sábado, 24 de março de 2012

De-lírios e sábados



Um estalo e nada mais. Toda febre advinda da plurissignificação das palavras, toda agonia diante da impossibilidade de cultivar qualquer fala, de falar qualquer palavra para além da palavra, fazia parte agora de um mesmo encontro intermitente, que não parava de acontecer. Ininterrupta, a voz alheia soava agora como um sopro em meio a um sonho qualquer, em meio ao suor que não cessava de ser suado, num espaço não menos real que o desperto. Sonhos de uma noite de verão que acabava de acabar. Sonhos com um rosto pelo qual, mal desperto, o meu eu de outrora pudesse se apaixonar ao primeiro olhar... Shakespeare não teria razão em pensar diferentemente: o despertar como novo olhar, como possibilidade de encanto, de salto para além do bom sonho (aliás, sonho de uma noite de verão, um sonho desperto, não poderia ser senão "o sonho de um desperto", de alguém que olha no momento mesmo em que a distinção entre vigília e sono transformar-se-ia em "conversas fiadas"). Estalados estão agora os olhos, como esferas de fogo que escapam às águas que tentam apagá-las. Traduzir os sonhos aos despertos seria uma tarefa necessária, não fosse tal tarefa inócua, não fossem os despertos sonâmbulos. Os alforjes vazios chamados palavras agora pululavam desde a sua posição intermitente, desde a sua figuração como objetos palpáveis para os poetas (claro, sempre ingênuos poetas...). O sonho continua e a vigília agora é tarefa do vigário; o incômodo com as pálpebras que insistem em se mover sem que nem ao menos alguém consiga fazê-las parar; as palavras que insistem em sair da ebriedade destes dedos que, incontroláveis, parecem tomar seus próprios rumos; a voz de Gil Scott-Heron como que a fazer do sono o eterno sonâmbulo; as frases mal construídas; o desprezo pelo tempo; o tempo desprezado reagindo; a ação interrompida pelo sonho... o delírio saturnino que, em cada piscar, traz a imagem düreriana para fazer as vezes do tempo que perdi - desperto ou em sonho -, mas que não cesso de reencontrar, mesmo não querendo... Nada mais, apenas minha cabeça a rolar, pelas mãos da própria mandante de meu assassínio, mesmo que não tenha vindo para anunciar ninguém (tampouco vingar alguém), senão a própria impossibilidade de qualquer anúncio, todos estes que, agora, pelos meus poros, saem para o mundo...

Imagem: Caravaggio. Judite cortando a cabeça de Holofernes. 1598. Galleria Nazionale d'Arte Antica, Roma

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