terça-feira, 4 de junho de 2013

Segunda tentativa de escrever o que escreveria se escrevesse


Estávamos destinados a algum outro planeta distante, ao outro extremo da galáxia. Eu me pergunto como estarão se arranjando aqueles que estavam destinados a viver aqui, como estarão se arranjando aqueles que estavam destinados a viver aqui, como estarão as coisas para eles nesse outro planeta. Será que nosso terror vem desse pequeno equívoco de tão grande importância? "Pode ser que sejamos um acidente biológico, o vírus mais bem-sucedido e potente que se tenha criado", diz John Banville, que pensa que nós, seres humanos, tivemos que aceitar forçosamente que o que somos é autêntico. Mais que isso, inventamos a palavra normal. E até nos atrevemos a chamar de estranhos alguns de nossos semelhantes. Para encerrar, os normais às vezes chamaram a mim de estranho.
Fico agora pensando nesse pobre marciano que um dia ficará empacado aqui, isto é, aterrado. Terá resolvido tudo acerca da humanidade e, num primeiro momento, pensará que o mundo pertence aos automóveis, mas não tardará a ver que os parasitas a bordo dos carros são os que, na realidade, controlam as rédeas. Quando achar que resolveu o problema, descobrirá de repente que espirramos, bocejamos, lançamos uivos silenciosos no meio da noite. Por acaso isso é normal? O marciano conhecerá o terror em que vivemos quando observar que a metade da população mundial raspa o rosto a cada manhã com uma navalha e a outra metade não.
Já desde o momento exato do nascimento, conhecemos o medo e preferimos, dadas as circunstâncias, servir a exercer esse Poder que, como demonstra a famosa História, nunca é de ninguém. Entrar na vida normal é entrar na suspeita de que aqueles que realmente estavam destinados a viver aqui se extinguiram há anos, pois não é possível imaginar que tenham podido sobreviver num planeta feito para nos conter. Não somos daqui. E só a literatura parece se ocupar com seriedade de nosso espanto. Quando Poe escreveu aquele conto de um homem a quem enterram vivo, contou nossa verdadeira história. Daí o terror que ainda perdura naqueles que leram esse conto que dizia a verdade, um medo que se converte num terror duplo se chegamos a Kafka, o morto em vida. Os homens normais olharam Kafka sempre com estranheza, na realidade com a mesma estranheza com a qual ele os olhava, consciente de que não tinha um lugar neste mundo: "Duas tarefas do início da vida: reduzir cada vez mais teu âmbito e averiguar mais de uma vez se não te encontras escondido em algum lugar fora dele", escreveu Kafka num texto de juventude, um Kafka que sempre quis nos transmitir que aquilo que nos parece uma alucinação inimaginável é precisamente a realidade de cada um. Se pensarmos bem - nos diz Philip Roth -, veremos que em todos os seus romances Kafka traça a seguinte crônica: alguém é educado para aceitar que tudo aquilo que lhe parece absolutamente injusto e fora de lugar (além de ridículo e muito abaixo de sua dignidade) é de fato o que realmente está lhe acontecendo. Dito de outro modo, isso que está tão abaixo de nossa dignidade acaba por ser nosso destino.

Enrique Vila-Matas. Doutor Passavento. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Trad.: José Geraldo Couto. pp. 332-333.

Imagem: Elliott Erwitt. Pasadena, California, 1963. 

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