domingo, 18 de agosto de 2013

Pequeno delírio em parágrafo XIV



Todas as vozes do mundo parecem entrar em minha cabeça a cada movimento raivoso dos braços de Jacqueline. O cello canta com uma voz que me diz coisas que eu talvez jamais poderia ter dito. É tudo muito claro, como nas cartas que, por vezes, um filho, confuso pelas respostas desajeitadas da mãe demente, tentava esclarecer do seu passado esquecido. Ou seja, nada brilha na memória, apenas um espaço em branco como que a ser preenchido por este cello, e apenas por este. A tensão do som, a harmonia e a melodia, o instante em que soa, esse irrepetível e, ao mesmo tempo, inesquecível que assola qualquer possibilidade de coerência deste parágrafo. Um susto, e nada mais. O espanto das letras que saltam como que a desenhar partituras ilegíveis que, com insistência, tento exprimir nestas malditas linhas. Minha condenação é a palavra percebida, e qualquer reduto de paz - o tão sonhado apanágio destes tempos sombrios - não é senão o viver a condenação sem a perceber. Procuro, em vão, neste inóspito quarto - como que numa leitura sem esperanças de didascálias que me indicam como encenar -, a matéria da vida, a razão do som que do cello de Jacqueline escuto sair incólume. Delírio, perdição na palavra, desgostos por ver o sol que se vai mais uma vez. Sem poder dizê-lo, ele, o sol, cubro-me das sombras da noite produzidas por estas palavras que me fazem calar, e, em silêncio, apenas ouço minha respiração ofegante. Mas, desafortunado, percebo que não há escapatória à pena da língua e mesmo essa brisa noturna é ensurdecedora...

Imagem: Hans Baldung Grien. O criado enfeitiçado. 1544. The National Gallery of Art, Washington.

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