sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Lévi-Strauss: Entre os homens algo realmente aconteceu




Martin Rueff
1. No capítulo XXI de Olhar, Escutar, Ler, numa página breve e singular, Lévi-Strauss nos chama a atenção sobre as últimas fórmulas do final de O Homem Nu.
Escrevendo o fim de O homem nu, tinha em mente a página grandiosa que termina o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. Gobineau aí evoca o desaparecimento inelutável de nossa espécie: resultado que não poderia se passar por duvidoso, já que “a ciência, mostrando-nos que começamos, parecia sempre nos assegurar que nós deveríamos acabar”; e que chegarão “estas idades invadidas pela morte, na qual o globo, tornado mudo, continuará, mas sem nós, a descrever o espaço suas órbitas impassíveis”.
Lévi-Strauss assinala então um reconhecimento de dívidas ao confessar que deve um adjetivo a Gobineau: “impassível”. Como Gobineau tinha escrito “órbitas impassíveis", Lévi-Strauss termina sua obra prima com estes termos: “alguns traços rapidamente apagados de um mundo com a aparência a partir de então impassível e a declaração revogada de que eles existiram não quer dizer nada” (Lévi-Strauss, L’Homme nu, Paris, Plon 1971, 2009, p. 621).
Ora, uma vez que uma “declaração” não pode ser dita “revogada”, uma razão mais tenaz deve explicar a presença deste último termo: é a resistência do significante [órbita]. O sintagma original que associava um adjetivo escondido acaba por se referir (como o vermelho sob o negro de Rimbaud): a “órbita”* de Gobineau torna-se, pela redistribuição das letras, o “revogada” de Lévi-Strauss. Eis aí explicado um “mecanismo da criação literária”. Esse capítulo XXI pode assim ser considerado ao mesmo tempo como uma nota de escritor e como uma variação sobre a lógica estrutural do significante.
2. Mas, há mais.
A última página de O Homem nu evoca um cenário de fim de mundo e retoma, transformando-a, a fórmula de Mallarmé – “Rien [...] n’aura eu lieu [...] que le lieu” [Nada ... terá lugar ... senão o lugar][1]. No momento de finalizar o conjunto de suas Mitológicas, o antropólogo evoca o desaparecimento inelutável do homem da face de um planeta, também ele, condenado à morte. Ele faz alusão a esses traços, rapidamente apagados, do nada que o homem foi sobre a terra.
O fim de Olhar, Escutar, Ler dá alguma espessura a esses traços e tempera o pessimismo do moralista. Poder-se-ia também pensar, wishful thinking, que ele nos permite afrontar essa morte, que certamente nós esperamos como o último golpe, mas que também nos perturba e nos entristece, porque fecha a porta do século passado.
Lévi-Strauss acaba de evocar o sacrifício desses artistas do noroeste que retornam à natureza que os engoliu como as paisagens dos quadros de Poussin que fazem desaparecer os homens.[2]
Lévi-Strauss então especifica:
Vistas na escala dos milênios, as paixões humanas se confundem. O tempo não agrega nada nem retira nada dos amores e das raivas provadas pelos homens, dos seus engajamentos, de suas lutas e de seus espíritos: certa vez e hoje, são sempre os mesmos. Suprimir ao acaso dez ou vinte séculos de história não afetaria de maneira sensível nosso conhecimento da natureza humana. A única perda insubstituível seria a das obras de arte que esses séculos teriam visto nascer. Pois os homens só se diferem, e, até mesmo, só existem, por suas obras. Como a estátua de madeira que teve origem de uma árvore, somente elas [as obras] trazem a evidência de que no correr dos tempos, entre os homens, algo realmente aconteceu.
O algo da obra de arte é pouco mais que o nada do final de O Homem nu, mas faz compreender como a arte, em Lévi-Strauss, assim como em Kant, carrega sozinha uma resposta à questão “o que me é permitido esperar?”.
3. Este sistema de transformações que religa as últimas linhas dessas duas obras poderia ser estudado na obra do antropólogo. Poder-se-ia ler as sentenças dos livros de Lévi-Strauss, colocá-las em série e considerá-las, talvez, como as variantes de um só e mesmo mito teórico, o do desaparecimento do mundo, dado por hipótese na Krisis de Husserl e formulado, ousando-se, de maneira canônica, pelo poeta: o mundo vai acabar[3]. É também, segundo a própria confissão de Lévi-Strauss, “a lição do pôr do sol.” Essa fórmula conhece variações e é preciso nelas estudar as invariantes, as inversões e as simetrias desde Tristes Tropiques. (Lévi-Strauss 1955, p. 497). Ela toma emprestada, às vezes, a imagem que Chateaubriand legou ao autor de As Palavras e as coisas: a onda do tempo vem apagar na areia da história as letras desenhadas pela mão do homem[4]. Mas, sobretudo, diante dessa perspectiva desoladora, ela permite ao antropólogo perguntar-se com melancolia sobre o que é preciso salvar das produções da beleza natural e das produções da arte:
Mais vale, assim, deixar-lhes alguns testemunhos sobre tantas coisas que, pelo nosso descuido e por aquele de nossos continuadores, eles não terão mais o direito de conhecer: a pureza dos elementos, a diversidade dos seres, a graça da natureza e a decência dos homens (Lévi-Strauss, Anthropologie structurale 2, [1973] 1996, p. 337).
A estética selvagem repete e confirma a lição dos crepúsculos[5]. Tínhamos a beleza natural proveniente [pour tenir à la terre] da terra e a arte proveniente dos homens [pour tenir aux hommes] que provinham da terra [qui tenaient à la terre].
Estamos com [Nous tenons à]* Claude Lévi-Strauss.


Texto originalmente publicado nas revistas Po&sie (Dez/2009) e, com variações, Médiapart (24/dez/2009), em homenagem a Claude Lévi-Strauss, falecido em outubro de 2009.
Tradução para o Português: Vinícius Nicastro Honesko.
Imagem: J.M.W. Turner. O declínio do império Cartaginês. 1817. Tate Gallery, London


* N.T.: Orbe pode tanto significar “órbita” – uma superfície circular, tal como a trajetória dos planetas – , como substantivo, e, como adjetivo (do latim orbus), é o que se diz de uma parede completamente fechada, sem portas ou janelas.
[1] Mallarmé « Un coup de dés jamais n’abolira le hasard » [“Um jogo de dados jamais abolirá o acaso”] Œuvres complètes, Paris, Gallimard, La Pléiade, 1998, tome I, p. 385.
[2] No manuscrito de Olhar, Escutar, Ler, o capítulo III acabava com esta sentença: “As personagens [de Poussin] frequentemente reduzidas ao extremo aí são como esmagadas pela imensidão: rochedos, montanhas, florestas, fábricas.”
[3] Baudelaire, Fusées, Œuvres complètes, I, op. cit., p. 665 et Valéry, « Nous autres civilisations, nous savons maintenant que nous sommes mortelles » [Nós, civilização, sabemos agora que somos mortais] La crise de l’esprit, Œuvres, Paris, Gallimard, « Bibliothèque de la Pléiade », I, p. 988.
[4] « J’ai écrit un nom tout près du réseau d’écume où la dernière onde vient de mourir ; les lames successives ont attaqué lentement le nom consolateur » [“Escrevi um nome muito próximo das espumas onde a última onda acabou de morrer; as lâminas sucessivas atacaram lentamente o nome consolador”] Chateaubriand, Mémoires d’outre-tombe, IV, VII, 18, Paris, Flammarion, 1982, p. 403. Michel Foucault, Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 398.
[5] « Il m’était apparu qu’il y avait une sorte de constante, ou d’invariant dans ma pensée, qui faisait qu’après avoir pris un coucher de soleil comme le modèle même des problèmes ethnologiques que j’aurais à résoudre plus tard, en terminant le plus compliqué de ces problèmes, c’est-à-dire les quatre volumes des Mythologiques, je les revoyais sous la forme d’un coucher de soleil. […] On est en face d’une réalité extraordinairement compliquée, dont le déroulement est imprévisible, et qu’il faut tout de même essayer de décrire avec précision. Et à la fin, une fois dégagée une organisation, ou du moins m’être imaginé que je pouvais la dégager, je la revoyais inéluctablement s’abolir comme le spectacle du soleil couchant. » [“Parecia-me que havia uma espécie de constante ou de invariante no meu pensamento, que fazia com que após ter visto um pôr-do-sol como o próprio modelo dos problemas etnológicos que teria que resolver mais tarde, terminando o mais complicado desses problemas, isto é, os quatro volumes das Mitológicas, eu os veria novamente sob a forma de um pôr-do-sol. [...] Está-se diante de uma realidade extraordinariamente complicada, na qual o desenrolar é imprevisível e que é preciso saber descrever com precisão. E no fim, uma vez esclarecida uma organização, ou, ao menos imaginando que eu a podia esclarecer, eu a revia inelutavelmente se abolir como o espetáculo do sol se pondo] Lévi-Strauss, "Le coucher de soleil: entretien avec Claude Lévi-Strauss », Les Temps Modernes n° 628, p. 2-18, p. 8-9.
* N.T.: Como homenagem a Lévi-Strauss, 0 autor joga com os vários significados do verbo tenir (quando transitivo direto: ter perto de si, tomar para si, manter em certo estado, respeitar; quando intransitivo: estar afixado, estar contido; quando transitivo indireto: ter por causa, estar anexado, desejar). No caso, o autor brinca com o uso transitivo indireto [tenir à], marcando a “proveniência”, o “ter por causa”, nos três primeiros usos e o “estar junto de” no último. No entanto, o jogo está em marcar o “estar junto de” com o sinal de “ser proveniente de” dos três usos anteriores. Assim, “Estamos com Claude Lévi-Strauss” e “Somos provenientes de Claude Lévi-Strauss”.

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