sexta-feira, 12 de julho de 2013

Carta impossível



Para minha destinatária impossível.

Querida, ando a ver monstros onde deveriam estar seus retratos (estranho como toda vez que escrevo retrato, tenho em mente a distância, o retrait, mas de uma maneira doentia, talvez como essa mania de escrever à distância). Andei ocupado o suficiente a ponto de chegar a pensar que seria você possível. São os monstros, querida, essa excrescência que, no entanto, é o meu mais íntimo. Não sei se os seus retratos impossíveis poderiam dar algum alento ou mesmo substituir aquelas imagens sem nome que agora ocupam a prateleira (aliás, o lugar dos livros levados por você e que, agora, é o lugar da distância, desses seus retratos faltantes). Desperto, mas o sonho permanece em mim. E lembro dos começos do desassossego daquele português, que se perdia em si mesmo e que detestava sonhar e agir: "como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei de, em certa ocasião, ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra." Parece que não há escapatória desta carta que hesitei em escrever, querida. Aliás, por insisto num apelativo tão hipócrita (para não dizer idiota)? Toco a prateleira vazia e tão plenamente ocupada pelas imagens disformes dos monstros. Talvez eles a mim apareçam por ter, um dia, acreditado poder vencê-los (como se pudesse tocá-la, mesmo na sua impossibilidade); e porventura não são os homens de antemão condenados à derrota? Lembra-me disso o chileno infrarrealista que, perdido, dirigindo um Impala, no seu imaginário deserto de Sonora, no seu não menos imaginário México, pensava a condenação do ser humano à "derrota sin apelaciones, pero que hay que salir y dar la pelea y darla además de la mejor forma posible, de cara y limpiamente, sin pedir cuartel (porque además no te lo darán), e intentar caer como un valiente, y eso es nuestra victoria." Os monstros se exibem e seu afastamento - sua impossibilidade - mostra-se apenas como o no man's land onde devo lutar e lutar já me sabendo um derrotado. Querida (ouso o apelativo talvez pela última vez), agora me dou conta de que nenhum alento, que seja a sua fantasmagoria em retrato, é possível; todo pedido de cuartel é desde sempre negado (foi-se o tempo do miserere nobis). Agora uma luz seca, quase opaca, começa a me tocar a ponta dos dedos. Esqueço o porquê de ter tomado o papel e a caneta para novamente endereçar-me a você. A luz, como que a afagar os monstros, me faz ter receio de continuar. Ainda tinha muito a lhe falar sobre a derrota, a ausência, e todos os signos do negativo. Mas já não há papel e, com isso, me resta uma possibilidade: cair como um valente.

Do seu remetente impossível.

p.s.: mando-lhe uma foto de um outro chileno. Talvez também ele atormentado por monstros...        




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