terça-feira, 23 de outubro de 2012

Esboços para uma Teoria do Hipster I


A questão que nos coloca a figura do hipster está ligada, tal como se viu, sobretudo a como se expor às relações (ou seja, uma questão político-figurativa). O hipster é uma figura, uma forma ídolo, uma tentativa desesperada de uma constituição subjetiva definitiva e completa, de formação de uma imagem arquetípica (um fora da história, um fora de relação) capaz de dar-lhe a possibilidade de um reconhecimento absoluto - em outras palavras, de ser popular por meio dessa imagem "eterna" de si (sua ser figura, seu ser tipo, seu ser deus). Não se trata de uma figura disposta à exposição política, à partilha do sensível, à assunção da efemeridade que está na constituição de um hábito (de uma ética, portanto), mas de uma figura que "pensa" ser sua especialidade (seu ser specie - que seria, num mundo não hipster, uma abertura aos outros) um absoluto intocável (praticamente uma imagem aquiropita - isto é, não feita por mãos humanas). O hipster não é um problema do século XXI; tampouco sua "origem" diz respeito aos "marginais e malditos" dos anos 60 do século XX (ainda que, para sua atual forma, esses sejam dados importantes). O hipster é a encarnação (o toque de deus que se faz "visível") de um ser especial que, porém, só pode ser ligado à "especiaria", à mercadoria. Ele é a transubstanciação do nada da mercadoria (o puro valor de troca) em carne e osso; é a mercadoria autoritária tornada corpo. O hipster é a corporificação e o rosto do que há tempos ensaia o capital: se à época de Adam Smith uma mão invisível governava e geria as nações e os homens, hoje colhe-se o fruto dessa gestão (gestação): o hipster, o capolavoro do mercado. O hipster, portanto, não se dá à política da exposição (à partilha de si no mundo dos homens) porque é uma imagem fora do tempo dos homens, porque é a carne que faltava ao sacrifício da religião chamada Capitalismo. Daí serem as insígnias da sua suposta e infindável diferenciação, tão recorrentes na sua "formatação" - o tom blasé, as indumentárias hype, as músicas exclusivíssimas, as posição de quem está na crista de uma eterna onda e mesmo o esquerdismo McDonald's -, tão somente paramentas, ritos e hinos de um sacrifício que hoje, finalmente (e o sonho da razão que gera monstros goyesco nunca foi um desenho tão realista e sutil), ocorre a todo instante e em todo lugar. O hipster e seus antecessores - poderíamos dizer, os hipsters em "fase de testes": o antigo burguês parisiense, que já os Dimanches d'un burgeois de Paris, de Maupassant, apresenta no seu incômodo em não poder fazer uma representação em si da imagem da democracia (e eis que, sorrateiro, aparece um dos outros nomes da atual religião do capital), os chamados "punk de boutique" dos anos 70 e 80, os "alugados", os "opinionistas", os "sacadores" etc. - são as vítimas sacrificiais da religião contra a qual supostamente colocam-se (servem voluntariamente). Porém, diferentemente dos seus antepassados que ainda tinham certa consciência da sua impotência (uma condição para a resitência), no hipster há a completa ausência de tal consciência: o hipster crê-se capaz de tudo e no controle de todas as forças que agem sobre ele, quando, de fato, tal crença é somente o rito de passagem necessário à sua condição de vítima sacrificial. O sabichão, o hipster, portanto, "sabe" tudo e "pode" tudo pois essa é a característica que dele exige seu deus: o mercado. Não é um acaso que a atual forma do hipsterianismo tenha surgido em Nova York, a terra em que o touro de Wall Street golpeia, com seus chifres de bronze, as últimas faces da consciência de certa resistência e, nesta grande Plaza, faz com que suas vítimas encenem os mais variados papeis (sobretudo os performáticos politizados, pois assim o culto se completa) à espera da próxima e sacrificial corneada. E, com a anuência de suas vítimas, os algozes (que, ademais, serão também eles vítimas da própria devoção) substituem a fórmula hoc est corpus enim meum (Este é o meu corpo!) por um silencioso e, ao mesmo tempo, ensurdecedor, "matamos a política!"

Imagem: Francisco de Goya y Lucientes. Prisioneiro acorrentado. 1806-12. Musée Bonnat, Bayonne.

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