra mundial, e lado a lado com as críticas aos pressupostos a ela subjacentes, é possível perceber a sobrevivência do protocolo acadêmico – aqui no sentido mais lato do termo “protocolo”, envolvendo o dispositivo acadêmico e os rituais de passagem e formas a ele atrelados - como mera liturgia funcionalizada: os “títulos”, as “produções”, as insígnias acadêmicas agora representando os marcos distintivos para a atuação de indivíduos na esfera corporativa de mercado ou na hipertrofiada burocracia estatal. A forma é mantida em seu esvaziamento, em sua presença opaca como estrita fórmula.

Mas aqui não cabe endossar a “crítica sistêmica” a esta liturgia, perceptível, por exemplo, nos agentes operadores das novas tecnologias digitais ou nos espaços da especulação financeira, onde são comuns as afirmações de que a universidade se apresenta como obsoleta para acompanhar a “velocidade da técnica”, etc. Não é porque o conceito de sistema já não seja defensável que as “grandes questões” não deixem de exigir problematizações abrangentes. O esforço do conceito, aqui, se torna muito mais exigente, urgente e, mais do que nunca, perigoso.

Mais do que destruir a forma “tese”, seria preciso recuperar a audácia do pensar novo que esta porta em seu nome. Aceitando que pensar também seja mover, destruir, perfurar, em suma, in-utilizar.

Imagem. Caveira com o cigarro aceso. Van Gogh.


quarta-feira, 13 de julho de 2011

A filosofia no mundo (glosa marginal)



“(...). Em um tal mundo da uniformidade exterior forçada, ela [a filosofia] permanece monólogo erudito do passeador solitário, fortuita presa de caça do indivíduo, oculto segredo de gabinete ou inofensiva tagarelice entre anciãos acadêmicos ou crianças. Ninguém pode ousar cumprir a lei da filosofia em si mesmo, ninguém vive filosoficamente, com aquela lealdade simples, que obrigava um antigo, onde quer que estivesse, o que quer que fizesse, a portar-se como estóico, caso tivesse uma vez jurado fidelidade ao Pórtico. Todo filosofar moderno está política e policialmente limitado à aparência erudita, por governos, igrejas, academias, costumes e covardia dos homens; ele permanece no suspiro: “mas se...” ou no reconhecimento “era uma vez”. A filosofia, no interior da cultura histórica, não tem direitos, caso queira ser mais do que um saber interiormente recolhido, sem efeito; se pelo menos, o homem moderno fosse corajoso e decidido, ele não seria, também em suas inimizades, apenas um ser inferior: ele a baniria; agora contenta-se em revestir envergonhadamente suas nudez. Sim, pensa-se, escreve-se, imprime-se, fala-se, ensina-se filosoficamente – até aí tudo é permitido; somente no agir, na assim chamada vida, é diferente: ali o permitido é sempre um só, e todo o resto é simplesmente impossível: assim o quer a cultura histórica. São homens ainda –pergunta-se então -,ou talvez apenas máquinas de pensar, de escrever, de falar?” NIETZSCHE, F. Obras incompletas. (Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho). 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 63.


Desde o surgimento da filosofia, em sua configuração grega clássica, é possível observar uma tensão entre o discurso filosófico e seus supostos detratores (por exemplo, como imaginar o conjunto de questões suscitadas por Platão e Aristóteles sem o desafio da problemática sofística?). Parece ser uma condição de possibilidade da instauração filosófica um corpo a corpo com os limites da própria filosofia, uma crisis perennis (Bento Prado Jr.) entre a filosofia e seu fora, mesmo que esta relação e seu respectivo libelo estejam inscritos desde sempre em uma problematização eminentemente filosófica. Ou seja, todos os debates sobre o fim da filosofia – no interior desta - já nascem datados, e é quase impossível indicar uma filosofia específica sem um embate correspondente que lhe seja próprio.

A partir da segunda metade do séc. XIX é possível visualizar uma profissionalização e institucionalização crescentes do, chamemo-lo provisoriamente, habitus filosófico. Este quadro se agrava no presente, ao ponto de ser extremamente difícil encontrar textos de "filosofia contemporânea" que não estejam ligados, mesmo que indiretamente, ao espaço acadêmico ou magisterial formal. Agrega-se quase naturalmente à figura do filósofo, já ambivalente por tradição, o qualificativo de professor. Os campi mundiais ainda convivem com professores e estudiosos de filosofia, filósofos, porém, são tidos como espécies extintas ou em franco desaparecimento, tal como animais bravios sintomáticos de um passado que só resta enquanto ruína.

Neste sentido, os restos ou ruínas da tradição filosófica como um todo se manifestam nos espaços institucionais como uma barafunda de teóricos e textos, categorias e estilos disponíveis às modas prêt-à-porter de ocasião, manejáveis na luta por bolsas de pesquisa ou prestígio nas paróquias acadêmicas. A própria filosofia é assolada, portanto, por um niilismo sem precedentes. Vige e é eficaz: disciplinas e currículos oficiais, produções acadêmicas, avaliações. Seu significado, no entanto, foi reduzido a um grau zero, porquanto uma filosofia que não se conecta com um solo ontológico, com a vida, não pode ser chamada como tal.

A filosofia então se metamorfoseia no puro mito de um logos desencarnado, meramente escolar, resumindo-se - de forma quase hegemônica - a um trabalho de catalogação historiográfica asséptica e bem-comportada perante os poderes do capitalismo espetacular do presente. Durante muitos séculos a filosofia se manteve intacta dos ataques que lhe foram lançados de seu próprio interior. Porém, de sua redução a uma pura forma mística, do espectro - vendável - que assumiu seu lugar, ou bem teremos de nos conformar com uma morte definitiva e enterrar este cadáver (o lugar do luto na psicanálise freudiana) ou, contra uma ficção eficaz, postular novamente aquilo que, nos interstícios desta tradição, poderíamos ousar chamar de uma forma-de-vida filosófica (uma bíos theoretikos ou bios xénicos).

Ora, seria possível objetar, contra tudo o que foi dito até aqui, que tal crítica nada mais faria que novamente coonestar o clichê filisteu, paradoxalmente aceito até hoje por alguns redutos incautos da teoria, de que a filosofia não teria mais seu lugar em um mundo absolutamente tecnicizado e “secularizado”, desprezada, segundo Jaspers, “como produto final e mendaz de uma teologia falida” (Jaspers), relegada ao catálogo excêntrico dos inutensílios (Leminski), que teve seu último grande suspiro com Hegel em sua pretensão absoluta de equacionamento entre Razão e Realidade, e tudo o que viria depois apenas atestaria seu grito de moribunda agonia. Contra tal niilismo não basta reativar a fantasia do reencantamento, restabelecer teogonias. O caminho da sacralização só pode ser o desdobramento indefinido da catástrofe: fazer da pura forma (ou força) de lei (Agamben) um conteúdo válido. Parodiando em termos alemães, passamos facilmente do Achtung - respeito ou temor reverencial – para a Ächtung – proscrição ou banimento. São pólos, afinal, facilmente intercambiáveis.

Não pode ser uma rota viável, contra a vigência sem significado (Scholem/Agamben) atuando no interior da própria filosofia, reativar o discurso do cânon, retornar de maneira ritual às fontes sacralizadas, à filologia respeitosa, à filosofia profissional (Schulphilosophie, a profissão de fé dos Denker von Gewerb que Kant jocosamente hostilizou), ao autor e sua soberania intencional de auréola intocada.

Urge, quiçá mais do que nunca, suscitar mais uma vez a questão - o nó problemático - da teoria como sendo a dimensão intransigente (pois não pode transigir ou compactuar com o já dado, sem o filtro da crítica), irredutível e indômita de formação de conceitos (Deleuze) e criação de novos planos cartográficos e linhas de fuga para pensar o mundo e compreender o presente.

Ao invés da filosofia se apresentar, portanto, como mera "teoria da ciência", coadjuvante diante de técnicas produtoras de conhecimentos codificados em uma vã e suicida tentativa de ultrapassar os contornos da imanência, postulando a terra como um grande deserto medido por escalas astrofísicas, ou a filosofia como mera metalingüística de sutura diante de linguagens cada vez mais parciais e rompidas, é preciso ressaltar o estatuto da filosofia como campo puramente humano, imanente e irredutível de instauração de verdades que não podem ser facilmente subsumíveis aos campos das tecnociências ou das instituições oficiais, mas podem até mesmo confrontá-las, esquadrinhá-las, ir para além da opacidade que conduz ao silêncio e ao acordo tranqüilizador.


Imagem. Kandinsky. Red-Yellow-Blue. 1925.


terça-feira, 12 de julho de 2011

Jogando com letras


Hoje, logo depois de um brincadeira boba com a letra "s", acabei por começar uma divagação gozosa - e pena que não se goza com "s" (ainda que sibilinos sons possam ser a matéria de um gozo). De todo modo, eis um texto de gozo, de delírio. Tanto porque não se refere a nada útil, mas a algo Sutil como uma letra, um gramma, para dizer com Derrida. Engraçado como uma letra desloca o emblema máximo dos tempos de capitalismo financeiro doentil no seu "oposto". Os adjetivos útil e sutil, de fato, não são opostos; porém, o primeiro refere-se à necessidade, ao uso determinado e preciso, ao mundo da produção, já o segundo diz respeito a coisas delicadas, pequenas e refinadas (e, para gozar ainda mais no texto, outra brincadeira: útil é paroxítona - claro, as palavras também podem ser estóicas: primeiro a força para depois ter o descanso numa ética do labor, mesmo que se possa pensar no sexo, se bem que de modo ainda muito cristianizado; sutil é oxítona - o climax vem aos poucos, é tântrico, é de gozo contínuo com uma explosão final).
Os substantivos utilidade e sutileza conseguem expor, mais que seus adjetivos, figuras desse mundo opositivo. Normalmente dizem que a lógica do mercado é a utilidade, que é imperiosa, que não dá tréguas, que nela sobrevivem só os melhores; dizem que a sutileza é, por sua vez, para momentos precisos (normalmente associados ao "lazer" do homem médio - num discurso ainda dentro da lógica capitalista), não dado às coisas úteis. Em outra linguagem poderíamos dizer que a utilidade é masculina, enquanto a sutileza é feminina (e isso se agrava ainda mais em estudos biológicos que apontam a caça - coisa verdadeiramente útil - ao macho, enquanto à fêmea restariam os trabalhos menos úteis e mais sutis - a preparação dos alimentos, o cuidado com a cria etc.). Obviamente que a distinção pautada no critério da necessidade não é taxativa (aliás, comecei dizendo que não se tratam de verdadeiros opostos... tudo não passa de um gozo, com "s", meu).
Com o "s", que me provocou esta manhã, diz-se sexo - e no sexo o "s" aparece uma só vez, mas é dito duas. Nada mais gratuito que o sexo (a não ser que, escolástica e cretinamente, alguém queira me dizer que sexo é para a reprodução - o que seria reafirmar a lógica da utilidade num espaço em que o que de melhor há é a sutileza). Foucault foi muito perspicaz ao dizer que diante do minúsculo segredo do sexo todos os enigmas do mundo parecem menores. Mas eu não estava muito preocupado com os enigmas do mundo ainda hoje quando brinquei com um "s" (ainda por cima, foi tolhendo o "s" que a minha tola brincadeira se deu - meio ao modo de Max Ernst no La Femme 100 têtes, no qual o numero 100 funciona como uma "caixa de letras" - e sons - para uma brincadeira com a sentença: sans tête, cent tête, s'entête, sang tête...).
Pensar (e, porque não, gozar com) as letras é algo que já a cabala judaica fez. Toda a experiência mística dos judeus medievais se dava por meio da reflexão sobre o tetragrama sagrado. O nome com o qual deus nomeia a si mesmo é a tal ponto uma experiência da letra, que não pode ser proferido (nomen innominabile). Para o místico, o som e a letra coincidem e daí a força criadora do Nome. A auto-nomeação divina seria como anterior ao primeiro ato da criação e esta, a criação, seria tão somente emanação das letras que compõem o nome divino (daí o caráter impronunciável do nome do deus judeu). Em hebraico a palavra ot quer dizer não somente "letra", mas também "signo". Daí as teorias cabalísticas pensarem as letras como assinaturas secretas (signos secretos) do divino em todos os graus do processo da criação. Isaac "o cego" - sobre quem Scholem diz ser talvez o primeiro cabalista provençal historicamente individualizado - dizia que toda letra, como configuração de forças criadoras divinas, representa as formas supremas (divinas) e, ao assumir um aspecto visível no plano terreno, passa a possuir um corpo e uma alma. Esta, a alma, seria a articulação do espírito divino que vive na letra (proveniente do sopro da criação), de modo que todo o criado está fundamentado na linguagem divina, à qual, porém, nós homens não temos acesso. É-nos deixada como herança a "maldição" de saber reconhecer as letras do nome divino (o tetragrama), porém, a impossibilidade de pronunciá-lo. De certo modo, falamos aqui de uma gramática do inominável, do que não pode ser proferido; isto é, no fundamento (a letra) de toda palavra e de todo proferir (a fonética, a voz), existe uma negação fundamental. E isso não só na cabala judaica. Também na mística cristã, cuja experiência do êxtase é justamente um calar-se, um não proferir palavra, diante do Absoluto para nele se integrar no silêncio que tudo sabe (e eis o paradoxo místico cristão, tão bonito em João da Cruz, por exemplo). Antes até, nos gregos, há o problema do gramma como signo e ao mesmo tempo elemento da voz (da fonética), num espécie paradoxal de signo de si mesmo.
Ah, mas eu só queria falar do "s" com o qual brincava há pouco. Não quero entrar em problemas enigmáticos fundamentais (e talvez por isso, além de brincar com o "s", tenha brincado um pouco com deus). Desejo apenas brincar com as letras, num jogo sempre aberto, porém com percursos que são obrigatórios - as regras de formação das palavras dentro numa língua (uma vez que somos homens e não deus). Porém, brincar com as palavras hoje, uma vez que já aprendi o jogo, não tem o mesmo significado do que para uma criança. Aprendi a formar palavras e isso só se faz uma vez: aprender. Aliás, Benjamin fala disso com incrível Sutileza num texto chamado Jogo das Letras, em Infância em Berlim. Ele fala de uma saudade de algo que acontece apenas uma vez, isto é, o ato de aprender. Porém, talvez pensar num modo de conseguir manter esse estado potencial em que aprender seja sempre possível é um ponto a não se perder de vista (e essa era a prova de vida do próprio Benjamin). Mas, para hoje, estaria extravasando em muito meu gozo com as letras.

Imagem: Giovannino de' Grassi. Letras góticas de um livro de modelos. 1390. Biblioteca Civica di Bergamo.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Prince, Eros e o copyright

Por Peter Szendy

Prince serve aqui de prisma para a exploração das estações musicais [tubes][1], por meio de duas de suas músicas. As produções desse artista, cuja troca de nome por um símbolo do amor impronunciável no curso dos anos 1990 ficou famosa, deveriam nos fazer aprender um pouco mais sobre o que mantém juntos o erotismo e a estação musical [tube], assim como sobre as modalidades de auto-enunciação da mercadoria musical.

Joy in Repetition é uma canção um pouco esquecida de Prince. No entanto, e isto é verdade, é uma bela canção enterrada no insípido álbum Graffiti Bridge (1990).

Antes de retornar a Musicology, esse diálogo melodramático da mercadoria musical que começamos a analisar (Vacarme n° 43), vale à pena pararmos um pouco no “clube da trigésima sexta” que serve de palco à história de amor rápida, banal e, entretanto, excepcional que vive o jovem encenado por Prince. No clube, onde se canta a alegria na repetição (Joy in Repetition), encontram-se poetas (poets) e cantores de meio período (part-time singers), enquanto um grupo (a band) toca uma estranha canção. Essa canção dura um ano – e isso é dito, com efeito, na própria canção (the song is a year long). E, assim que o jovem entra no clube, a canção está sendo tocada já há meses, (it had been playing for months / when he walked into the place). Já há meses que ela está sendo tocada, ela está lá para ser tocada. E, no entanto, como ela perdura já há tanto tempo e ninguém mais presta atenção nela (no one seemed to care), reina no clube um espécie de indiferença geral, de ar de empáfia (an introverted, “this is it” look on most of their faces).

Mas eis que o jovem, ainda que frequentador assíduo do clube, ali percebe pela primeira vez “esta mulher” que, ao microfone, repete sempre duas palavras, provavelmente há meses, talvez desde sempre (up on the mic repeating two words over and over again / was this woman he had never noticed before). Ele se perde no modo como ela articula essas duas palavras (he lost himself in the articulated manner in which she said them). Duas palavras, duas palavras que devem ter sido tantas vezes repetidas, duas palavras que, no entanto, a canção, enquanto já as descreve nas suas frases, ainda está à espera.

Essas duas palavras, these two words, são Love Me. Palavras de Eros, banais, inúmeras vezes encontradas em inúmeras canções de amor que serão repetidas durante anos. Mas a canção, esta canção, difere-as, reserva a repetição dessas duas palavras para seu fim, seu fim sem fim em forma de turbilhão repetitivo acompanhado pela jubilação da guitarra solo. Ela ainda só anuncia essas duas palavras, these two words, separando-as anteriormente pela dicção, pelo ritmo das três silabas (these – two – words) que as descreve por antecipação: é um trio de sílabas deslocado em relação à pulsação geral, como enfatizado na voz de Prince que canta, lascivamente, “um pouco antes do tempo” (a little bit behind the beat), “somente o suficiente para deixá-los excitados" (just enough to turn you on). De modo que o que parece já ligar o desejo de Eros é essa lacuna que, com antecedência, antes mesmo que essas duas palavras tão banais sejam pronunciadas na canção, cavam o tempo, o tempo de sua repetição por vir. Enfim, o jovem já não se detém (he could take no more) e acaba por se deixar tomar por “essa mulher” para carregá-la para fora da cena, através de uma porta dos fundos (he dragged her from the stage... through the back door).

Mas quem é que o jovem toma e carrega desse modo? Também ele gostaria de saber – ele diz (he said): Diga-me, qual é o teu nome? (Tell me, what’s your name?) Ao que ela responde repetindo somente as mesmas palavras, mais e mais (she only said the words again). Ele não saberá, portanto, quem ela é, “essa mulher” cuja voz nunca se deixa entender, já que ela é somente mencionada, relatada por meio do discurso de Prince. Ela, aquela que ele toma e carrega para fora da cena, talvez não seja nem mesmo um quem, um alguém, mas, isto sim, a própria repetição. A repetição que coloca em movimento a canção, a repetição que prossegue e se espalha por si só, de acordo com esta lacuna tantas vezes frisada: behind the beat, “atrás do tempo”, dizia a voz de Prince comentando o fraseado das duas palavras, as quais ele descreverá alegremente a escansão como caindo “entre as gotas” da chuva que começou (two words falling between the drops). Entre: na lacuna que se cava no seio da repetição.

Desde Un air comme ça até Parole, parole, parole e além, não cessamos de verificar tal lacuna no curso dessa novela radiológica[2] [tubologique] que termina: na fantasmagoria da estação musical [tube] é a própria mercadoria musical que fala e canta, que celebra e comenta sua auto-produção repetida ao infinito. É ela mesma que nos mantém na lacuna de seu desejo de si mesma, sempre relançado pois sempre diferido.

Prince tinha compreendido isso e disse melhor que ninguém, sem dúvidas que apesar dele mesmo, já que ele se lembrava de onde vinha este nome, Prince, esse sobrenome de soberano no mundo globalizado do mercado mor da indústria do disco. Ou melhor, de onde tal nome voltava, desde aquela desapropriação que agora se repetia na recuperação do nome, como também da própria estação musical [tube].

Em 1994, durante as negociações conflituosas com a gravadora Warner Bros. para a saída do álbum The Gold Experience, Prince decidia que iria se fazer chamar por um símbolo impronunciável (the love symbol), com o qual ele já havia intitulado um álbum de 1992. Ele aparecia em público com a palavra slave (escravo) inscrita em maiúsculas no seu rosto. E declarava:

“Meu primeiro passo em vista da minha emancipação das cadeias que me ligam à Warner Brothers foi mudar meu nome de Prince para . Prince é o nome que minha mãe me deu quando nasci. Warner Bros. tomou esse nome, dele fez uma marca registrada (trademarked it) e o utilizou como o principal instrumento de marketing para promover a música que escrevia. A companhia possui o nome Prince e toda música a ele associada... Eu me tornei um simples peão utilizado para produzir mais dinheiro para as contas da Warner Bros... Nasci Prince e não gostaria de adotar um outro nome convencional. A única substituição aceitável para meu nome e para minha identidade era [...] um símbolo impronunciável, isto é, uma representação de mim mesmo e do conteúdo da minha música (what my music is about). Esse símbolo estava presente no meu trabalho há anos; é um conceito que nasceu de minha frustração; é o que eu sou. É meu nome.”

Liberado de seu contrato com a Warner em 1999, Prince retomou seu nome em 2000. Mas, não importa qual seja o valor dos argumentos para essa reapropriação,[3] esse episódio do símbolo impronunciável teria feito de Prince uma espécie de logotipo que não estava longe de se parecer com o signo do copyright (©).

Compreende-se, portanto, que, em Musicology, nesse teatro das operações que, no entanto, transformou a estação de rádio [tube] em produto de uma guerra econômica e estratégica, a mercadoria musical luta por sua alma, pela alma de seu “eu musical”. E é possível dizer de Prince, retomando estas palavras de Benjamin em relação a um dos poemas em prosa de Baudelaire, que “quem fala ali é a própria mercadoria”.[4]

É por isso, de resto, que em Musicology, a cena de auto-produção da estação de rádio [tube], por assim dizer, retornou ou foi invertida, como se a mercadoria musical soberana gostaria de ter a última palavra: não é mais uma cena de amor, como em Parole, parole, parole ou Joy in Repetition, mas uma cena de combate que se encontra no fim, uma vez que a canção acaba com um chute na velha escola (Kick the old scool joint / 4 the true funk soldiers). Não se trata, portanto, de colocar em cena o desejo da rádio [tube] na rádio [tube], esse desejo que a coloca em movimento; trata-se, isso sim, de uma espécie de código que marcará a propriedade musical, ecoando as palavras que têm uma espécie de fascínio de injunção judiciária (don’t you ever touch my stereo, “jamais toque meu estéreo”, compreende-se, após outra reivindicações como: These are my records, “estes são meus discos...”).

É no final da canção, assim, é para o fim em si mesmo como um valor de mercado reapropriado que Prince arrola, tais como marcas desapropriadas dele mesmo, amostras de seus sucessos passados: na ordem, If I was your girlfriend, 17 days, Kiss, Sign O’the times e Little red corvette.

Como esse tipo de reserva legal de si, que vem tomar o lugar da eterna love story da “baby” e do “cara” de Boris Vian, a fantasmagoria do mercado que fez a grande época das estações de rádio [tube] chega ao seu fim. E com ela nossa novela que, episódio após episódio,[5] tentou prestar atenção ao modo com o qual as estações de rádio [tubes] falam de si mesmas – isto é, dessa máquina auto-desejante que elas são – falando de tudo e de nada.

Texto originalmente publicado em Vacarme 44, été 2008 e disponível em: http://www.vacarme.org/article1616.html

Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.


[1] N. de trad.: tube designa tanto rádio (em referência às válvulas dos antigos aparelhos), quanto as estações de rádio, os canais de mídia, bem como, em certo sentido, os auto-falantes de um aparelho musical, ou ainda, a reprodução de uma música. No correr do texto a tradução para o português varia, porém, mantive o original entre colchetes.

[2] N. de trad.: seria algo como a “novela que conta a história das estações musicais”.

[3] O rapper Chuck D., por exemplo, a quem Prince homenageia ao nomeá-lo em Musicology, vai mais além do que uma simples luta para se reapropriar de seus direitos, já que ele é um dos advogados mais engajados pela causa do peer to peer. Assim declarava em outubro de 2003: “P2P to me means ‘power to the people’” (cf. www.wired.com, « Rappers in Disharmony on P2P »).

[4] Charles Baudelaire. Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme, traduction française de Jean Lacoste, Payot-Rivages, 2002, p. 85.

[5] É possível encontrar um eco em Tube. La philosophie dans le juke-box, no prelo nas Éditions de Minuit.

domingo, 10 de julho de 2011

Antropogênese


Tentemos enunciar em forma de teses os resultados provisórios da nossa leitura da máquina antropológica da filosofia ocidental:
1) A antropogênese é o que resulta da cesura e da articulação entre o humano e o animal. Essa cesura se dá, primeiramente, no interior do homem.
2) A ontologia, ou filosofia primeira, não é uma inócua disciplina acadêmica, mas a operação em todos os sentidos fundamental na qual ocorre a antropogênese, o tornar-se humano do vivente. A metafísica é tomada desde o início nessa estratégia: ela diz respeito exatamente àquela metá que cumpre e garante a superação da physis animal na direção da história humana. Essa superação não é um evento que se cumpriu de uma vez por todas, mas um acontecimento sempre em andamento, que decide a todo instante e em todo indivíduo o humano e o animal, a natureza e a história, a vida e a morte.
3) O ser, o mundo, o aberto não são, no entanto, outra coisa em relação ao ambiente e à vida animal: eles são apenas a interrupção e a captura da relação do vivente com o seu desinibidor. O aberto é tão somente uma apreensão do não-aberto animal. O homem suspende a sua animalidade e, desse modo, abre uma zona "livre e vazia", na qual a vida é capturada e ab-andonada numa zona de exceção.
4) Exatamente porque o mundo abriu-se ao homem somente por meio da suspensão e captura da vida animal é que o ser é desde sempre atravessado pelo nada, a Lichtung é desde sempre Nichtung.
5) O conflito político decisivo, que governa qualquer outro conflito, é, na nossa cultura, aquele entre a animalidade e a humanidade do homem. Isto é, a política ocidental é cooriginariamente biopolítica.
6) Se a máquina antropológica era o motor do tornar-se histórico do homem, então o fim da filosofia e o cumprimento das destinações epocais do ser significam que a máquina gira hoje no vazio.
Neste ponto, dois cenários são possíveis na perspectiva de Heidegger: a) o homem pós-histórico já não mantém a própria animalidade enquanto não passível de abertura [indischiudibile], mas procura governá-la e dela se encarregar por meio da técnica; b) o homem, o pastor do ser, apropria-se da sua própria latência, da sua própria animalidade, a qual não permanece escondida nem é tomada como objeto de domínio, mas é pensada como tal, como puro abandono.

Giorgio Agamben. L'Aperto. L'uomo e l'animale. Torino: Bollati Boringhieri, 2002. pp. 81-82 (Cap. 17 - Antropogenesi). Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

Imagem: Hieronymus Bosch. Julgamento Final (painel central do tríptico). 1504-1508. Akademie der bildenden Künste, Vienna.

sábado, 9 de julho de 2011

Entre cemitérios e histórias


Em uma das vias internas daquele cemitério notei algo peculiar: quase todas as placas com indicações de nomes, datas de nascimento e falecimento, homenagens, lembranças, enfim, epitáfios de modo geral, haviam sido arrancadas. Em alguns mármores ainda era possível ver a marca da violência do gesto de retirada de tais placas (arranhões, sinais de espátula etc.), sinais que davam notas de que a ação não era algo autorizado pelos vivos daqueles mortos. Aquele cemitério, cujas sibipirunas frondosas velavam pelos restos dos ali sepultados, era muito recente para que ninguém notasse a falta das placas (é de se espantar o fato de que sepulturas de famílias importantes daquela localidade também haviam sido atacadas). A imagem, no entanto, era curiosa num sentido: nenhuma das fotos às quais correspondiam as placas furtadas havia sido retirada.
Lembrei-me imediatamente dos diários de guerra do Brecht. Fotos, recortes de jornais, enfim, imagens que diziam respeito à guerra eram tomadas por Brecht e reconfiguradas no seu ABC da Guerra. Para cada foto, por mais terrível que pudesse ser, Brecht compunha um poema lírico, um epigrama, que lhe servia de legenda. Ele sabia que os epigramas eram costume dos gregos (na época clássica), que os compunham justamente para suas sepulturas. O projeto brechtiano procurava dar às imagens recolhidas uma nova figuração a partir do texto, de modo que ao poeta era preciso fazer falar os mortos da guerra pelos epigramas como meio de justificar eticamente uma palavra poética em meio ao terror instaurado pela guerra. Ora, qual a razão para a associação por mim feita entre o ABC de Brecht e as placas furtadas do cemitério das sibipirunas? Talvez a resposta pudesse flamejar num outro cemitério que muito me chocara: o cemitério judaico de Ferrara.
É fato que entre 1942 e 1944 milhares de judeus foram deportados da Itália para campos de concentração nazistas. Famílias inteiras foram exterminadas e, com elas, os cuidados com os antepassados. Em Ferrara, algumas partes do cemitério judeu estão abandonadas, principalmente uma na qual estão os túmulos construídos por volta dos anos 1890-1930. A imagem era assustadora: centenas de tumbas completamente tomadas por musgos, pela hera, deixavam uma sensação de abandono absoluto (um vazio de vivos e mortos). De modo contrário ao que aconteceu no cemitério em que há pouco me encontrava, em Ferrara todos os dados, os nomes, os epitáfios, tudo, mesmo nos jazigos abandonados, ainda estava ali. Era como se daqueles seres de outrora, cujas memórias se foram em conjunto com os seus então sobreviventes para Auschwitz ou Treblinka, ainda era possível saber algo (ao menos o nome). É óbvio que esse seria um saber inventado, criado: eu mesmo inventei histórias para algumas daquelas pessoas - histórias nas quais acreditei, nas quais o meu eu-narrador fazia existir um mundo inexistente, mas não por isso menos real.
Os nomes judeus de Ferrara talvez fossem as legendas faltantes para as fotografias do cemitério das sibipirunas. Claro, estava divagando e, talvez, mesmo delirando. Porém, a composição que eu podia fazer entre os mortos judeus e os mortos imigrantes ou filhos de imigrantes (em sua maioria, como é comum no novo mundo, era disso que se tratava no cemitério das sibipirunas) era parte de uma vontade minha, uma vontade de inventar histórias nas quais poderia, como Brecht, entrever uma luz de vida em meio a um mundo de trevas. Talvez o fato de em cemitérios, em meio aos mortos, tentar encontrar uma luz seja um sintoma de uma dissonância, de uma incapacidade de ver em meio às luzes que cegam do mundo espetacularizado. As trevas são hoje brilhantes e, diante delas, criar, mesmo que histórias delirantes, é uma questão de sobrevivência e, acima de tudo, uma questão ética.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Outra carta



Para minha destinatária impossível.

Até pensei em não mais lhe escrever, mas parece que havia algo mais no som das árvores ao vento do que simples devaneios meus. Acho que era outra carta, outros sussurros, outros encantos. No último mês escrevi um romance água com açúcar, daqueles que você detesta. Até pensei que poderia lhe agradar, mas desisti de enviá-lo no último momento, na fila do correio. Era uma longa fila, cheia de rostos estranhos, de cheiros desagradáveis. Mas num momento, olhei para aquela japonesa e lembrei-me da Lady Wakasa, dos Contos da lua vaga do Mizoguchi (que você provavelmente não viu). Inevitavelmente aquele rosto causou-me calafrios. Ela, a japonesa da fila, era como um signo da lua vaga. O espectro Lady Wakasa, no entanto, só podia ser, em mim, a imagem sua, destinatária impossível. No mesmo momento em que vi aquele rosto luminoso, mas que trazia sombras ao meu mundo (acho que era isso no filme também: Lady Wakasa sempre radiante e pálida, como se dela pudesse quase que emanar luz; tolo Genjuro... era morte que daquele corpo emanava), olhei para meu dorso em busca das frases em sânscrito que me salvariam daquela imagem. Nada! Nada! Estava condenado, querida! Condenado a não saber o que fazer do livro que lhe enviaria, das imagens que agora podia ver, do calafrio causado por aquela pálida senhora japonesa. Aliás, em mim não sentia uma disposição como a de Genjuro, não pensava em lhe comprar quimonos, em presentear-lhe com belas joias, em ficar contigo na sua mansão inexistente. Para mim a vida era guerra (e como não me lembrar da dedicatória que o Oswald tinha feito no exemplar de Serafim Ponte Grande dado a Murilo Mendes: "Para o camarada Murilo Mendes. Saúde e Guerra!") e talvez este fosse meu lado Tobei. Mas, mesmo assim, também não era tolo o suficiente para acreditar nas poses de um samurai feito por falcatruas. Não, não roubei nenhuma cabeça para lhe dar, querida. Nem para você, nem para ninguém. Queria era guerrear sozinho, queria acordar e ver que a mansão tinha sido queimada na guerra que você não quis ver. Ah, mas por que achei que deveria lhe escrever essas imagens de Mizoguchi? Por que se nem ao menos o livro água com açúcar consegui lhe mandar? Talvez seja por isso que mais uma vez só consigo sentir sua impossibildidade; talvez seja a distância de sonhos trocados em escambo; talvez sejam reverberações do excesso de vinho... saí do correio com o pacote em mãos e, tão logo avistei um latão de lixo, joguei-o. Gesto simples, mas que me entorpeceu, que me fez entrar em alguma coisa como um tédio profundo, algo parecido com aquilo que ao ser analisado por um filósofo alemão (de quem talvez você não goste muito), deixou-o como que suspenso entre seu gosto por Rilke e seu desejo por um pensamento autêntico. É, nem uma cotovia poderia ver o aberto. Mas o que se abria pra mim, querida, era uma vontade nova. Queria sim lhe contar sobre um mundo novo (um mundo, não um ambiente), sobre uma vida vivida e outra não vivida, sobre imagens que me fizeram chorar e outras que me fizeram rir, sobre o fluxo e o refluxo do tempo... enfim, era um desejo palpitante, mas que, talvez, só numa carta conseguiria lhe contar. Porém, a guerra me chama, a saúde crepita, e não me resta senão seu endereço impossível.
Do seu remetente impossível.

p.s.: Mando-lhe flores... uma pena, mas elas devem chegar já sem perfume.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Uma noite e uma verdade


Há um tempo que não colocava música para dormir. Pelo que me lembro, tinha sido um hábito antigo que reapareceu um tempo atrás e que voltou a desaparecer sem deixar vestígios. Procurando pelos sonhos que também haviam desaparecido, decidi que naquela noite iria colocar meus novos discos de Andrés Segovia. O violão que soava músicas que há anos não ouvia, o barulhinho agudo do cd a girar no velho aparelho e o painel vermelho indicando o número da faixa eram um novo companheiro na noite. O estômago doía - talvez por não ter jantado -, a cabeça entrava em divagações cretinas, os cobertores eram como pesos que, por pressão, tentavam esquentar. Nada naquela noite era digno de sonho.
Pensava nos encontros e desencontros e, talvez, com tais pensamentos tentasse recobrar minhas dimensões oníricas: nada. Era como se a noite tivesse me roubado os lugares em que tinha ido, como se minhas imagens não fossem capazes de se reagruparem nos meus desejos. Em suma, a noite tinha um gosto de um sono eterno, um gosto de morte. Levantei e troquei de disco. Agora Segovia tocava uma mélodie que Grieg tinha composto para piano que muito me agradava (aliás, muito daquelas músicas - e o box que ganhara com os 6 discos das gravações americanas de Segovia nas décadas de 40 e 50 era maravilho - eram transcrições para violão que Segovia havia feito de composições para outros instrumentos). Não tinha como me furtar a certos pensamentos (estes que também não me deixavam naquele instante sonhar): como nunca comentei com meus mais próximos que Segovia tinha sido um dos meus ídolos de adolescente (nem com quem dividi intimamente a vida). Não sabia; talvez por vergonha, talvez por traumas do período difícil da adolescência. Não sei... Levantei da cama novamente, mesmo com o frio, e procurei, nos outros discos, algumas músicas que eu tinha aprendido nas minhas aulas de violão clássico. Encontrei o Bourrée em E menor de Bach que tanto me fascinava (e que, mal e porcamente, ainda hoje consigo dedilhar uns trechos). Coloquei-o e era como se a noite tivesse aberto a porta para minha entrada nas trilhas das imagens que há pouco pensara ter perdido.
Tentei embarcar no sono, tentei correr atrás daquele som intrigante, tentei abraçar uma amada perdida não sei onde, tentei dizer os não ditos todos dos dias de verão, tentei aplacar o frio me redobrando sob as cobertas, tentei, tentei... A voz daquelas cordas era um misto: angústia e alegria, dor e regozijo, frustração e satisfação. Como dizer essa verdade de mim que parecia ter encontrado numa noite sem sonhos? Como? Virei-me para o lado ao qual dirigia minha voz noturna (principalmente quando havia música) e só pude me lembrar do sorriso sorrateiro de Ninetto Davoli, o Othelo pasoliniano - aqui, em Che cosa sono le nuvole, literalmente -, ao sentir em si a verdade. Porém, era na advertência de Totò a Ninetto em que pensava agora: isso, o que fazia Ninetto sorrir, era a verdade, mas era preciso não nomeá-la, pois tão logo nomeada deixa de existir. Tentei também eu sorrir, como Ninetto, mas não consegui... cai no sono e sonhei: ao menos aquela noite estava salva. E, sem mais, dei por conta que talvez minha verdade só pudesse ser sonhada...

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Ladies and gentlemen



Apresentação da mostra de Andy Warhol em outubro de 1975, em Ferrara, feita por Pier Paolo Pasolini.

Falando com Man Ray a respeito de meu filme, Os 120 dias de Sodoma, chegamos a um ponto que meu interlocutor não compreendeu. Man Ray é lúcido, inteligente, presente. Seus modos são frescos como há quarenta anos. Não há nenhuma razão no mundo pela qual ele não possa compreender algo.
Todavia, mais do que falta de compreensão, havia nele um buraco, um vazio. Do que se tratava? Eu lhe dissera que havia ambientado o romance de Sade em 1945, em Salò. Era isso que ele não compreendia. Não compreendia porque lhe fugia o fato de que 1945 fosse um ano particularmente significativo (o fim de uma guerra: e daí? Em 1918 também não havia terminado uma outra?) e, sobretudo, escapava-lhe o fato de que Salò tivesse sido a capital de uma pequena república fascista. Além disso, tomava Salò por "salaud" (bastardo), diga-se, para minha completa satisfação.
Andy Warhol teria me compreendido melhor? Não sei se também Warhol, como Man Ray, cultua Sade. Seus travestis têm uma comovente coragem que não é exatamente sadeana. Mas 1945 é significativo para Warhol, e a palavra Salò lhe diz algo?
É uma pergunta um pouco superficial, eu sei. Mas faço-a porque nela se coagula uma série, ou melhor, um emaranhado de perguntas. A história, para Warhol, pode ser dividida? Pode existir um momento no qual um seu modo de ser termina e um outro tem início? Pode haver uma divisão histórica no universo em que vivemos e, portanto, no pequeno universo concentrado e precioso em que trabalhamos? Pode-se traçar uma linha divisória entre os homens? E, em particular, em suas consciências? E, mais em particular ainda, no terreno ideológico das suas consciências? Há algo que possa quebrar o "todo" que a mente profanadora do artista - por puro jogo - coloca em discussão - simula ou adora, venera ou torna vã? O fascismo pode quebrar algo nesse "todo"? Ou, ao contrário, uma revolução marxista pode, primeiramente, separá-lo por meio da oposição fatal e total que é a luta de classes, e, em seguida, transformá-lo até fazer com que desapareça?
Uma mensagem que da Europa chegue na América implica todas essas divisões, esses desdobramentos, essas oposições da realidade: e é misteriosa por isso. Ao contrário, uma mensagem que da América chegue à Europa implica unidade, homogeneidade, compactividade: provém de uma entropia. E é, por isso, ainda mais misteriosa.
Tenho diante dos olhos as serigrafias e algumas pinturas de Warhol. A impressão é de estar diante de um afresco de Ravenna representando figuras isocéfalas, todas elas, entenda-se, frontais. Iteradas ao ponto de perder a própria identidade e de serem reconhecíveis, como os gêmeos, pelas cores de suas roupas.
A abside da catedral que Warhol constrói e em seguida lança aos ventos dispersando-a nos tantos retalhos das figuras isocéfalas e iteradas é, com efeito, bizantina.
O arquétipo das várias figuras é sempre o mesmo: perfeitamente ontológico.
É a qualidade de vida americana que pareceria ser a equivalente da sacralidade autoritária da pintura oficial cristã das origens: isto é, fornecer o modelo metafísico de toda possível figura vivente. Para tal modelo não existem alternativas, mas apenas variantes. O homem americano é único, não obstante o pluralismo efetivo e reconhecido. É, de fato, mais forte o Modelo do que as infinitas pessoas reais que podem passar pela 42ª Avenida às sete da tarde no verão. Então, se o ambiente "tomado" se restringe ao "Golden Grape", este nada pode opor ao Modelo, senão variantes reduzidas ao mínimo: uma interação obsessiva, a Obsessão. O nome e o sobrenome dos travestis não bastam, seus registros são irrelevantes; eles são absorvidos na unicidade da Pessoa que os prefigura, acampando junto das outras Pessoas arquetípicas no céu da Entropia americana. Estamos diante do Travesti e da estreita lista de suas, ainda que sejam inumeráveis, variantes. Quando soubermos que um dos Travestis "particulares" chama-se Candy Darling e que morreu de câncer dando, no dia anterior à sua morte, uma festa em honra às "amigas" - festa caracterizada por uma gigantesca quantidade de rosas brancas -, teremos consciência de um dado que nada altera na Pessoa apriorística e única da serigrafia.
Em que consistem as variantes? Em duas ordens ou estratos técnicos: a) a fotografia dos sujeitos (ampliação, estampa serigráfica); b) a coloração da ampliação. Como se vê, trata-se de duas "aplicações" colocadas uma sobre a outra. Sobre a superfície branca primeiramente é feita a explosão da realidade (física, psicológica, sociológica): e, em seguida, sobre suas últimas e desgastadas peças, é colado o affiche fúnebre que o fixa no seu átimo inextinguível de pura vitalidade. A segunda operação é, com efeito, a mais pictórica: as tintas acrílicas - puras, em absoluto não texturizadas - são dispostas, sobre a superfície que contém a fotografia dilatada, num padrão aparentemente causal. Porém, não se trata de "manchas", mas de "retalhos" colados. A estampa funde tudo numa única superfície. A escolha das formas do "retalho colado" e de suas cores é confiada a uma espécie de inspiração calculada e quase automática. As formas do retalho colado jogam com as formas realísticas da fotografia - desdobrando-a, desequilibrando-a, exaltando-a - em sobreposição sempre defasada em relação à anatomia, mas sempre subordinadas à anatomia (privilegiando os olhos, as bocas, os cabelos e os fundos). A referência cultural mais direta de tal técnica são os cartazes publicitários e os affiches formais, mais do que os detalhes da pintura fauve.
Quanto à primeira ordem ou estrato técnico - o da fotografia - é preciso observar que a fotografia parece sempre e de modo obsessivo a mesma; sempre frontal ou em diagonal, nunca de perfil; sempre em "pose", nunca verdadeira; sempre à maneira das "Estrelas" cinematográficas, nunca ao modo do corriqueiro quotidiano. Isso "queima" a psicologia: mas relativamente.
De fato, os lineamentos ou conotações falam por si só uma linguagem psicológica, mesmo com, e não obstante, o esforço de auto-anular-se (ainda antes de ser fotografia ou pintura) em um cliché humano. O esforço que fazem esses Travestis para mostrar-se triunfantes não é de uma irreal e comovente humanidade? Mas além desse esforço eles não vão. Compreende-se: o "Diferente", em seu gueto permissivo de Nova York, pode triunfar conquanto não saia de um comportamento que o torne reconhecível e tolerável. A arrogância feminina desses machos é apenas a careta da vítima que quer comover o carrasco com uma risível dignidade real. E é tal careta que torna todos esses Travestis psicologicamente iguais, como dignatários bizantinos em uma abside estrelada.
Desse modo, também o universo de Warhol é de algum modo duplo e vive em drama opositivo. Mas a se oporem estão duas ontologias: a ontologia formal e a ontologia psicológica. A uma série de manchas (retalhos coloridos) cuja estrutura é decidida de modo apriorístico mesmo quando é parcialmente deixada à sorte, opõe-se uma série de retratos fotográficos cujo significado é também apriorístico e predeterminado.
A mensagem de Warhol para um intelectual europeu é uma unidade esclerótica do universo, na qual a única liberdade é a do artista que, substancialmente desprezando tal universo, com ele joga.
A representação do mundo exclui toda possível dialética. É, ao mesmo tempo, violentamente agressiva e desesperadamente impotente. Há, portanto, em sua perversão de "jogo" cruel, astuto e insolente, uma substancial e incrível inocência.

Pier Paolo Pasolini. Ladies and Gentlemen. In.: Saggi sulla Letteratura e sull'Arte II. Milano: Arnoldo Mondadori, 1999. A cura di Walter Siti e Silvia De Laude. pp. 2710-2714. (Tradução de Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Andy Warhol. Ladies and Gentlemen. 1975.