sexta-feira, 10 de maio de 2013

Pequeno delírio em parágrafo X


Às vezes sabemos que a carta que acaba de nos ser entregue já tinha sido aberta muito antes, num tempo em que nem mesmo sabíamos ler. É como se nenhuma novidade possa surgir; é como se tudo já tivesse sido escrito e, a despeito disso, ainda insistíssimos em querer escrever e ler, ainda tentássemos ter a ousadia de fracassar em cada movimento de olhos diante dessas manchas sobre a alva celulose. Destilamos as palavras como se as pudéssemos tocar, como se fossem as únicas coisas certas desta parca e efêmera existência. Não nos livramos disso. Giorgio Caproni pensava em escrever com uma única palavra, ou, quiçá, para além da palavra, para além da simulação dessa suposta coisa que chamamos realidade. A coisa chamada palavra e a coisa chamada realidade: e não saímos disso, dessa luta entre os universos paralelos da linguagem e da suposta realidade. Esses alforjes que embaralham as pistas da nossa existência, as palavras, jogam-nos contra nós mesmos, e não saímos disso. Recebemos cartas e as escrevemos, mas nenhuma delas jamais poderá ser real e, quicá, lida...

Imagem: Micha Bar-Am. O retorno de Entebbe. 1976.

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