sexta-feira, 15 de junho de 2012

Giorgio Morandi


Considero Giorgio Morandi um abstrato em campo figurativo. A abstração é um ato da inteligência que, tendo como base a realidade, separa determinados elementos com o fim de operar uma redução do essencial. Morandi, sempre determinado a eliminar das próprias telas ou incisões tudo aquilo que é supérfluo, suspeito de barroco ou de expressionismo, será então, de certo modo, um artista abstrato ou um "primitivo" dotado de uma técnica moderna. Coloquei de propósito entre aspas a palavra "primitivo": ela não corresponde totalmente à consciência que nós agora possuímos de tais artistas - e penso particularmente nos italianos e catalães do século treze, tão civis e com uma cultura que, sugerindo a economia dos meios, muito se aproxima do gosto de nossa época. Eis alguns dos problemas fundamentais afrontados por Morandi: criar um espaço estreito para seu fluxo direto; ordenar e construir o sentimento, liberando-o da retórica; mesurar a linha com segura sabedoria, mas sem geometrizá-la rigidamente; elevar a natureza morta ao nível do retrato, tornando-a quase documento humano; manter uma ligação ascética em relação à tela branca.
Obcecava-lhe a pesquisa pelas cores frias, tratadas quase didaticamente: a redução dos planos e volumes a um esquema severamente elaborado; preferia também as linhas firmes, os cortes verticais. Também no período chamado "metafísico", Morandi se desinteressou pelo elemento mágico; um seguro instinto indicava-lhe o predomínio da maneira plástica sobre a literária. A "virtude" mágica lhe foi dada por agregação; a sua força poética seria derivada da concessão do quadro como geometria no espaço. Inutilmente se procuraria nas telas daquele período o encontro de um guarda-chuvas com uma máquina de escrever; uma sala no fundo de um lago; um corpo de mulher com cabeça de unicórnio ou outros expedientes do surto colocado na moda pelo surrealismo. A procura pela própria essencialidade, diria pelo próprio absoluto, foi a meta da arte de Morandi. Combatendo o vago ele conferiu encanto ao rigor; perseguiu o espaço correspondente à sua íntima natureza. As cores obedeceram sempre o seu profundo entendimento em manifestar a vida interna ou externa - peculiar do objeto, muito mais do que a personalidade do artista.
Declaração de Morandi: "Provavelmente se tivesse nascido vinte anos mais tarde neste momento também eu seria um abstracionista."
Em Bolonha encontrou os elementos necessários para a própria formação e experiências artísticas. Ela é o seu estúdio sagrado; e aqui Morandi deu - quantas vezes - a volta ao mundo. Aqui fixou a sua dimensão do amor, construiu o próprio íntimo espaço inserido no monumental. Da cidade dos longuíssimos pórticos e das torres, da cidade em que a Asinella e a Garisenda se levantam como máquinas de guerra de um exército mitológico, na qual os afrescos de Giovanni de Modena nos propõem imagens apocalípticas e Santo Stefano mostra-nos a desproporção, Morandi escolheu a cela do seu estúdio e o seu jardim botânico portátil. Na polêmica Bolonha, "douta e gorda", cresceu um homem antipolêmico, antiprofissional, autor de uma pintura magra.
Morandi deixa raramente a sua cidade natal. Confessou-me certa vez: "Bolonha não tem obras de arte tão importantes como Florença, mas, em geral, acho-a mais bela; e, além disso, corresponde melhor ao meu temperamento." Lembro-me então de Paul Valéry que em Florença preferia Gênova, onde não sentia a obra de arte ameaçar continuamente o espectador. O principal habitante do espaço morandiano é a garrafa, que na linguagem do pintor constitui uma alusão ao universo reduzido a um fragmento para a nossa incapacidade de apreendê-lo na sua totalidade.
A garrafa não se mostra sob as espécies da sigla ou do simulacro; não alude, como poderia parecer num primeiro exame, à angústia do artista alienado. Designa mais a participação no mundo dentro da consciência do limite. Participação no finito, no circunscrito, na linha traçada pela mão do homem. O místico opera de forma diversa, mas paralela: depois de muito trabalho, fixa a ideia de Deus em um ponto tornado seu espaço espiritual e objeto de contínua indagação. Ele sabe que a simplicidade é extrema resultante de uma série de atos complexos e não um ponto de partida. No estúdio de Morandi não descobri garrafas refinadas de Veneza ou de Copenhague, objetos criados em obediência a certo rigor estilístico. Vi garrafas quaisquer, esvaziadas do vinho comum ou de remédio, à espera do apelo ou do toque do artista que as sente como matéria prima, elevando-as a uma dignidade estética exemplar e a uma vida orgânica da forma em que o silêncio é mais forte do que a ideia abstrata do silêncio.
Francis Ponge: "L'oeuvre d'art prend toute sa vertu à la fois de sa ressemblance et de sa différence avec les objets naturels..." ["A obra de arte toma toda sua virtude ao mesmo tempo de sua semelhança e de sua diferença com os objetos naturais..."]
Nas pinturas como nas incisões Morandi chega à concreção uma nova elegia totalmente diversa da oitocentista; provém ela da ciência do espaço estreito escolhido pelo homem que, na sua rigorosa modéstia de artesão, interpreta-o sem nenhuma colaboração dos nervos. Morandi, seguindo de perto a lição de Chardin ou de Vermeer, dá um diverso impulso à ideia de elegia: a redução voluntária do espaço perde o caráter negativo já que é comandada pela lei da coerência interna do pintor. Assim procede à destruição dos acessórios, transforma a sensibilidade em conceito geométrico e universaliza  o fato particular. Progredindo quotidianamente em disciplinada lucidez, o método Morandi alcança o abstrato e o clássico.

Roma, 26 de maio de 1962.

Murilo Mendes. Giorgio Morandi. In.: L'occhio del poeta. A cura di Luciana Stegagno Picchio. Roma: Gangemi Editore, 2001. pp. 126-128. (Trad.: Vinícius N. Honesko)

Imagem: Giorgio Morandi. Natureza Morta. 1951. Museo Morandi, Bologna.

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