segunda-feira, 15 de abril de 2013

Limiar ou "tornada" - "O tempo que resta"





Por certo vocês se lembram da imagem do anão corcunda, da primeira tese Sobre o conceito de história de Benjamin, que está escondido sob o tabuleiro e que, por seus movimentos, assegura a vitória ao fantoche mecânico vestido de turco. Benjamin toma tal imagem de um trecho de Poe; mas transpondo-a para o terreno da filosofia da história, acrescenta que aquele anão é, na realidade, a teologia “que hoje é pequena e feia e que não deve em nenhum caso deixar-se ver”, e se o materialismo histórico souber tomá-la a seu serviço, então ele ganhará a partida histórica contra seus temíveis adversários.
            Dessa maneira, Benjamin nos convida a considerar o próprio texto das teses como um tabuleiro sobre o qual se desenrola uma batalha teórica decisiva que, devemos supor, também nesse caso, é conduzida com a ajuda de um teólogo escondido entre as linhas do texto. Quem é esse teólogo corcunda, que o autor soube tão bem dissimular no texto das teses, que ninguém até agora conseguiu identificar? E é possível encontrar nas teses indícios e traços que permitam atribuir um nome àquele que não deve em nenhum caso se deixar ver?

            Citação
            Numa das notas da seção N de seu fichário (que contém reflexões sobre a teoria do conhecimento), Benjamin escreve: “Este trabalho deve desenvolver ao máximo a arte da citação sem aspas” (Benjamin, 1974-89, V, 572). Como vocês sabem, a citação tem em Benjamin uma função estratégica. Assim como existe uma sorte de compromisso secreto entre as gerações passadas e a nossa, também entre as escrituras do passado e o presente há um compromisso do gênero, e as citações são, por assim dizer, as intermediárias de seu encontro. Não surpreende, portanto, que elas devam ser discretas e que por vezes saber cumprir de modo não reconhecível o seu trabalho. Tal trabalho não é tanto de conservação quanto de demolição: “A citação”, pode-se ler no ensaio sobre Kraus, “chama a palavra pelo seu nome, arranca-a do contexto que destrói”; ela “salva e pune” ao mesmo tempo (ibid., II, 363). No ensaio O que é o teatro épico?, Benjamin escreve: “citar um texto significa interromper o contexto a que ele pertence.” O teatro épico brechtiano, ao qual Benjamin se refere no seu ensaio, propõe-se a tornar citáveis os gestos. “O ator”, acrescenta, “deve ser capaz de espaçar seus gestos, como o tipógrafo o faz com as letras” (ibid., 536).
            O verbo alemão que se traduz aqui por “espaçar” é sperren. Ele designa a convenção tipográfica – não apenas alemã – de substituir os itálicos por um espaçamento entre as letras da palavra que se quer, por alguma razão, assinalar. O próprio Benjamin – toda vez que utiliza uma máquina de escrever – serve-se dessa convenção. Do ponto de vista paleográfico, trata-se do contrário das abreviações utilizadas pelos copistas para certas palavras recorrentes no manuscrito, e que, por assim dizer, não havia necessidade de ler (ou, se pensamos nas nomina sacra de Traube, que não se devia): os termos espaçados são, de certa maneira, hiper-lidos, lidos duas vezes – e, como sugere Benjamin, essa dupla leitura podia ser aquela palimpsestica da citação.
            Se vocês derem agora uma olhada no Handexemplar das teses, verão que já na segunda tese Benjamin recorre a tal convenção. Na quarta linha antes do fim, lê-se: Dann ist uns, wie jedem Geschlecht, das vor uns war, eine s c h w a c h e messianische Kraft mitegegeben..., “Para nós, como para todas as gerações que nos precederam, foi dada uma f r a c a força messiânica”. Por que “fraca” está espaçada? Qual tipo de citação está aqui em questão? E por que a força messiânica, à qual Benjamin confia a redenção do passado, é fraca?
            Bem, eu conheço somente um único texto em que se teoriza de maneira explícita a fraqueza da força messiânica. Como vocês viram, trata-se da passagem de 2 Cor 12, 9-10, que comentamos várias vezes, em que Paulo, que pediu para o messias de liberá-lo do espinho na carne, sente-se responder hē gar dynamis en astheneía teleítai, “a potência se cumpre na fraqueza”. “Por isso”, acrescenta o apóstolo, “comprazo-me nas fraquezas, nos ultrajes, nas necessidades, nas perseguições e nas angústias pelo messias; com efeito, quando sou fraco, então sou potente [dynatós].” O fato de que se trate de uma verdadeira citação sem aspas está confirmado pela tradução de Lutero, que Benjamin devia provavelmente ter diante de seus olhos. Enquanto Jerônimo traduz por virtus in infirmitate perficitur, Lutero, como a maioria dos tradutores modernos, prefere denn mein Kraft ist in den schwachen Mechtig: os dois termos (Kraft e schwache) estão presentes, e é essa hiper-legibilidade, essa presença secreta do texto paulino nas teses, que o espaçamento quer discretamente assinalar.
            Vocês entendem que a descoberta dessa citação escondida – mas não muito – no interior dessa tese muito me emocionou. Por aquilo que sabia, Taubes tinha sido o único a sugerir uma influência possível de Paulo sobre Benjamin, mas sua hipótese se referia a um texto do começo dos anos 1920, o Fragmento teológico-político, que Taubes coloca em relação precisamente com Rm 8, 19-23. A intuição de Taubes é certamente justa; entretanto, não somente não é possível falar de citação nesse caso (salvo, talvez, para o termo benjaminiano Vergängnis, caducidade”, que poderia corresponder ao vergengliches Wesen da tradução luterana do versículo 21) – mas há, entre os dois textos, diferenças substanciais. Enquanto, de fato, em Paulo a criação foi sujeitada sem o querer à caducidade e à destruição, e que por isso ela geme e sofre na espera da redenção, em Benjamin, com uma genial inversão, a natureza é messiânica exatamente por sua eterna e total caducidade, e o ritmo dessa messiânica caducidade é a felicidade.

Imagem
Uma vez descoberta a citação paulina na segunda tese (eu lembro a vocês que as teses Sobre o conceito de história são uns dos últimos escritos de Benjamin, quase uma espécie de testamento sobre sua concepção messiânica da história), o caminho está livre para a identificação do teólogo anão, que move secretamente as mãos do fantoche materialismo histórico. Um dos conceitos mais enigmáticos do pensamento benjaminiano dos últimos anos é Bild, imagem. Ele aparece várias vezes no texto das teses, de modo particular na quinta, em que lemos: “A verdadeira imagem (das wahre Bild) do passado fugiu veloz. Somente na imagem, que lampeja num clarão de uma vez por todas no instante de sua cognoscibilidade, deixa-se fixar o passado... Uma vez que é uma imagem irrevogável do passado que arrisca desaparecer de cada presente, que não se reconhece significado nela.” Temos vários fragmentos nos quais Benjamin procura definir esse verdadeiro terminus technicus de sua concepção da história, mas, talvez, nenhum é tão claro como Ms., 474: “Não é que o passado lance sua luz sobre o presente, ou que o presente lance sua luz sobre o passado; a imagem é, antes, aquilo em que o passado vem convergir com o presente numa constelação. Enquanto a relação entre o então e o agora é puramente temporal (contínua), a relação do passado com o presente é dialética, por saltos” (Benjamin, 1974-1989, I, 1229).
Bild é, portanto, para Benjamin, tudo aquilo (objeto, obra de arte, texto, lembrança ou documento) em que um instante do passado e um instante do presente se unem numa constelação, no qual o presente deve saber se reconhecer significado no passado e este encontra no presente seu sentido e seu cumprimento. Mas nós já encontramos em Paulo uma similar constelação entre passado e futuro naquela que definimos como “relação tipológica”. Também aqui um momento do passado (Adão, a passagem pelo Mar Vermelho, o maná etc.) deve ser reconhecido como typos do agora messiânico – e, assim, como vimos, o kairós messiânico é precisamente essa relação. Mas por que Benjamin fala de Bild, “imagem”, e não de tipo ou figura (que é o termo da Vulgata)? Bem, dispomos de uma prova textual que nos permite falar, também nesse caso, de uma verdadeira citação sem aspas: Lutero traduz Rm 5, 14 (typos tou méllontos) por welcher ist ein Bild des der zukunfftig war (1 Cor 10, 6 é traduzido por Furbilde; e antítypos, em Heb 9, 24, por Genenbilde). De resto, também nessa tese Benjamin utiliza o espaçamento, mas o desloca para três palavras depois de Bild, a um termo que não parece ter nenhuma necessidade de ser sublinhado: das wahre Bild des Vergangenheit h u s c h t vorbei – que, naturalmente, pode também conter uma alusão a 1 Cor 7, 31: parágei gar to schēma tou kosmou toutou (“passa, de fato, a figura desse mundo”), da qual Benjamin talvez tirou a ideia de que a imagem do passado arrisca desaparecer para sempre se o presente não nele se reconhece.
Vocês se recordam que, nas cartas paulinas, o conceito de typos está estreitamente ligado ao de anakephalaíōsis, recapitulação, e que, junto com este, define o tempo messiânico. Também tal conceito está presente no texto benjaminiano numa posição particularmente significativa, isto é, no fim da última tese (que, depois de o Handexemplar ter sido encontrado, não é mais a décima oitava, mas a décima nona). Leiamos, então, a passagem em questão:
Die Jetztzeit, die als Modell der messianischen in einer ungeheuren Abbreviatur die Geschichte der ganzen Menschheit zusammenfasst, fällt haarscharf mit d e r Figur zusammen, die die Geschichte der Menschheit im Universum macht. (“A atualidade que, como modelo do tempo messiânico, reassume numa abreviação desmedida a história da humanidade inteira, coincide perfeitamente com a figura que a história da humanidade faz no universo”).

Jetztzeit
Algumas palavras, antes de mais nada, sobre o termo Jetztzeit. Num dos manuscritos das teses, o único manuscrito em sentido técnico, aquele de propriedade de Hannah Arendt, a palavra, no momento em que aparece pela primeira vez na tese XIV, está escrita entre aspas (como Benjamin escreve à mão, é impossível sperren). Isso tinha impulsionado o primeiro tradutor italiano das teses, Renato Solmi, a traduzir o termo por “tempo-agora”, o que é certamente arbitrário (uma vez que o termo alemão significa apenas “atualidade”) e, todavia, apreende algo da intenção benjaminiana. Depois de tudo o que dissemos no seminário sobre a expressão ho nyn kairós como designação técnica do tempo messiânico em Paulo, é impossível não notar a correspondência literal entre os dois termos (“o-de-agora-tempo”). Tanto mais porque, em alemão, a história recente do termo mostra que ele tem com frequência uma conotação negativa e anti-messiânica: tanto em Schopenhauer (“Ele – nosso tempo – chama a si mesmo por um nome que se deu sozinho, tão característico quanto eufemístico: Jetztzeit: sim, precisamente Jetztzeit, isto é: pensa-se apenas no agora e não se guarda para o tempo que vem e julga” Schopenhauer, 1963, 213-214), quanto em Heidegger (“chamamos Jetzt-Zeit o tempo mundano tal como ele aparece na utilização de um relógio que conta os “agora”... [no Jetzt-Zeit] a temporalidade extático-horizontal é sobreposta e nivelada”: Heidegger, 1972, 421-422). Benjamin inverte essa conotação negativa a fim de dar ao termo o mesmo caráter do paradigma do tempo messiânico que ho nyn kairós possui em Paulo.
Mas voltemos ao problema da recapitulação. A última frase da tese – o tempo messiânico como uma abreviação enorme de toda história – parece evidentemente retomar Efe 1, 10 (“todas as coisas se recapitulam no messias”). Mas também desta vez – se olharmos a tradução luterana – nos damos conta de que a retomada é, na realidade, uma citação sem aspas: alle ding zusamen verfasset würde in Christo. O mesmo verbo (zusammenfassen) corresponde nos dois casos ao anakephalaiōsasthai de Paulo.
Como provas internas de uma correspondência textual, e não apenas conceitual, entre as Teses e as Epístolas, esses indícios podem ser suficientes. Nessa perspectiva, todo o vocabulário das teses parece de cunho genuinamente paulino. E não espantará que o termo “redenção” (Erlösung) – um conceito absolutamente central para a concepção benjaminiana do conhecimento histórico – seja – obviamente – aquele pelo qual Lutero traduz o apolutrōsis de Paulo, que é do mesmo modo central nas Epístolas. Que tal conceito paulino seja de origem helenística (a libertação dos escravos pela divindade, de acordo com a sugestão de Deissmann), ou apenas judaica – ou, de modo mais provável, as duas coisas juntas –, em todo caso a orientação para o passado que caracteriza o messianismo benjaminiano tem o seu cânone em Paulo.
Mas existe igualmente um outro indício, exterior desta vez, que deixa inferir que mesmo Scholem estivesse a par dessa proximidade dos pensamentos de Benjamin e de Paulo. A atitude de Scholem em relação a Paulo – um autor que conhece muito bem e que uma vez definiu como “o exemplo mais eminente de misticismo revolucionário judaico” (Scholem, 1980, 20) – não é por certo desprovida de ambiguidade. A descoberta de inspiração paulina em certos aspectos das especulações messiânicas de seu amigo não podia ser para ele reconfortante, e estava certamente entre as coisas que não lhe teria agradado falar. No entanto, em um de seus livros há uma passagem em que – com a mesma cautela com que, no livro sobre Sabbatai Zevi estabelece uma relação entre Paulo e Nathan di Gaza – ele parece de fato sugerir, ainda que de modo crítico, que Benjamin pudesse ser  identificado com Paulo. É na sua interpretação de Agesilaus Santander, o enigmático fragmento composto por Benjamin, em Ibiza, em agosto de 1933. A interpretação de Scholem funda-se sobre a hipótese de que o nome Agesilaus Santander, pelo qual Benjamin parece referir a si mesmo no texto, é, na verdade, um anagrama de der Angelus Satanas. Se, como penso, vocês não se esqueceram da aparição desse ággelos sataná como um “espinho na carne”, em 2 Cor 12, 7, não se surpreenderão com o fato de que Scholem faça remissão precisamente a esta passagem de Paulo como possível fonte de Benjamin. A alusão é rápida e nunca mais repetida: mas, se se toma conta do fato de que tanto o fragmento de Benjamin como o texto de Paulo são fortemente autobiográficos, a hipótese implica que Scholem esteja sugerindo que o amigo, evocando a sua relação secreta com o anjo, pudesse de algum modo identificar-se com Paulo.
Em todo caso, creio que não se possa haver dúvidas de que – separadas entre si por quase dois mil anos e compostas numa situação de crise radical, as Epístolas e as Teses – esses dois célebres textos messiânicos da nossa tradição – formam uma constelação que, por alguma razão sobre a qual lhes convido a refletir, conhece precisamente hoje o momento de sua legibilidade. Das Jetzt der Leserbarkeit, o agora da legibilidade” (ou da “cognoscibilidade”, Erkennbarkeit), define um princípio hermenêutico genuinamente benjaminiano, que é o exato contrário do princípio corrente, segundo o qual qualquer obra pode ser a todo instante o objeto de uma interpretação infinita (infinita no duplo sentido: que nunca se exaure, e que é possível independentemente da sua situação histórico-temporal). O princípio benjaminiano supõe, ao contrário, que toda obra e todo texto contenham um índice histórico que não indica apenas seu pertencimento a uma determinada época, mas diz também que eles alcançam a legibilidade num determinado momento histórico. Somente nesse sentido, como está escrito numa nota em que Benjamin confiou sua extrema formulação messiânica, e que constitui, portanto, a melhor conclusão de nosso seminário:

“Cada agora é o agora de determinada cognoscibilidade [Jedes Jetzt ist das Jetzt einer bestimmten Erkennbarkeit]. A verdade é nele carregada de tempo até desaparecer em estilhaços. (Esse desaparecer em estilhaços, e nada mais, é a morte da Intentio, que coincide com o nascimento do autêntico tempo histórico, o tempo da verdade.) Não é que o passado lance sua luz sobre o presente ou o presente sua luz sobre o passado, mas imagem é aquilo em que o que foi se une num clarão com o agora numa constelação. Em outras palavras: imagem é a dialética em suspensão. Porque, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, aquela entre aquilo que foi e o agora é dialética: não temporal mas imaginal. Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas, isto é, não arcaicas. A imagem lida, isto é, a imagem no agora da cognoscibilidade, leva ao mais alto grau a marca daquele momento crítico e perigoso que está na base de toda leitura” (Benjamin, 1974-1989, V, 578). 


Giorgio Agamben. Il Tempo che resta. Un commento alla Lettera ai Romani. Torino: Bollati Boringhieri, 2000. pp. 128-135. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Matthias Grünewald. Ressurreição de Cristo. 1515.  Musée d'Unterlinden, Colmar.

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