sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Parágrafo de imagens e presentes


A dor "esquecida" se entranha e se alastra.

Ao acordar percebi o movimento dos sonhos ainda de forma muito latente. Todas as histórias fantásticas vividas ao longo da noite, tudo aquilo que agora deveria tratar com o carinho lírico, o mesmo com o qual devemos tratar nossas memórias, era imóvel imagem da criação mais fantástica do homem: a eternidade. O porvir, as sombras de um futuro incerto, confundia-se com imagens, da mesma forma incertas, de um passado. No entanto, sabia que o carinho a estas despendido era apenas uma maneira de tentar moldá-las, ou melhor, emoldurá-las em quadros nos corredores das lembranças. Doce ilusão; aliás, ingênuo imaginário. Nem o passado, nem o futuro ganham forma plena, definitiva, estática. Nem mesmo os sonhos, que há pouco preenchiam o vazio da escura noite, poderiam adoçar a angustiosa sensação de estar aqui, presente, nesta criação um pouco menos fantástica do homem: o tempo. A perspectiva futura, engano da esperança no porvir, e as reminiscências do passado, engano do medo do findar; não me restava senão a contra-face animada da vigília: não o puro sono vazio e na escuridão, mas o sono animado por um "h", o sonho. Talvez aqui encontre não a eternidade ilusória da simultaneidade dos tempos - o ver in totum o que agora vemos em parte; o contemplar face a face o que agora videmus nunc per speculum in aenigmate -, mas uma composição meticulosa dos vários tempos no tempo presente. Talvez seja hora de despertar e, vendo-me na iminência de fazê-lo, sinto que acabo de presentear a Troia dos sonhos com um cavalo de madeira repleto da angústia que irá, a todo custo, forçar-me a encarar as ilusões do tempo e da eternidade nas superfícies e dobras imperfeitas das minhas imagens de presente. E talvez assim Valéry possa me dizer que "o homem só é homem na superfície. Levante a pele, disseque: aqui começam as máquinas. Depois, você se perde numa substância inexplicável, estranha a tudo o que você conhece e que é, entretanto, o essencial."

Imagem: Tintoretto. Lamentação sobre o Cristo morto. 1560. Gallerie dell'Accademia, Venezia.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Asja Lacis





Brecht 'retém' o melhor da teoria literária soviética dos anos 20 (em especial Tiniánov, Tretiakov, Brik) e é o único que lhe dá seguimento nos anos duros da dec. de 30, em que impera o realismo socialista. Daí a polêmica entre Brecht e Lukács não ser, na realidade, senão uma crítica condensada da luta entre duas tradições centrais da crítica maxista. Os escritos sobre literatura de Brecht devem ser lidos no âmbito da teoria literária inaugurada por Tiniánov e desenvolvida por Bakhtin, Mukaróvski e Walter Benjamin.

Em 1923, em Berlim, Brecht conhece a diretora teatral soviética Asja Lacis, e é ela que o põe em contato com as teorias e experiências da vanguarda soviética. Por intermédio de Asja Lacis, Brecht conhece a teoria da 'ostranenie' elaborada pelos formalistas russos e por ele traduzida como efeito de estranhamento, ou simplesmente efeito v. É notável o deslocamento operado por Brecht para mostrar a origem russa de sua teoria do distanciamento. Afirma que sua descoberta se dá em 1926, graças a Asja Lacis. A atriz, que tem um papel na adaptação feita por Brecht de 'Eduardo II' de Marlowe, pronuncia o alemão com um marcado sotaque russo, e ouvi-la recitar o texto produz um efeito de desnaturalização que contribui para que ela desvende um estilo e uma escrita literária baseados no desnudamento dos procedimentos. Nesta inflexão russa que persiste na língua alemã está, deslocada como num sonho, a história da relação entre a 'ostranenie' e o efeito de estranhamento.




Algum dia seria preciso escrever um texto sobre Asja Lacis. Colaboradora de Meyerhold e de Eisenstein, próxima do grupo de Maiakóvski, é a amante de Walter Benjamin, e por intermédio dela Brecht e Benjamin se conhecem. Em fim dos anos 30, Asja Lacis desaparece num campo de concentração stalinista. 'Asja Lacis já não me escreve', registra Brecht em seu diário de janeiro de 1939. Pode-se ainda apreciar a altiva e belíssima figura de Asja Lacis eternizada numa sequência de 'A ópera dos três vinténs', filmada por Pabst em 1931.






In: Ricardo Piglia. Formas breves. Trad. José Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. pp. 77-76.

Despertar



A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta pela nossa certeza de que essas coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nossos pensamento perante elas. Sempre acontecia que, quando eu assim despertava, com o espírito a debater-se para averiguar, sem sucesso, onde poderia achar-me, tudo girava em redor de mim no escuro, as coisas, os países, os anos. Meu corpo, entorpecido demais para se mover, procurava, segundo a forma de seu cansaço, encontrar a posição dos membros para daí induzir a direção da parede, o lugar dos móveis, para reconstruir e dar um nome à moradia onde se achava. Sua memória, a memória de suas costelas, de seus joelhos, de seus ombros, lhe apresentava sucessivamente vários dos quartos onde havia dormido, enquanto em torno dele as paredes invisíveis, mudando de lugar segundo a forma da peça imaginada, redemoinhava nas trevas.




PROUST, Marcel. No caminho de Swann. (trad. Jeanne Marie Gagnebin). Imagem: Aura. Paris, Murat Germen, 2009.

domingo, 23 de outubro de 2011

Na hora de dormir


Desconfio de quando digo muito; desconfio de quando digo pouco; desconfio de quando digo. Às voltas com um fantasma de mim mesmo, penso sobre o tempo perdido, sobre o tempo que se quer perder, sobre essas perdas de tempo que, quando desejadas, são ganhos. A vida e o tempo; o tempo e a vida; eu e ela; ela e eu. E era assim, uma troca de sorrisos. Porém, enquanto eu lhe sorria em português, ela me sorria em italiano; enquanto falávamos juntos, sabiás deixavam seus rastros na poeira das janelas; enquanto pensava em pausar definitivamente, ela só conseguia usar ponto e vírgula (ou seria o contrário?). Não confiar no que digo é talvez um sintoma das palavras que ousávamos falar demais. Talvez tenham sido as metáforas, talvez sejam as metáforas, talvez sejam elas em demasia. E pensava naquela personagem que dizia desconfiar das metáforas, mesmo que seja quase impossível não usá-las. Quando as escutava, pensava que me escondiam algo; quando as usava, pensava que estava escondendo algo de mim mesmo. Acho que é tudo fruto do "como", da comparação irritante e irremediável, dos enganos do uso de algo no lugar de outro, assim como o pensamento sobre o tempo passado como tempo perdido. E voltava a pensar nas trocas de sorrisos (quem tinha sido o intermediário?), e nos intercâmbios de tempos: o meu como seu? o seu como meu? E já começava a ser reticente... e não gosto das reticências, e não gosto de ser reticente, e não gosto de falar quando não deveria, nem de dever falar quando falar é um obscuro meio de metaforizar. Engano, ledo engano, achar que posso esconder de mim mesmo os algos que ficam balbuciando sob as metáforas...

Imagem: Miguel Bakun. Detalhe de "Porta dos sonhos". Coleção Particular. Sem data.

domingo, 16 de outubro de 2011

Paul Gauguin



Gauguin ao trabalho. O esotérico, desertado e deserdado artista, à beira da morte, com a feitura solitária de sua última e prima obra, o retrato da própria filha, na distante Dinamarca, que nunca voltará a ver. Lágrimas misturam-se às cores da palheta. O calvário transmuta-se em tintas e cavalete em meio a uma praia vazia. Resplandece a luz tropical em seu silêncio de morte.

Uma filha que em breve também morrerá, sem poder ter visto o retrato.


Ele sabe disso.


A última obra de Gauguin não deixou vestígios, foi queimada.

Sua obstinação fracassada é o marco de toda e qualquer obra que pretenda ser algo além dela mesma.


A inutililidade de seu gesto é a obra total, gesto de Sísifo que, ao rolar mais uma vez a pedra para cima dos despenhadeiros, condena todos os deuses e destinos no vazio impenetrável de uma provocação desesperada.


Seu tardio e humilde despertar é saber a arte como traço que as ondas do mar também apagarão.

sábado, 15 de outubro de 2011

Simpatia



"Todas as coisas se encontram em esboço / Tudo vive em transformação...". É assim que o poeta das metamorfoses pensa a vida. Nada é acabado, tudo é porvir, ainda que vivamos de restos de um futuro anterior (esse terá sido que não cansa de abalar as estruturas da eternidade), isto é, nesse tempo composto - e, no caso, penso que o resto é o particípio passado que acompanha o futuro. Consternado pelas intromissões da angústia em qualquer tipo de entendimento, não resta senão a dura constatação de saber-se condenado à existência. O tempo, a transformação, o ver as cores menos coloridas, a descida ao Hades da horas, o correr desenfreado da flecha para o alvo que decreta a finitude, são os aspectos de um esboço que, como artífices de nossas vidas, devemos apagar e reconfigurar, reapagar e configurar. Mas será que se trata de uma questão de apagamento e figuração? Engraçado como o com-figurar, o fazer com a figura, pode ser também a mensagem da morte tecida em linhas bordadas nas nossas vestimentas corporais que amarelam desde o nosso nascimento. Figuren, figura, é como os SS chamavam os judeus nos campos de concentração e extermínio (meras formas); e talvez no meu fim de tarde saturnino pense no com-figurar como, justamente, o modo contemporâneo (esse do ego eimi por excelência; do ego que basta por si só e para si só) de com-pôr relações seja justamente: como figuras - e, se lembrarmos do Typos grego, podemos inclusive dizer: fazendo tipo (talvez o que mais me enraiveça). Talvez mais um delírio, mas a impossibilidade das relações parece-me patente. Mas, talvez, eu possa tentar pensar uma síntese - e, claro, synthesis quer dizer com-posição, o outro modo de figurar -, uma outra tentativa de configuração de nossas vidas. E, talvez, esta não seja mais que uma simpatia com o outro. Ora, não é a simpatia nada além de com-paixão (syn-pathos); um outro jeito de configurar os esboços sem a empáfia do fazer tipo, do fazer como se pudéssemos terminar o desenho de nossas vidas. Simpatia, um deixar-se levar ao encontro do outro, um encontro incabado e sempre em movimento. Tal como o lápis imaginário que tece estas linhas, rasurando umas e fixando outras (um esboço), o movimento simpático é como um entregar-se justamente à decrepitude do tempo da condenação, já que a condenação é para todos. Não há inocentes vivos: existimos na condenação da existência, ou ainda, somos culpados. No encontro simpático há um saber-se desesperançado e, por isso, com companheiros de queda, com paixões amigas, com outros, uma vez que só os que fazem tipo crêem-se imagens achiropitas, imagens da eternidade, portanto, não esboços inabacabados, mas quadros intocáveis, incomunicáveis, sem paixão. Talvez o fazer-se em comum não seja nada mais do que um gesto de simpatia...

Imagem: Tiziano Vecellio. Caim e Abel. 1542-44. Santa Maria della Salute, Venezia.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Carta ainda impossível


Para minha destinatária impossível.

Querida, queria lhe falar sobre o abandono. Pois é, pode parecer uma coisa fatídica, ou pernóstica ou até mesmo banal - para não dizer um lugar comum, como talvez quereria você -, mas não falar seria algo, como esta carta, da ordem da impossibilidade. Não sei como a ideia me ocorreu; talvez do correr os olhos pelas flores amarelas das sibipirunas, tão negramente esmagadas no piche horrendo desta horrenda cidade; talvez ao ouvir a senhorinha que ao meu lado passava, também ela olhando para as flores, e dizia: "que lindo, tudo amarelo!"; ou talvez pensando que as flores caídas eram o sinal que as árvores me davam sobre o abandono que é a vida - deixavam a beleza do instante primaveril pela tentativa de lograr a subsistência da espécie. Mas talvez os porquês não sejam tão importantes, porque talvez eles mesmos, os porquês, não sejam nada além de um apegamento, de uma tentativa inóspita de apreender a eternidade do instante numa eternidade contínua (mais uma vez algo da ordem do impossível), esquecendo de esquecer, esquecendo que tudo é abandono. Abandonar, querida, também era um jeito convencional de expulsão de alguns da ordem social: colocados para fora, sem bando, sem laço social, sem possibilidades de conversar, sem possibilidades de fazer-se em comum. É, querida, veja como não é nada metafórica a relação do abandonado com a impossibilidade da nossa conversa. Se bem que por vezes penso que as suas cartas apenas não chegam até mim, que elas estão a correr o mundo de mãos em mãos (por aqueles olhos fascinados dos leitores vorazes de cartas alheias) antes de chegar a mim, talvez tarde demais. Mas talvez esse meu pensamento também não seja mais do que flores amarelas esmagadas no negrume do asfalto desta horrenda cidade.

Do seu remetente impossível.

p.s.: Iria deixar-lhe um beijo, porém, acabei me lembrando de que não há nada pior do que um beijo abandonado...

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Como ri...



Não pude aceitar que haviam lembranças "boas" e "más", felizes ou infelizes. Para mim, as lembranças não têm nada a ver com a felicidade. A carga afetiva se esgota na distância, a distância que existe entre o fato e a lembrança, entre a realidade e o pensamento, esse lapso estranho, irredutível, que permanece para sempre uma eternidade limitada, o fato numa ponta e a lembrança na outra. Não vale a pena perguntar-se pelo que houve no intervalo, porque não há intervalo. Tudo é fato e lembrança, num contínuo variado. O intervalo é uma ficção, uma construção mental. E, ainda assim, a distância existe, porque é o tempo. Mas o que quero dizer é que tudo é distância. Elástica, pequena como um átomo, grande como o céu. Entre a piada e a risada (porque é preciso entender uma piada), entre o que passou e o relato. Há situações que se vivem como um relato, às vezes me acontece, por deformação profissional, mas nunca entendo a situação na qual estou, por algum motivo que não consigo explicar a mim mesmo, e vivo-as como piadas cuja "graça" me escapa e devo inventar laboriosamente ao longo dos anos. Piadas das quais ninguém jamais poderia rir.

César Aira. Cómo me reí. Buenos Aires: Beatriz Viterbo, 2005. pp. 36-37. Trad.: Vinícius N. Honesko.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

À margem da Leitura de Jesi



A complexa dialética entre lugar comum e mito, na qual a leitura de Jesi situa a obra de Rimbaud, leva à original configuração da relação entre esta última e a própria vida do poeta. Mas onde a interpretação comum procura hipocritamente os sinais daquilo que a ela permanece inexplicável, a renúncia à literatura por parte do gênio, ainda na literatura, em que tudo por meio dessa termina, no fundo, na aura que circunda a imagem do enfant, este ensaio escolhe desde o início o arcano e se desvincula dos seus traços enganáveis: a obra não é a chave da biografia porque nesta não estavam contidos os sinais de seu próprio abandono. A poesia não se reduz à premonição do próprio fim.
"Existem obras de arte que têm o privilégio de ser compostas de lugares comuns e de tornar-se elas próprias um lugar comum à superfície da criação do artista." A noção de lugar comum indica aqui a reificação à qual a obra, ainda que "novíssima quanto ao seu presumido ser em si", necessariamente se expõe quando quer ser apreciada; "composta de lugares comuns" não é simplesmente a composição poética que acolhe expressões triviais, mas a "escrita para que a vejam", a obra mesma enquanto coisa e, como tal, já notória. Daqui, no entanto, também aquilo a que Jesi chama o seu privilégio: "o Bateau ivre foi escrito 'para que o vejam os de Paris', mas é uma coisa, uma mercadoria, oferecida objetivamente também à posteridade." Se não se cai no significado banal do termo lugar comum, ou seja, se não se descuida de considerar exatamente a obra, isso deve significar que essa (precisamente enquanto exposição ao lugar comum) expõe o lugar comum mesmo. ("O Bateau ivre não apenas é o atuar-se do lugar comum... mas é um paradigma... do processo desse atuar-se").
Não deverá ser colocada, portanto, nem a pergunta sobre a obra (enquanto ser em si) como chave da biografia, nem aquela sobre a vida como explicação da poesia. O privilégio do Bateau ivre, que o subtrai antes de tudo à leitura banal, consiste no fato de que exatamente nele se joga a relação entre vida e escritura. Isso significa que não se dá nenhuma solução, se a entendermos ora em relação à 'vida', ora à 'poesia', porque ambas são entrelaçadas originariamente à matéria poética. Há, com as palavras de Jesi, uma afinidade objetiva entre a condição "de lugar comum" e a condição da infância (que aqui define a diversidade mesma do poeta). E é tal afinidade já ulterior em relação ao domínio do enfant, exatamente porque nela há contemporaneamente o estatuto de mercadoria da criação. Situação, portanto, irredutível àquela infantil, ao tempo do diverso, como àquela outra, correlata, do monumento, porque o seu tempo é o da suspensão. É exatamente isso que Jesi chama de revolta: e nela não reconhece apenas o traço de uma eventual participação de Rimbaud nas batalhas da Comune - porque do outro lado das barricadas permaneceria ainda a figura mítica do poeta irresponsável -, mas aquele tempo que, sem substanciar-se na revolução (isto é, em um âmbito ainda separado da vida), suspende em primeiro lugar o vínculo entre a novidade por excelência da criação, a sua força mais exclusiva, e o monumento erigido no mundo dos adultos, no qual o próprio poeta, finalmente inofensivo, viria a ser transformado.
O caráter constitutivo da afinidade, a condição da revolta, é o modo específico no qual os lugares comuns atingem a superfície da obra. Jesi distingue três estratos de sentido ou articulações desse atingir sem, no entanto, isolá-los: a insurreição advém na sua "efetiva simultaneidade". Mas o gesto verdadeiramente resolutivo é o que conecta a existência autônoma do lugar comum à esfera do mito, a operação alquímica por meio da qual este se introduz na obra no funcionamento da máquina mitológica. A chave da revolta é então a "Alchimie du verbe", e com isso ela é fundada sobre o plano da linguagem. É aqui que se decide a adesão deliberada ao invés da inconsciente. A máquina mitológica, de fato, "induz a crer que ela mesma sela o mito dentro das próprias paredes impenetráveis" e remete, em última instância, a um vazio de ser. Exatamente deste último obtém a sua existência particular. Há, portanto, uma falsa alternativa, ou melhor, uma não alternativa da linguagem em relação ao outro mundo que não há. Deste "pode-se declarar um 'não é' perfeitamente coincidente com o argumento ontológico", e aqui, atingindo aquele grau de verdade no qual Kafka tinha reconhecido na pura alegoria a realidade enquanto tal, Jesi introduz a segunda modalidade desse não há: ao lado do simples não é, o aqui não é (ci non-è). Se o estatuto ontológico do primeiro é a mera igualdade (entre é e não é) que é chamada adesão involuntária, o aqui confere ao não é a consciência e a voluntariedade e o seu estatuto é o da pura suspensão. O "j'aimais" de Rimbaud para os lugares comuns é o seu modo de exibir-lhes a existência, de pronunciar o aqui não é e de fundar a objetiva afinidade que suspende o vínculo entre novíssima e novíssimos (novidade absoluta, profecia e monumento, novíssimos na acepção de retaguarda); suspensão, entretanto, que é e permanece tal, que não quebra a raiz mitológica do tempo situando-se ainda no interior da máquina; suspensão na qual vige a afinidade do produtor com a irresponsabilidade infantil e graças à qual o poeta não renuncia a si mesmo, mas única e exclusivamente durante o tempo justo da obra, repetível e não irrevogável. A profecia da revolta, o seu pronunciamento, o "aquilo que foi prometido realizar-se-á", a ação cujo fruto é a ação mesma, a suspensão em todas as fórmulas extraordinárias com as quais Jesi soube nos mostrar, tem, portanto, como caráter peculiar não ser irrevogável. Mas isso significa que a mesma interrupção do vínculo permanece relegada na experiência poética. Daqui a sua falência, a escolha de renunciar à poesia que abre a segunda parte da vida de Rimbaud, êxito puramente gestual que confirma o revés no plano linguístico.
Num sentido, entretanto, a falência é aqui somente aparente. Diante da passagem "do lugar comum em sede de poesia ao lugar comum em sede gestual", do momento de revolta ao momento de revolução, não nos encontramos mais diante da escolha entre não é e aqui não é, convergente no remetimento ao vazio de ser, mas diante do aqui não é e o não é enquanto tais. Se a condição imprescindível da falsa alternativa é, de fato, a total adesão a uma das suas opções, a posição de Jesi difere por definição seja daquela do revolucionário (não é) quanto da do revoltoso (aqui não é). Assim, a "revolução solitária e pessimista que procede da convicção da impossibilidade de quebrar a raiz do tempo" não é o êxito, por sua vez pessimista, da Leitura, mas o modo mais coerente de levar ao nível extremo de exposição a máquina mitológica (e não apenas o mito, o lugar comum). Não somente a obra, mas essa vida de adulto, "vivida também ela como uma mercadoria", leva consigo um privilégio. Claro, Rimbaud não quebra a raiz mítica do tempo, não interrompe o funcionamento da máquina que continua a selar o ser do lugar comum, mas o abanono da obra é também o definitivo abandono à posteridade da obra enquanto lugar comum, isto é, exposição do mecanismo. A solução, a suspensão da própria suspensão, exatamente na medida em que não compete a Rimbaud, torna-se propositiva: "quebrar essa raiz significaria dispor de uma linguagem ou de um complexo de gestos tais para afrontar a máquina mitológica num plano que consentisse declarar ao mesmo tempo a existência e a não existência daquilo que a máquina diz conter." Essa não é uma conclusão, mas, justo no seu caráter aparentemente negativo, uma indicação de importância capital. No ensaio A festa e a máquina mitológica, Jesi escreverá quase programaticamente: "estudar o funcionamento da máquina..., apreender o fato mitológico em ato, in flagranti, já que a máquina mitológica com a sua presença que funciona é um constante remeter à tensão entre pré-existente e existente enquanto produto da máquina, e tal questão perenemente irresoluta constitui a atualidade, o flagrante do fato mitológico." Essa atualidade mostra-se de modo particular em determinadas obras que no ensaio sobre a festa são aquelas em que uma relação com o mito permanece como enfraquecida e dissolvida do seu sentido originário: quanto menor é nelas a força vital e a influência imediata do conteúdo mítico, mais evidente a "presença que funciona" do instrumento no qual se insere. Seriam as produções tardias? Aquelas modernas? Jesi não dá exemplos, porque não se trata de reconhecer ou classificar um determinado grupo de obras, mas do seu modo específico de cumprir-se.
O privilégio do Bateau ivre é, talvez, reconhecível em tal sentido. Podemos dizer, de fato, que o "lugar comum" seja o mito assim como permanece na época moderna e que, nesta, a relação constitutiva da mitologia se funda sobre o estatuto de coisa. Mas não somente. Porque o Bateau é também a obra que advém como coisa, isto é, pela qual o lugar comum (o mito) cumpri-se como dissolvido do seu motivo inicial. Podemos então dizer que o privilégio consiste nisto: diante da obra de Rimbaud nós não nos encontramos simples e inicialmente diante do lugar comum, diante da falsa alternativa em relação à sua existência (isto é, ainda no interior da máquina). Se o revolucionário nega tal existência (para negá-la) afirmando-a inconscientemente, se o revoltoso atua uma suspensão que, não podendo quebrar a raiz do tempo, permanece por sua vez bloqueada, eis o gesto extremo de Rimbaud: na falência da revolta e a ela coerente, como que a cristalizou, tornou-a irrepetível e, na própria falência, potencializada. Uma força muda da desilusão: é talvez esse o sentido da parte conclusiva do ensaio, que não acrescentaria nada e não teria motivo, como simples descrição de uma impossibilidade. Haveria, portanto, para nós, algo que se transmite como privilégio e que Rimbaud entregou à posteridade de modo verdadeiramente irrevogável. É o que Jesi exprime no conceito de flagrante.
"Existem obras de arte que têm o privilégio de ser compostas de lugares comuns e de tornar-se elas próprias um lugar comum à superfície da criação do artista. Nelas, o itinerário aparente que procede da novidade por excelência da operação criativa in flagranti e atinge a não-novidade por excelência da estátua erigida pela posteridade do criado, fecha-se de fato em um só ponto: espécie de pústula obscura sobre a superfície de mármore, na qual todas as impurezas da pedra estão confluídas - escória saliente e ponto de referência."
Isso significa que nestas obras, para quem as sabe ler, ou seja, entender o lugar comum dissolvido do seu sentido originário de coisa, mesmo que no seu permanecer (sem por isso "edificar um monumento"), a máquina mitológica (ou operação criativa) não entra simplesmente em função, mas, segundo a modalidade particular do aqui, mostra-se em função. Esse mostrar-se, o flagrante, portanto, é o caráter irrevogável da suspensão.
Podemos nos perguntar se tudo isso valha apenas para a Leitura de Jesi, isto é, unicamente no plano linguístico, ou, considerado da parte de Rimbaud, somente no plano gestual, e se, por isso, não se cai numa vazia separação entre vida e escritura. O que indica, de fato, a palavra flagrante senão uma indistinguibilidade entre linguístico e gestual? Nessa, que nos parece uma categoria central do pensamento de Jesi, vale o estatuto gestual da linguagem e ao mesmo tempo aquele linguístico do gesto.

Andrea Cavalletti. In margine alla Lettura di Jesi. In.: Furio Jesi. Lettura del "Bateau ivre" di Rimbaud. Macerata: Quodlibet, 1996. pp. 33-37. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

domingo, 9 de outubro de 2011

Como



E quando lia que la máquina del mondo es harto compleja para la simplicidad de los hombres, sentia algo como uma dor profunda, como uma desarazoada forma de ver as coisas, de sentir o seu tempo. Na sua simplicidade não conseguia entender como é que podia saber como sentia - os modos, os reflexos, as metáforas da dor - sem sentir além do como. Era algo estranho, era algo estranho. Nenhuma obscura resignação era justificativa para a prisão, para permanecer como o leopardo exposto aos olhos seculares de homens perdidos. Resignar-se era a maneira cômoda de entregar-se ao tempo contado em eras, era deixar-se levar pelos odores da vileza de uma existência que só sabe ser como algo e nunca o próprio algo. Tinha que lutar contra suas dores, tinha que tentar sentir o sentimento, mesmo que sua simplicidade o convencesse de que a máquina do mundo era demasiadamente complexa. E também lia que toda história é obscura e que todo epílogo é provisório; e com isso dormia noites em claro, tudo por sentir algo como a complexidade do mundo na sua simplicidade de homem. A provisoriedade, o instantâneo, o perplexo, o aleatório, todos termos da sua busca simplista pelo não resignar-se, por aquele estranho modo de sentir que deixasse atrás de si as grades onde aprisionado estava o leopardo - o bicho que só sabia sentir como. Sem certezas, adormentou-se por algumas horas e sonhou como se sente e sentiu como se sonha...

Imagem: William Blake. Adão e Eva dormindo. 1808. Museum of Fine Arts, Boston.

domingo, 2 de outubro de 2011

Pequena parágrafo da desatenção



Era fato: fixávamos demasiada atenção nas letras e não compreendíamos as palavras; fixávamos nas palavras e não compreendíamos as frases; fixávamos nas frases e não compreendíamos o parágrafo; fixávamos no parágrafo e perdíamos o texto. Era então essa a hora de inventar nossa história. Eu agora pensava em Haokah, o deus do Trovão dos Sioux, sobre o qual Borges diz tratar-se de um ser que chorava quando estava contente, que ria quando triste, que sentia o frio como calor e o calor como frio. Todo o jogo contraditório das palavras que diziam o seu oposto ou das sensações impossíveis de serem captadas pelas palavras, da abertura poética do denotativo ao conotativo, dos vagos destemperos da desatenção atenta às minúcias do texto, agora desfazia-se como uma trama rasgada e lançada ao vento que talvez o próprio Haokah poderia apreender como baquetas para seus tambores. Faltou-nos algo. Talvez olhos compreensíveis e sensíveis não à luz, mas à ausência dela; talvez bons ouvidos que pudessem compor o momento singular da leitura; mas, talvez, a leitura não fosse leitura, mas uma conversa na qual deveríamos permanecer e tentar perceber, com a atenção necessária, algo como o escutar um ao outro no silêncio, o dizer o sim com o não, o rir na tristeza, o chorar na alegria, o sentir o calor como frio e o frio como calor.

Imagem: Henry Darger.