quinta-feira, 28 de junho de 2012

Pequeno parágrafo sobre o desespero


Para Aby Warburg
La mémoire est une histoire de fantômes pour adultes

Logo cedo, em sua caminhada matinal, ingressa naquele cemitério que conhecia muito bem. Aliás, logo ao entrar, lembrou que ali já estavam seus próprios restos riojanos, andaluzes e sicilianos. Mas nos primeiros passos dentro do espaço dos mortos por excelência, sobrevêm-lhe alguns pensamentos sobre a vida, este oposto dialético da morte, justamente numa língua que nunca fora sua: o francês. La vie n'est qu'un jeu entre survenances et survivances. Talvez esse pensamento fosse fruto da leitura da noite anterior, talvez das lembranças que aquele cemitério lhe trazia, mas, de qualquer modo, a quase homofonia entre survenance e survivance, mesmo com a distância entre o porvir e o que resta, era o efetivo modo como ele encarava o que simplesmente vem. Na entrada do cemitério, a frase pensada em francês era algo que sobrevinha, um porvir, ou uma sobrevivência, uma fagulha irônica daquelas suas leituras de Picabia ("La vie n'a qu'une forme, l'oubli")? Ou ainda, era ele ali um vivo a meditar sobre os mortos ou somente o sonho vivo dos mortos que ali jaziam? Tinha tanto a certeza de ser ele o sonho que sobrevive quanto de serem os mortos, também eles, sonhos e imagens sobrevindas da construção do futuro chamada memória (como não poderia ter lembrado de Murilo Mendes...). A confusão dos tempos parecia-lhe então inexorável, e nem mesmo o esquecimento, que Picabia lembrava de Nietzsche, podia fazer daquele momento o seu presente. Talvez a distância entre a vida e a morte, encurtada no seu vagar por entre jazigos e epitáfios esperançosos, não pudesse ser medida - e era disso que seus próprios restos ali depositados poderiam já lhe ter falado. Survivance e survenance eram para ele, portanto, a lembrança de que era preciso esquecer tanto o passado quanto o futuro, e de que o presente é efetivamente o nome do dom que é viver. Ao sair do cemitério, ainda atônito com todo o lance de dados absurdo que tinha sucedido à frase pensada em francês, inesperadaramente vê seus devaneios voltar à língua estranha com a qual ingressara no mundo dos mortos (da estraneidade absoluta, portanto): la vie n'est qu'un jeu de désespoir...  

Imagem: Francisco de Goya y Lucientes. Fantasma dançando com castanholas. 1824-28. Museo del Prado, Madrid.

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