domingo, 26 de maio de 2013

O enraivecido sou eu



"Algumas manhãs, ao despertar, o pensamento sobre a idade é como um fulgor. A úlcera, um mês de cama, a fraqueza, os cuidados. Me senti velho, pela primeira vez." Já o velho Pier Paolo Pasolini: cinquenta quilos de uma raiva que é solidão, amor, timidez, incontinência, medo, gênio. Cinquenta quilos de homem.
Eis aqui o Pasolini (dele se falou tanto, se fala tanto), vive com a mãe na periferia de Roma, a casinha entre outras casinhas na colina do Eur, sobre o vale queimado pelo sol, terra, ervas, fabriquetas, um campo esportivo para "moreninhos" arrogantes e miseráveis. "Quando está um dia bonito se vê até o mar", diz. Que mar, Pasolini? Aquela coisa cinza lá embaixo, depois da areia? "Aqui se está bem e o jardim é fresco." Sim, Pasolini, a mesinha, o banco, as flores de banho, a mãe que deixa a casa em ordem. Mas não é isso que gera ternura ou desconforto, mas algo muito diferente: sentir-se em débito com ele por tudo e não saber o que fazer, como retribui-lhe pela inteligência que nos deu nesses anos generosamente. Não é o dinheiro que quer, mesmo se nós nos lembramos bem de dar-lhe; nem estamos autorizados a conceder-lhe aquela isenção da moral comum que pede com grande e ingênua insistência; demos a ele ao menos a estima intelectual que merece (que lhe é dada com corações moles e cabecinhas vazias), digamos que é a melhor de todas.
A mãe leva o café ao hóspede e a camomila ao filho. "Sentemos no jardim, tem um pouco de vento." Assim, para fugir do patético, ataco um pouco de modo estúpido:
"Escute, Pasolini, para o senhor quem é o verdadeiro enraivecido? Genet? Landroux? Germano Lombardi? Lenin?"
Fica mal: vim até ele para brincar? E é um outro sinal do verdadeiro talento: a ingenuidade diante do banal. De todo modo, mudamos o registro.
"Queria perguntar-lhe, seriamente, qual é a diferença entre entre enraivecido e revolucionário."
Ele passa a mão pelo rosto e fecha os olhos como alguém que sofre de enxaqueca crônica: "A contestação do enraivecido é interna ao sistema, para modificar o sistema, mas porque este vive. O revolucionário, ao contrário, nega o sistema no plano do real e a ele contrapõe sua perspectiva utopista. Não, deixe-me dizer, com frequência o revolucionário, depois de ter destruído a sociedade constituída, excede-se na reconstrução, quer que tenha todos os atributos e traz também o moralismo e a respeitabilidade burguesa. Ao passo que o enraivecido, por vezes, incide de maneira mais profunda do que o revolucionário. Mas uma coisa é clara: o enraivecido pode não ser, e quase sempre não é, um revolucionário, enquanto o revolucionário é sempre um enraivecido".
"Ainda que se diga que um caráter do grande revolucionário seja o seu desprendimento, o seu olhar gélido, de águia, a sua faculdade de prever e mover a história transferindo a sua raiva aos operários da revolução: Lênin que prepara a revolução na Suíça."
"A conotação com a qual o senhor fala, o soberano desprendimento, não pertence tanto ao revolucionário quanto ao gênio. Que Lênin tenha sido um gênio está fora de dúvidas. Entretanto, eu não estaria tão seguro sobre o seu desprendimento. Escavando-lhe a alma, provavelmente teremos descoberto a ferida profunda, aberta, deixada pelo homicídio do irmão. O Lênin enraivecido não é aquele que se lançava contra a burguesia reacionária, mas o outro, das polêmicas contra os mencheviques. E é um sinal de raiva autêntica, de paixão."
"Qual é então o modelo do enraivecido não revolucionário?"
"Sócrates, sem hesitar. Enraivecido, ele sim, com um desprendimento científico, ao ponto de renunciar à vida serenamente; e enraivecido, note-se bem, contra as admiráveis instituições democráticas de Atenas. O caso de Sócrates é perfeito: morre para respeitar a lei de um sistema que, no entanto, consente a vida do seu acusador, Meleto."
"E o senhor é um enraivecido? Digo de pronto, antes que a vanguarda conteste..."
"Deixe disso, sempre evitei a polêmica com a vanguarda. Nos primeiros anos por ela me interessei, mas não é preciso muito para entender que se tratava de nulidade. É gente de má-fé que faz joguetes. Inútil discutir; seria como litigar com uma prostituta."
"Desculpe-me se insisto, não é tanto a polêmica que me interessa, mas o tema, essa raiva da qual estamos falando, as formas e os conteúdos que deve assumir. Do senhor, por exemplo, dizem: 'Sim, Pasolini ofende, maldiz, fala palavrões, mas em um contexto narrativo, veja-se Uma vida violenta, que tem a estrutura do Coração, com a diferença de que o Coração é de esquerda e o seu livro não. O Coração no sentido em que o protagonista é um herói positivo, bravo e bom, e que, no fundo, a burguesia que observa a sua pobreza não é assim tão malvada'."
"Boutade por boutade, poderia responder que também no Idiota de Dostoievski há um herói positivo. Aqueles senhores ainda não entenderam que um personagem, mesmo se de todo descrito, jamais assume um significado preciso e vinculante, não é uma declaração de fé nem de votos, mas a expressão, a medida do grau de consciência da realidade a que chegou o autor. A verdade é que o meu Coração, de direita, não se tornou o livro da burguesia, mas a levou a uma reação raivosa, racista e de ódio em relação ao sub-proletariado, e que a minha vigilância lombarda, se dela recordam-se aqueles senhores, desencadeou perseguições e punições das quais não fiquei de fora."
"Há outra coisa, Pasolini. Dizem que o senhor é um poeta 'do voo sobre Viena'[1], capaz de usar a luta de classe, como D'Annunzio usou a guerra mundial, para fins estetizantes."
"É uma acusação da qual não me defendo. Quer dizer que me sobrevalorizam."
"Que dizem ainda os vanguardistas? Ah, sim! Dizem que a linguagem é de importância fundamental para os enraivecidos, que é ridículo enraivecer-se em versos alexandrinos."
"Não gosto dos versos alexandrinos, mas, às vezes, parecem uma novidade em face às codificações mais recentes em relação aos versos alexandrinos."
"Pasolini, no seu lugar eu não levaria muito a sério a vanguarda. Onde estão, na república italiana das letras, os verdadeiros enraivecidos?"
"Os literatos italianos são, por definição, satisfeitos ou resignados. Salvo os poucos que vagam como larvas, na periferia, salvo os raríssimos que operam de modo aristocrático em nível internacional."
"E, para o senhor, por que a raiva é tão rara para nós?"
"Existem as grandes razões históricas: a Contrarreforma, a revolução liberal imitada, postiça, a resignação, o hábito secular da irresponsabilidade. Há uma burguesia frágil, improvisada, um establishment incerto, e a grande raiva, o senhor sabe, existe onde há a grande burguesia, onde há o grande inimigo como nos países anglo-saxões. Então, há um motivo mais recente: a guerra partisana entre nós foi algo importante, uma raiva verdadeira, dramática. Uma geração deu o melhor, outras creram de boa fé e razoavelmente que aquilo fosse o canal, o modelo de uma raiva séria, organizada, sem teatralidade. Foi um bem para alguns anos e depois, talvez, foi um mal e impediu novas e sinceras manifestações, exauriu energias jovens no casulo do antifascismo genérico."
"Raiva, protesto, o corvo revolucionário que morre comido, mas prevendo o sucessor, a raiva que continua, incansável. E a ironia, Pasolini? A resignação? A vida é vida, os homens homens, e tudo é previsível no imprevisível. Por que, grosso modo, alguém não deveria se cansar?"
"Não, o enraivecido não se torna razoável, não se cansa, não tira lições, é como azul de tornassol: ele reage. Só que quando é jovem, confia no futuro da sua vida, enquanto depois, com o passar dos anos, tomam-lhe as dúvidas, os desânimos. Então a raiva aumenta, torna-se obsessão. Sabe por que fiz cinema? Porque não suportava mais a língua oral nem a escrita. Porque queria repudiar com a língua o País do qual estive cem vezes a ponto de fugir."
"O senhor se diz enraivecido, um dos raros enraivecidos italianos, perseguido por amor à raiva. Entretanto, regularmente sua raiva acaba por resolver-se em vontade de vida, em obra útil aos outros, em pesquisa arriscada feita também para os outros. Que efeito teve, por exemplo, o seu último filme?"
"Como sempre, ambíguo. Conduzo uma guerra em dois frontes: contra a pequena burguesia e contra o seu espelho que é, por certo, o conformismo de esquerda. E assim desagrado a todos, torno-me inimigo de todos, sou forçado a ter relações complicadíssimas, feitas de explicações contínuas. Agora assumi uma nova fadiga: organizo uma coleção de ensaios sobre cinema."
"Eu lhe dizia que sua raiva melhor é esta: abrir novas estradas, fabricar novos instrumentos."
"E então o teatro. Levantando-me da cama depois de estar doente, comecei a escrever para o teatro."
O sopro quente do vento movimenta as pequenas plantas, no átrio, embaixo, há um camponês vestido de porteiro e aquelas casas de papelão são Roma. Ficamos em silêncio e então ele diz: "Talvez a única coisa a fazer é continuar a fazer aquilo que fizemos nesses anos." Bem, levantemos a cabeça e avante: é o único modo para não se dar conta de que se abriu uma porta para o escuro.

[1] O "Voo sobre Viena" foi uma ação realizada por Gabriele D'Annunzio em 9 de agosto de 1918. Com uma esquadra, chamada "A Sereníssima", que voou por cerca de 1.200 quilômetros - ida e volta - desde um aeroporto militar nas proximidades de Pádua até Viena para soltar 50.000 folhetos de propaganda pró-italiana. [N.T.]

Pier Paolo Pasolini. "L'arrabbiato sono io." In.: Pier Paolo Pasolini. Saggi sulla Politica e sulla Società. A cura di Walter Siti e Silvia De Laude. Milano: Arnoldo Mondadori, 2012. pp. 1591-1596. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Originalmente a entrevista, concedida a Giorgio Bocca, foi publicada no jornal "Il Giorno" em 19 de julho de 1966.

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