terça-feira, 11 de junho de 2013

Ateologia política



Entrevista com Roberto Esposito

Professor Esposito, a ideia da fé como instrumentum regni é funcional apenas para uma ideologia conservadora ou esconde algo mais profundo?

A ideia de que sem valores religiosos dominantes não se mantém junta uma sociedade não é algo dos “ateus devotos”, como Giuliano Ferrara. Também pensadores refinados como Massimo Cacciari ou Mario Tronti creem que a referência às raízes teológicas seja decisiva. Eis a demonstração, se isso fosse necessário, do quão persistente e penetrante é esse modo de pensar.



Outros, entretanto, sustentam que vivemos na era da secularização, do relativismo, da moral do “faça por si”.

De fato, mas isso não significa que estejamos “liberados”. Categorias como “secularização”, “desencanto” e “ateísmo” são conceitos teológicos negativos ou invertidos. Existem apenas no interior do horizonte que, ao contrário, gostar-se-ia de ultrapassar.



Podemos dar um exemplo de alguns conceitos “teológicos” operantes na atualidade política dos nossos dias?

Posso dar muitos: pensemos no recente debate sobre o presidencialismo. Foi sustentada a ideia de que somos uma sociedade que não pode desprezar a figura do pai. Ora, a ação do presidente Napolitano foi um bem para todos, encontrou uma solução, desemperrou uma situação que tinha chegado à paralisia. No plano simbólico, entretanto, há algo que não está bem. Pois a democracia não deve ser um regime de “filhos”, mas, antes, de “irmãos”. Não é verdade que temos necessidade de uma instância superior, transcendente.



Mas em que consiste o mecanismo opressivo que o senhor atribui à teologia política?

É uma tradição de pensamento que corta em duas nossa vida. Que tende a realizar a unidade por meio da marginalização de uma das partes e que exclui enquanto pretende incluir. A igualdade, historicamente, sempre foi “cortada”: entre brancos e negros, homens e mulheres. E assim também o Ocidente que subjuga o resto do mundo, a globalização que empobrece grande parte da humanidade. 



Para o senhor, é chegado o momento de sair desse “dispositivo” que nos capturou e impede uma autêntica liberdade de pensamento. Mas como isso é possível?

Por certo que não é uma tarefa fácil. Ao contrário, é dificilíssima. Creio que o manto que nos mantém presos, e que temos que tentar romper, esteja fundado sobre o conceito de pessoa. De maneira mais precisa, sobre a ideia de que o pensamento pertença ao ser individual [singolo], ao indivíduo. Isso, é claro, depois de Descartes. Por outro lado, é preciso voltar a uma tradição que de Aristóteles chega a Bergson e Deleuze, passando por Averróis, Dante e Spinoza. É uma cadeia que remonta à antiguidade, na qual o pensamento é visto como um lugar que todos podemos atravessar, um patrimônio que todos podemos atingir. O primeiro e mais importante, seria possível dizer, dos bens comuns.



Chegamos à “teologia econômica” em que a parte central de seu pensamento se desenvolve em torno da ideia de dívida (débito).

Por ora, pensemos na ironia de definir as dívidas (débitos) dos estados com a expressão “dívida (débito) soberana” (e soberania é um conceito eminentemente teológico). Hoje, é claro, a soberania não pertence mais aos estados individuais, mas às finanças.



O que há de teológico no conceito de débito?

Walter Benjamin definia o capitalismo como “o único culto que não purifica, mas culpabiliza”. A origem teológica desse conceito é claríssima. Se pensamos que na língua alemã uma mesma palavra significa tanto dívida (débito) quanto culpa, entendemos muitas coisas. Compreendemos por que os alemães pensar viver como virtuosos e consideram, por exemplo, os gregos não apenas endividados, mas também culpados. Mas hoje, por meio da dívida (débito) pública, estamos todos endividados.



Somos todos prisioneiros da dívida (débito)?

Nietzsche dizia que a dívida (débito) nos tornou escravos uns dos outros. E não apenas em sentido simbólico. O círculo biopolítico que liga o corpo do devedor ao credor tem origens distantes. A instituição romana do nexum consignava o destino da pessoa endividada ao seu credor, que dele podia dispor livremente, para a vida ou para a morte. O mercador de Veneza, de Shakespeare, pretende ser pago com uma libra de carne de quem não o pode fazer com dinheiro. Mas também hoje a dívida (débito) se paga com a vida. Pensemos nos imigrantes que devem pagar para sempre com o seu trabalho quem lhes emprestou o dinheiro para sair de seus países. Pensemos nos suicídios por dívidas.



Se chegamos a tal ponto, não é apenas por fruto da “máquina” teológica, existem também responsabilidades mais recentes.

Sem dúvida todo esse processo foi facilitado pela governança liberal, principalmente a partir dos anos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que não nos liberou. Ao contrário, transformou o welfare em um peso insustentável, teorizando o Lightfare, o estado leve. É a ideologia do “cada um por si” que levou à crise e deixou 99% da população mais pobre.



O senhor sustenta que para nos liberar como indivíduos é preciso agir coletivamente.

Creio que sim. O mecanismo de desenvolvimento mudou, devemos voltar a pensar nos investimentos sociais úteis, não nos ganhos pessoais. Para isso, ajuda-nos o conceito de communitas, que significa ter em comum um munus, palavra que na origem significava ao mesmo tempo dívida (débito) e dom. Nas sociedades arcaicas a dívida (débito) era vivida como uma ligação social. Ser comunidade não significa procurar oprimir um ao outro, mas sentir-se vinculados por um dom de fraternidade.    

Entrevista de Roberto Esposito a Leopoldo Fabiani, publicada no jornal La Repubblica no dia 27 de maio de 2013. (Disponível em: http://www.iniziativalaica.it/?p=15821) Tradução: Vinícius N. Honesko

Imagem: William Blake. Cristo como redentor do homem. 1808. Museum of fine arts, Boston.
         

   

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