sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Jogos de Letras (glosa)


“La Bestia assassina.
La Bestia che nessuno mai vide.
La Bestia che sotterraneamente
falsamente mastina
ogni giorno ti elide.
La Bestia che ti vivifica e uccide...
......
lo solo, con un nodo in gola,
sapevo. È dietro la Parola.”
Giorgio Caproni
Brincar com letras indica o caminho para divagações gozosas, para a livração da imaginação e para o gesto de composição de palavras, este que pode provocar espanto – e os Nomes ou o Grito da Rã Grega de Pasolini são o mais claro exemplo – e lançar quem entra nesse jogo aos limites da linguagem. De todo modo, pode-se sempre armar, num texto, a brincadeira infantil diante das letras, o que, em certo sentido, excede a linguagem enquanto função comunicativa. E esse jogo é também um modo de não se referir a nada útil, mas a algo sutil como uma letra, um gramma, para dizer com Derrida. É curioso como uma letra desloca o emblema máximo dos tempos de capitalismo financeiro doentio no seu oposto. Os adjetivos útil e sutil, de fato, não são opostos; porém, o primeiro refere-se à necessidade, ao uso determinado e preciso, ao mundo da produção, já o segundo diz respeito a coisas delicadas, pequenas e refinadas (e, outra brincadeira: útil é paroxítona - claro, as palavras também podem ser estóicas: primeiro a força para depois ter o descanso numa ética do labor, mesmo que se possa pensar no sexo, se bem que de modo ainda muito cristianizado; sutil é oxítona - o climax vem aos poucos, é tântrico, é de gozo contínuo com uma explosão final).
Os substantivos utilidade e sutileza conseguem expor, mais que seus adjetivos, figuras desse mundo opositivo. Normalmente dizem que a lógica do mercado (a lógica do consumo que Pasolini sentia destruir o mundo ao seu redor) é a utilidade, que é imperiosa, que não dá tréguas, em que nela sobrevivem só os melhores; dizem que a sutileza é, por sua vez, para momentos precisos (normalmente associados ao "lazer" do homem médio - num discurso ainda dentro da lógica capitalista), não dado às coisas úteis. Em outra linguagem, poderíamos dizer que a utilidade é masculina, enquanto a sutileza é feminina (e isso se agrava ainda mais em estudos biológicos que apontam a caça – coisa verdadeiramente útil – ao macho, enquanto à fêmea restariam os trabalhos menos úteis e mais sutis - a preparação dos alimentos, o cuidado com a cria etc.). Obviamente que a distinção pautada no critério da necessidade não é taxativa (aliás, já foi dito que não é questão de dois opostos).
Ao jogar com um s, por exemplo, é possível abrir toda uma temática: com s diz-se sexo, palavra na qual a letra s aparece uma só vez, mas é dito duas. Nada mais gratuito que o sexo (a não ser que, escolástica e cretinamente, alguém queira dizer que sexo é para a reprodução – o que seria reafirmar a lógica da utilidade num espaço em que o predomina a sutileza). Foucault foi muito perspicaz ao dizer que diante do minúsculo segredo do sexo todos os enigmas do mundo parecem menores. Mas não se preocupando com os enigmas ditos no mundo, mas tão somente com o das letras, é possível abrir um jogo, como o da letra s (e, anfibologicamente, ao modo de Max Ernst no La Femme 100 têtes, no qual o número 100 funciona como uma caixa de letras – e sons – para uma brincadeira com a sentença: sans tête, cent tête, s'entête, sang tête...).
Pensar as letras é algo que já a cabala judaica fez. Toda a experiência mística dos judeus medievais se dava por meio da reflexão sobre o tetragrama sagrado. O nome com o qual deus nomeia a si mesmo é a tal ponto uma experiência da letra, que não pode ser proferido (nomen innominabile). Para o místico, o som e a letra coincidem e daí a força criadora do Nome. A auto-nomeação divina seria como que anterior ao primeiro ato da criação e esta, a criação, seria tão somente emanação das letras que compõem o nome divino (daí o caráter impronunciável do nome do deus judeu). Em hebraico a palavra ot quer dizer não somente "letra", mas também "signo". Daí as teorias cabalísticas pensarem as letras como assinaturas secretas (signos secretos) do divino em todos os graus do processo da criação. Isaac "o cego" – que Scholem diz ser talvez o primeiro cabalista provençal historicamente individualizado[1] – dizia que toda letra, como configuração de forças criadoras divinas, representa as formas supremas (divinas) e, ao assumir um aspecto visível no plano terreno, passa a possuir um corpo e uma alma. Esta, a alma, seria a articulação do espírito divino que vive na letra (proveniente do sopro da criação), de modo que todo o criado está fundamentado na linguagem divina, à qual, porém, os homens não têm acesso. A estes é deixada como herança a maldição de saber reconhecer as letras do nome divino (o tetragrama), porém, a impossibilidade de pronunciá-lo. De certo modo, falamos aqui de uma gramática do inominável, do que não pode ser proferido; isto é, no fundamento (a letra) de toda palavra e de todo proferir (a fonética, a voz), existe uma negação fundamental – a Voz. E, além da cabala judaica, também a gnose tardo-antiga e a mística cristã fazem tal experiência.
Henri-Charles Puech (que ocupou a cadeira de História das Religiões no Collège de France entre os anos de 1952 e 1972, e a quem Giorgio Agamben dedica seu ensaio sobre tempo e a crítica do contínuo em Infância e História), ao comentar a obra do mísitico Pseudo-Dionísio Aeropagita, indica como a relação de inadequação da apreensão mística de um sujeito cognoscente e um objeto desconhecido encontra seu ajuste na Treva (as condições para o sujeito ser iniciado e, ao mesmo tempo, como sinal da transcendência divina – de modo simétrico a como o silêncio é condição para o sujeito na espera divina e como Deus mesmo pode ser dito silêncio, Sigé). No caminho do místico ao êxtase, diz Puech,
Nuvem e Obscuridade aqui simbolizam, portanto, a impossibilidade de a união mística esgotar um objeto que permanence fora de toda apreensão, que não pode nem mesmo ser tomado como objeto. Elas marcam o limite que impõe à finitude do sujeito criado o caráter infinito Daquele que o êxtase só pode aproximar. É seguindo essa distância ou essa inadequação jamais colmatada que Aquele que é apenas Luz, ou mesmo que é superior à Luz como à Obscuridade, aparece como Treva.[2]
Em certo sentido, portanto, a união extática deixa um descarte pois à impossibilidade de conhecimento do místico é simétrica a impossibilidade de dar-se a conhecer de Deus. Nessas impossibilidades está a marca de uma busca de um conhecimento inconhecível que, como toda teologia apofática (negativa), é audaz em ir mais longe do que convém permitir.[3]
Em João da Cruz a metáfora da “noite escura” é um modo de relacionar-se com o negativo, com o aniquilamento de Deus por Deus na experiência do Calvário – isto é, a “maior obra” divina na experiência de seu próprio aniquilamento. Em seu História do Nada, Sergio Givone lê nessa anulação divina justamente – tal como sugeriu Taubes – a identificação de Deus e nada.
Somente no nada e frente ao nada Deus se reconcilia com o homem e o salva do nada mesmo. A potência da negação não deve perdoar nem a Deus nem ao homem. Se perdoasse ao homem, isto é, se o homem encontrasse em algum lugar um pretexto certo no qual ancorar sua existência, poderia precindir de Deus. E se perdoasse a Deus, Deus encobriria o homem tornando impossível, com seu simples ser, toda reunião com ele. Ao contrário, Deus se abandona à potência da negação, sem subtrair-se à nenhuma forma de autodestruição. Onde pode então o homem encontrar a Deus senão ali, na aniquilação da divindade?[4]
Tais misticismos, assim, abrem-se ao paradoxo contido na experiência de um negativo:
Que, enquanto é opacidade e desapossamento integral, a experiência final que ela implica é aquela, puramente negativa, de uma presença que não se distingue em nada de uma ausência; em sentido próprio, ela não é antes uma teologia (uma ciência de Deus), mas uma teo-alogia, que atinge uma incognoscibilidade última ou, ao menos, um conhecer apenas por opacidade e negação, uma apropriação cujo objeto é o Inapropriável mesmo, e que não é, por isso, substancialmente em um habitus doutrinal positivo, mas apenas metaforizável e aludivel por oxímoros, catacreses e outras “figuras e similitudes extravagantes”.[5]
A experiência em questão no êxtase, desse modo, é a de um tocar a borda da linguagem – ela que dá a única possibilidade de conhecer – que, como acompanhando a análise derridiana, é apenas o que há em linguagem.[6] Assim, a busca fundamental, a busca do fundamental na linguagem – pela via negativa – acaba por esbarrar no limite que é a linguagem mesma. Diz Derrida que a teologia negativa
não seria somente uma linguagem, e um teste da linguagem, mas antes de tudo a experiência mais pensante, a mais exigente, a mais intratável da “essência” da linguagem, um “monólogo” (no sentido heterológico que Novalis ou Heidegger dão a essa palavra), no qual a linguagem e a língua falam de si mesmas e constatam o que é Die Sprache spricht. De onde essa dimensão poética ou ficcional, às vezes irônica, sempre alegórica, da qual alguns diriam ser somente uma forma, uma aparência ou um simulacro... É verdade que, simultaneamente, essa árida ficcionalidade tende a denunciar as imagens, as figuras, os ídolos, a retórica. É preciso pensar em uma ficção iconoclasta.[7]
A busca mística, nesse sentido, é pela linguagem que fala, pelo toque na borda, pela intransponibilidade do ter-lugar da linguagem. E é este o silêncio do próprio lugar da linguagem. E a experiência do êxtase enquanto calar-se, um não proferir palavra diante do Absoluto (também ele silencioso) para nele se integrar num silêncio que tudo sabe, é um modo de tentar tocar o fundamento negativo (deus) da linguagem; ou, em outros termos, retomando aforismo 6.44 do Tractatus de Wittgenstein, aos conteúdos da linguagem com os quais dizemos “como o mundo é”, a experiência do negativo é a tentativa de ir além e, assim, experimentar o “que o mundo seja”.



[1] SCHOLEM, Gershom. Il Nome di Dio e la Teoria Cabbalistica del Linguaggio. Milano: Adelphi, 2005. pp. 45-53.
[2] PUECH, Henri-Charles. En Quête de la Gnose. I. La gnose et le temps. Paris: Gallimard, 2006. p. 126. “Nuée et Obscurité symbolisent donc ici l’impossibilité ou est l’union mystique d’épuiser un objet qui demeure hors de toute prise, qui ne peut meme être appréhendé comme objet. Elles marquent la limite qu’impose à la finitude du sujet créé le carctère infini de Celui que l’extase ne peut qu’approcher. C’est par suite de cette distance ou de cette inadéquation jamais comblée que Celui qui n’est que Lumière, ou même qui est supérieur à la Lumière comme à l’Obscurité, apparaît comme Ténèbre.”
[3] DERRIDA, Jacques. Salvo o Nome. Campinas: Papirus, 1995. Trad.: Nicia Adan Bonatti. p. 9.
[4] GIVONE, Sergio. Historia de la Nada. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2001. Trad.: Alejo González y Demian Orosz. p. 101. “Sólo en la nada y frente a la nada Dios se reconcilia con el hombre y lo salva de la nada misma. La potencia de la negación no debe perdonar ni a Dios ni al hombre. Si perdonase al hombre, es decir, si el hombre encontrara en algún lugar un pretexto cierto en el que anclar su existencia, bien podría prescindir de Dios. Y si perdonase a dios, Dios incumbiría al hombre volviendo imposible, con su simple ser, toda reunión con él. Por el contrario, Dios se abandona a si mismo a la potencia de la negación, sin sustraerse a ninguna forma de autodestrucción. ¿Dónde puede entonces el hombre encontrar a Dios sino allí, en la aniquilación de la divindad?”
[5] AGAMBEN, Giorgio. La “Notte Oscura” di Juan de la Cruz. In.: CRUZ, Juan de la. Poesie. Torino: Giulio Einaudi, 1974. Trad.: Giorgio Agamben. p. VII. “Il paradoso della teologia mistica è appunto questo: che, in quanto è opacità e spossessamento integrale, l’esperienza finale che essa implica è quella, puramente negativa, di una presenza che non si distingue in nulla da un’assenza; in senso proprio, essa non è anzi una teologia (una scienza di Dio), ma una teo-alogia, che approda a un’inconoscibilità ultima, o, almeno, a un conoscere soltanto per opacamento e negazione, a un’appropriazione il cui oggeto è l’Inappropriabile stesso, e che non è, perciò, sostanziabile in un habitus dottrinale positivo, ma soltanto metaforizzabile e alludibile per ossimori, catacresi e altre ‘figure e similitudini’.”
[6] DERRIDA, Jacques. Salvo o Nome... p. 43.
[7] Idem... p. 35.
Imagem: Caspar David Friedrich. Manhã de Páscoa. 1833. Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid

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