sábado, 19 de janeiro de 2013

O espírito da escada


Enrique Vila-Matas

A primeira vez que ouvi dizer que literatura e vingança achavam-se estreitamente relacionadas foi em Antibes, há muitos anos, numa taberna no velho porto. Eram altas horas da noite quando alguém comparou a totalidade da literatura com uma "imensa vingança do esprit de l'escalier". Não entendi nada, mas guardei firmemente a estranha comparação e também aquela enigmática expressão francesa: "o espírito da escada". Muitas vezes, na confiança de que um dia poderei decifrá-las, memorizei frases que inicialmente me pareciam ininteligíveis. O tempo sempre acabou vindo em meu auxílio, ainda que, no caso do "espírito da escada", tenha-o feito com parcimônia, pois tive que esperar décadas. Não voltei a encontrar aquela misteriosa expressão até o ano passado, em Bogotá, quando fui ouvir o que diziam César Aira e Juan Gabriel Vásquez em um colóquio entitulado A vingança na literatura. Ali falou Aira, de pronto, do esprit de l'escalier e explicou que para os franceses significava encontrar uma réplica demasiadamente tarde: passar por esse momento em que encontras a resposta, mas esta já não te serve, porque já estás descendo a escada e a resposta engenhosa deveria ter sido dada antes, quando estavas em cima. 
Assim, escrever é vingar-se quando desces a escada, pensei, lá em Bogotá, enquanto me admirava de como aprendemos sobre os passos e deixamos um caminho ao andar e lembrava-me de Samuel Butler, que dizia que nossas vidas se parecem com um solo de violino que temos que interpretar em público enquanto aprendemos a técnica do instrumento à medida que executamos a peça.
Nada é tão certo que, só há pouco, voltei a encontrar-me com essas palavras de Butler em A felicidade dos peixinhos (editorial Acantilado), do grande Simon Leys. Depois de falar da frase sobre o solo do violino, Leys comenta que a vida nos submete a uns azarados testes "nos quais temos de improvisar respostas instantâneas, mas o talento da réplica não é dado a todo mundo: algumas vezes respondemos algo que não tem nada a ver, outras ficamos mudos", e, continuando, cita Paul Valéry para dizer que foi o primeiro a associar a totalidade da literatura a uma "vasta vingança do esprit de l'escalier".
Realmente, a literatura parece uma atividade em contato com um material menos vivo do que a vida e, ademais, tem algo de uma imensa conjunção de frustrados, todos com um atrasado talento para a réplica. Por certo, ainda me lembro dos dias em que persegui obsessivamente um indivíduo para tentar recriar com ele uma situação já vivida e poder, então, por um fim - fracassei no meu intento -, dar minha réplica a umas palavras que em certo momento tinham me deixado mudo e humilhado. 
Dias inteiros descendo escadas. Dou-me conta de que, à luz daquele frenético espírito, posso interpretar agora, desde um ponto de vista inédito, uma velha e apreciada leitura: As preocupações do pai de família, a narração de Kafka na qual o protagonista é Odradek, um dispositivo fusiforme, feito de fios velhos e rompidos, inextricavelmente emaranhados (a literatura antes da era digital?), uma criatura animada a respeito da qual nos diz que está "provida de vida eterna" e que vive sempre na escada que desce cada dia o preocupado pai de família. De vida eterna! Mesmo que pareça inútil qualquer tentativa de saber quem é Odradek, especulou-se tanto sobre ele que supreende que ainda ninguém tenha reparado que esse feio objeto kafkiano, que não é nem antropomórfico nem zoomórfico - esse objeto que é o mais objetivo de quanto imaginou seu autor e que é alguém ou algo que assalta sem descanso a mente do pai de família sempre que este desce a escada -, representa todas as réplicas do mundo e, talvez, precisamente por isso, por seu eterno e implacável sentimento da vingança, é a própria literatura.       

Texto publicado no jornal El País, em 13/12/2011. Disponível em: http://elpais.com/diario/2011/12/13/cultura/1323730805_850215.html (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

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