domingo, 26 de maio de 2013

O enraivecido sou eu



"Algumas manhãs, ao despertar, o pensamento sobre a idade é como um fulgor. A úlcera, um mês de cama, a fraqueza, os cuidados. Me senti velho, pela primeira vez." Já o velho Pier Paolo Pasolini: cinquenta quilos de uma raiva que é solidão, amor, timidez, incontinência, medo, gênio. Cinquenta quilos de homem.
Eis aqui o Pasolini (dele se falou tanto, se fala tanto), vive com a mãe na periferia de Roma, a casinha entre outras casinhas na colina do Eur, sobre o vale queimado pelo sol, terra, ervas, fabriquetas, um campo esportivo para "moreninhos" arrogantes e miseráveis. "Quando está um dia bonito se vê até o mar", diz. Que mar, Pasolini? Aquela coisa cinza lá embaixo, depois da areia? "Aqui se está bem e o jardim é fresco." Sim, Pasolini, a mesinha, o banco, as flores de banho, a mãe que deixa a casa em ordem. Mas não é isso que gera ternura ou desconforto, mas algo muito diferente: sentir-se em débito com ele por tudo e não saber o que fazer, como retribui-lhe pela inteligência que nos deu nesses anos generosamente. Não é o dinheiro que quer, mesmo se nós nos lembramos bem de dar-lhe; nem estamos autorizados a conceder-lhe aquela isenção da moral comum que pede com grande e ingênua insistência; demos a ele ao menos a estima intelectual que merece (que lhe é dada com corações moles e cabecinhas vazias), digamos que é a melhor de todas.
A mãe leva o café ao hóspede e a camomila ao filho. "Sentemos no jardim, tem um pouco de vento." Assim, para fugir do patético, ataco um pouco de modo estúpido:
"Escute, Pasolini, para o senhor quem é o verdadeiro enraivecido? Genet? Landroux? Germano Lombardi? Lenin?"
Fica mal: vim até ele para brincar? E é um outro sinal do verdadeiro talento: a ingenuidade diante do banal. De todo modo, mudamos o registro.
"Queria perguntar-lhe, seriamente, qual é a diferença entre entre enraivecido e revolucionário."
Ele passa a mão pelo rosto e fecha os olhos como alguém que sofre de enxaqueca crônica: "A contestação do enraivecido é interna ao sistema, para modificar o sistema, mas porque este vive. O revolucionário, ao contrário, nega o sistema no plano do real e a ele contrapõe sua perspectiva utopista. Não, deixe-me dizer, com frequência o revolucionário, depois de ter destruído a sociedade constituída, excede-se na reconstrução, quer que tenha todos os atributos e traz também o moralismo e a respeitabilidade burguesa. Ao passo que o enraivecido, por vezes, incide de maneira mais profunda do que o revolucionário. Mas uma coisa é clara: o enraivecido pode não ser, e quase sempre não é, um revolucionário, enquanto o revolucionário é sempre um enraivecido".
"Ainda que se diga que um caráter do grande revolucionário seja o seu desprendimento, o seu olhar gélido, de águia, a sua faculdade de prever e mover a história transferindo a sua raiva aos operários da revolução: Lênin que prepara a revolução na Suíça."
"A conotação com a qual o senhor fala, o soberano desprendimento, não pertence tanto ao revolucionário quanto ao gênio. Que Lênin tenha sido um gênio está fora de dúvidas. Entretanto, eu não estaria tão seguro sobre o seu desprendimento. Escavando-lhe a alma, provavelmente teremos descoberto a ferida profunda, aberta, deixada pelo homicídio do irmão. O Lênin enraivecido não é aquele que se lançava contra a burguesia reacionária, mas o outro, das polêmicas contra os mencheviques. E é um sinal de raiva autêntica, de paixão."
"Qual é então o modelo do enraivecido não revolucionário?"
"Sócrates, sem hesitar. Enraivecido, ele sim, com um desprendimento científico, ao ponto de renunciar à vida serenamente; e enraivecido, note-se bem, contra as admiráveis instituições democráticas de Atenas. O caso de Sócrates é perfeito: morre para respeitar a lei de um sistema que, no entanto, consente a vida do seu acusador, Meleto."
"E o senhor é um enraivecido? Digo de pronto, antes que a vanguarda conteste..."
"Deixe disso, sempre evitei a polêmica com a vanguarda. Nos primeiros anos por ela me interessei, mas não é preciso muito para entender que se tratava de nulidade. É gente de má-fé que faz joguetes. Inútil discutir; seria como litigar com uma prostituta."
"Desculpe-me se insisto, não é tanto a polêmica que me interessa, mas o tema, essa raiva da qual estamos falando, as formas e os conteúdos que deve assumir. Do senhor, por exemplo, dizem: 'Sim, Pasolini ofende, maldiz, fala palavrões, mas em um contexto narrativo, veja-se Uma vida violenta, que tem a estrutura do Coração, com a diferença de que o Coração é de esquerda e o seu livro não. O Coração no sentido em que o protagonista é um herói positivo, bravo e bom, e que, no fundo, a burguesia que observa a sua pobreza não é assim tão malvada'."
"Boutade por boutade, poderia responder que também no Idiota de Dostoievski há um herói positivo. Aqueles senhores ainda não entenderam que um personagem, mesmo se de todo descrito, jamais assume um significado preciso e vinculante, não é uma declaração de fé nem de votos, mas a expressão, a medida do grau de consciência da realidade a que chegou o autor. A verdade é que o meu Coração, de direita, não se tornou o livro da burguesia, mas a levou a uma reação raivosa, racista e de ódio em relação ao sub-proletariado, e que a minha vigilância lombarda, se dela recordam-se aqueles senhores, desencadeou perseguições e punições das quais não fiquei de fora."
"Há outra coisa, Pasolini. Dizem que o senhor é um poeta 'do voo sobre Viena'[1], capaz de usar a luta de classe, como D'Annunzio usou a guerra mundial, para fins estetizantes."
"É uma acusação da qual não me defendo. Quer dizer que me sobrevalorizam."
"Que dizem ainda os vanguardistas? Ah, sim! Dizem que a linguagem é de importância fundamental para os enraivecidos, que é ridículo enraivecer-se em versos alexandrinos."
"Não gosto dos versos alexandrinos, mas, às vezes, parecem uma novidade em face às codificações mais recentes em relação aos versos alexandrinos."
"Pasolini, no seu lugar eu não levaria muito a sério a vanguarda. Onde estão, na república italiana das letras, os verdadeiros enraivecidos?"
"Os literatos italianos são, por definição, satisfeitos ou resignados. Salvo os poucos que vagam como larvas, na periferia, salvo os raríssimos que operam de modo aristocrático em nível internacional."
"E, para o senhor, por que a raiva é tão rara para nós?"
"Existem as grandes razões históricas: a Contrarreforma, a revolução liberal imitada, postiça, a resignação, o hábito secular da irresponsabilidade. Há uma burguesia frágil, improvisada, um establishment incerto, e a grande raiva, o senhor sabe, existe onde há a grande burguesia, onde há o grande inimigo como nos países anglo-saxões. Então, há um motivo mais recente: a guerra partisana entre nós foi algo importante, uma raiva verdadeira, dramática. Uma geração deu o melhor, outras creram de boa fé e razoavelmente que aquilo fosse o canal, o modelo de uma raiva séria, organizada, sem teatralidade. Foi um bem para alguns anos e depois, talvez, foi um mal e impediu novas e sinceras manifestações, exauriu energias jovens no casulo do antifascismo genérico."
"Raiva, protesto, o corvo revolucionário que morre comido, mas prevendo o sucessor, a raiva que continua, incansável. E a ironia, Pasolini? A resignação? A vida é vida, os homens homens, e tudo é previsível no imprevisível. Por que, grosso modo, alguém não deveria se cansar?"
"Não, o enraivecido não se torna razoável, não se cansa, não tira lições, é como azul de tornassol: ele reage. Só que quando é jovem, confia no futuro da sua vida, enquanto depois, com o passar dos anos, tomam-lhe as dúvidas, os desânimos. Então a raiva aumenta, torna-se obsessão. Sabe por que fiz cinema? Porque não suportava mais a língua oral nem a escrita. Porque queria repudiar com a língua o País do qual estive cem vezes a ponto de fugir."
"O senhor se diz enraivecido, um dos raros enraivecidos italianos, perseguido por amor à raiva. Entretanto, regularmente sua raiva acaba por resolver-se em vontade de vida, em obra útil aos outros, em pesquisa arriscada feita também para os outros. Que efeito teve, por exemplo, o seu último filme?"
"Como sempre, ambíguo. Conduzo uma guerra em dois frontes: contra a pequena burguesia e contra o seu espelho que é, por certo, o conformismo de esquerda. E assim desagrado a todos, torno-me inimigo de todos, sou forçado a ter relações complicadíssimas, feitas de explicações contínuas. Agora assumi uma nova fadiga: organizo uma coleção de ensaios sobre cinema."
"Eu lhe dizia que sua raiva melhor é esta: abrir novas estradas, fabricar novos instrumentos."
"E então o teatro. Levantando-me da cama depois de estar doente, comecei a escrever para o teatro."
O sopro quente do vento movimenta as pequenas plantas, no átrio, embaixo, há um camponês vestido de porteiro e aquelas casas de papelão são Roma. Ficamos em silêncio e então ele diz: "Talvez a única coisa a fazer é continuar a fazer aquilo que fizemos nesses anos." Bem, levantemos a cabeça e avante: é o único modo para não se dar conta de que se abriu uma porta para o escuro.

[1] O "Voo sobre Viena" foi uma ação realizada por Gabriele D'Annunzio em 9 de agosto de 1918. Com uma esquadra, chamada "A Sereníssima", que voou por cerca de 1.200 quilômetros - ida e volta - desde um aeroporto militar nas proximidades de Pádua até Viena para soltar 50.000 folhetos de propaganda pró-italiana. [N.T.]

Pier Paolo Pasolini. "L'arrabbiato sono io." In.: Pier Paolo Pasolini. Saggi sulla Politica e sulla Società. A cura di Walter Siti e Silvia De Laude. Milano: Arnoldo Mondadori, 2012. pp. 1591-1596. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Originalmente a entrevista, concedida a Giorgio Bocca, foi publicada no jornal "Il Giorno" em 19 de julho de 1966.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Pornografia da democracia



Alain Badiou

Uma magnífica peça de Jean Genet, “Le Balcon” [A Sacada], confronta o reino das imagens e o real da revolta. Começamos num bordel, um lugar fechado consagrado de modo integral  às fantasias. Genet vê perfeitamente que aquilo que prova a ferocidade escondida do poder contemporâneo é a proliferação da obscenidade das imagens. Fora, entretanto, os motins da classe trabalhadora continuam, como continua, hoje, fora do bordel ocidental, nos trabalhadores das minas da África do Sul, nas milhares de revoltas operárias na China, ou, ainda, no momento do nascimento da “primavera árabe”. Mas também nas residências onde, entre nós, amontoam-se os trabalhadores vindos da África.

A questão profunda do “Balcon” que se coloca à incerta insurreição é então a seguinte: a emancipação política pode se subtrair às imagens? A dificuldade é que o poder nu, que se esconde atrás da sutil plasticidade e da sedutora obscenidade das imagens do mundo democrático e do mercado, não tem imagem: ele é uma realidade nua, aquela do Estado que, longe de procurar nos livrar das imagens, a estas garante sua potência.



O bordel das imagens



O personagem da peça de Genet que traz à cena essa potência sem imagem da imagem é, de modo demasiado normal, o chefe de polícia. Ele é o emblema do poder nu, pois ele é o “deixado à sorte” [laissé-pour-compte] das imagens. Ninguém deseja o chefe da polícia, contrariamente ao grande esportista, ao apresentador de televisão, ao profissional benfeitor, ao político democrata nas cúpulas do Estado, à top model ou ao milionário do show business, estes que são os aproveitadores do bordel das imagens.

O problema central, para quem quer se subtrair ao poder do poder, é de se desembaraçar do cárcere de suas imagens, e, para isso, de saber quem é o chefe de polícia de suas convicções mais íntimas. Qual é a compreensão subjetiva de nosso consentimento ao mundo tal como está? Desde que a ideia de revolução dele se ausentou, nosso mundo é apenas o recomeço da potência, sob imagens consensuais e pornográficas, da democracia de mercado.

Meu otimismo é que um pensamento forte, organizado e popular, que afronte tal reinicio, pode interromper o ciclo do retorno, o qual nos levou a um estado de coisas – a dominação ilimitada do capitalismo liberal – próximo daquele dos anos 40 do século XIX. Destruir nosso chefe de política interior – nosso consentimento em relação ao imaginário do bordel ocidental – não tem como núcleo ativo a crítica do capitalismo. Aqueles que se contentam com uma crítica da economia propõem invariavelmente um capitalismo regulado e adequado, não pornográfico, ecológico e sempre mais democrata. Nada virá dessas quimeras.



A nudez poética do presente



A única crítica perigosa e radical é a crítica política e ativa da democracia. Porque em nossos países o emblema do tempo presente, seu fetiche, é a democracia. Enquanto nós não soubermos colocar em movimento, em grande escala, uma crítica criativa da democracia, estaremos estagnados no bordel financeiro das imagens. Nós seremos os servidores do casal formado na peça de Genet pela dona do bordel e o chefe de polícia: um casal das imagens consumíveis e do poder nu. De quais sortes de imagens desimaginantes necessitamos, nós que tentamos manter aberta a porta pela qual evadimos da caverna de Platão, do reino democrático das imagens sem pensamento? Como encontrar a força de evadir da fantasia contemporânea e de se tornar os comunistas de um novo mundo? Como diz em “le Balcon” um dos revoltados: “Como aproximar a Liberdade, o Povo, a Virtude, e como os amar se a gente os idealiza e os torna intocáveis?! É preciso deixá-los em sua realidade viva. Que a gente prepare poemas e imagens que não deem prazer, mas que irritem.”

Preparemos, então, esses poemas e essas imagens que não satisfaçam nenhum de nossos desejos serviçais. Preparemos a nudez poética do presente.

Texto publicado no "Le nouvel observateur", no dia 24/01/2013. Disponível em: http://tempsreel.nouvelobs.com/culture/20130124.OBS6607/pornographie-de-la-democratie.html (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)  

Imagem: Cena de "Le Balcon", de Jean Genet (em 1974)   

domingo, 19 de maio de 2013

Fim da história



Certa vez, numa alucinação reveladora, sonhei a morte. Era como se o fim, o impossível, fosse então tocável. Como um voyou désouvré tocava então aquele impossível com a vontade de quem quer desaparecer. Era um suicídio exemplar? Não saberia dizer, mas poderia garantir que quem estava a narrar meu sonho na escuridão da noite era Enrique Vila-Matas. Como o Pasavento que tenta desaparecer, como a esposa-viúva traída que recebe a carta de suicídio de uma das amantes de seu marido morto, como alguém que procura na viagem o meio de encontrar consigo mesmo (um si que se esfacela a todo instante), como um jovem escritor que recebe um manual do romance de Marguerite Duras, eu passava pelo meu sonho como um maquinista que tenta ver o que acontece no último vagão do seu comboio. Escuto agora rumores ensurdecedores: um vizinho com uma TV nas alturas, carros com seus motores explodindo gasolina, meus fantasmas interiores tentando me convencer a escrever estas malditas linhas. Sinto-me condenado e sem rumo, um voyou désouvré que toca a própria morte. Um vagabundo sem obra, um ser qualquer que nada quer. O sonho da morte continua a ser contado por Vila-Matas em meio a este barulho que me atormenta. Qualquer coisa, qualquer mesmo, parece ser menos angustiante que essa ronda dos fantasmas. Sobem à minha cabeça e lá dançam como bailarinas em collants dim. Eis que então pressinto o fim do sonho e vejo meu acordar - que poderia ser este, o de Murilo Mendes:

"Passo a mão pela cabeça
A tempo de ver sumir a última estrela:
A manhã veste a camisa.
Levanto-me vacilando do leito-navio,
Primeiros pássaros oboés.
O monumento do Tempo
Avança feroz para mim.
Sou meu próprio irmão, um homem
Que ainda não foi fuzilado.
Apalpo-me
     Sou eu mesmo
          Quase acordei."

Não resta mais nenhuma saída, pois nem mesmo acordar possibilita-me desaparecer. Suicídio exemplar? Talvez. Mas ainda persistem os fantasmas, ainda há manhãs vestidas de azul, ainda há o som dos pássaros, e dos carros, e dos fantasmas, e nada parece se mover. Fim da história. 

Imagem: Francisco de Goya y Lucientes. O Tempo e a velha. 1810-12. Musée des Beaux-Arts, Lille.    

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Pequeno delírio em parágrafo XII



Perdido em minha demência caminho por entre galáxias absortas. Sinto o cheiro das palavras que há pouco saíram das bocas maledicentes. Esfrego os olhos e tento ver claramente aquilo que nem ao menos se dá a ver. Volto ao caminho. Perdido, demente, deparo-me com aquelas palavras soltas, como estrelas sem constelação, planando sobre minha mesa de trabalho. Tento percorrer as sombras que essas palavras deixavam como rastros sobre a escrivaninha. E, desesperado, escrevo com elas; tento deixar a tinta da caneta sobre essas sombras, como que a marcar a fórmica cinza-hospital. Mas é impossível, elas deslizam sem que nenhuma marca, nenhum traço, possa ser por mim fixado. Volto às galáxias, tento desmentir a demência. Em vão, elas vão, as palavras, elas que absorvem as galáxias.  

Imagem. Hubble. The sombrero gallaxy.

terça-feira, 14 de maio de 2013

O medo


Envenenam as tripas com pó sabor baunilha, com desejo de suplemento, e arrancam as tetas com medo do câncer. Tomam seus cafezinhos com o doce de duas ou três gotas de sabe-se lá o que, e asseiam-se com pastas brancas contra o sol. Viram as mercadorias (que, como todas, são vazias) em busca das informações nutricionais, e enchem os pulmões com monóxido de carbono. Ah, gente submissa! A vida com medo da vida - pois a morte é seu par inseparável - e não se dão conta das cadeias que colocam para si. Ah, gente submissa! Não há defesa contra a vida, que ninguém nem mesmo sabe o que é. Cerram as portas de seus seres com medo de todo vilipêndio, e não se dão conta que se vilipendiam até o cerne. Servem, sim, servem como ferramentas à disposição de um deus sem rosto. E quão atual é o velho-jovem La Boétie:

"Até os bois gemem sob o peso do jugo; e na gaiola os pássaros se debatem - como eu disse outrora passando o tempo em nossas rimas francesas. Pois escrevendo a ti, ó Longa, temo misturar meus versos que nunca te leio para que, aparentando contentamento, não me faças sentir-me todo glorioso. Em suma, se todas as coisas que têm sentimento, assim que os têm, sentem o mal da sujeição e procuram a liberdade; se os bichos sempre feitos para o serviço do homem só conseguem acostumar-se a servir com o protesto de um desejo contrário - que mau encontro foi esse que pôde desnaturar tanto o homem, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo? (...)
É verdade que no início serve-se obrigado e vencido pela força; mas os que vêm depois servem sem pesar e fazem de bom grado o que seus antecessores haviam feito por imposição. Desse modo os homens nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como náo pensam ter outro bem nem outro direito que o que encontraram, consideram natural a condição de seu nascimento. E no entanto não há herdeiro tão pródigo e despreocupado que às vezes não corra os olhos nos registros de seu pai para ver se goza de todos os direitos de sua herança ou se não o usurparam ou a seu predecessor. Mas o costume, que por certo tem em todas as coisas um grande poder sobre nós, não possui em lugar nenhum virtude tão grande quanto a seguinte: ensinar-nos a servir - e como se diz de Mitridates que se habituou a tomar veneno - para que aprendamos a engolir e não achar amarga a peçonha da servidão."

Imagem: Pieter Bruegel. Cristo carregando a cruz (detalhe), 1564.  Kunsthistorisches Museum, Vienna.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Um adeus


Ao C.D., um adeus.

"Les yeux seuls sont encore capables de pousser un cri"
René Char


Borges certa vez escreveu que dizemos adeus porque temos, de algum modo, ciência de nossa imortalidade. Mas, afinal, toda saudação (salvus) é também a remissão a um salvo, a um salvado, a um indemne, a um são. O adeus que dizemos àqueles que se vão para nunca mais, entretanto, não é uma elevação de esperança. Não há reencontro, e nossa imortalidade não é senão a marca que carregamos, nas nossas falas (na nossa linguagem), daquele de quem nos despedimos. A morte, essa interrupção (que, sempre, é abrupta) da exuberância a que chamamos viver, só pôde a nós, seres que falam, ser conhecida pela linguagem (e, de certo modo, é a insígnia da "necessidade" que o deus judaico-cristão tinha de sua criação, o homem: nomear a criação - Gêneses, 2:19). O que é a linguagem senão nosso modo de lidar com a morte? Vivemos, pois, em constante luta com nossa finitude.
Algum longínquo ancestral nosso conseguiu, num momento que ignoramos, dominar a habilidade de lidar com o fogo e, queiramos ou não, passou a perceber a própria sombra refletida na parede de alguma caverna e, assim, começou a "refletir sobre sua existência". A partir disso, não restava mais a esses bichos que então aprenderam a ver a si mesmos como um outro (a ter consciência, e, de tal modo, certa dimensão da linguagem) nenhuma escapatória à morte. Nós - sim, esses bichos são o que chamamos nós (e uma comunidade assim, anacrônica, é inconfessável) - passamos a saber que nossa imagem que se reflete na parede dura pouco, e nada impedirá que, um dia, ela se apague para sempre.
Hoje, sabemos que quando entramos nesta vida falaremos de si mesmos e dos outros, partilharemos nossa existência com os outros próximos justamente nas representações que conseguimos fazer com a linguagem. Sabemos, portanto, que a linguagem que nos dá consciência da morte é a mesma que nos coloca no jogo da vida, da partilha das "experiências" e, em alguma medida, das possibilidades de construir um mundo. Assim passamos nossas vidas; assim nos entregamos, dia a dia, às perdas do vir a ser que o velho Anaximandro dizia, de certo modo, ser a nossa condenação.
Mas a quê estamos condenados? Nós, homens, estamos condenados não apenas à morte - como todos os outros seres viventes -, mas também à consciência dessa interrupção da exuberância chamada vida. Isso é inevitável; é um desses intransponíveis da vida (ou melhor, estamos sempre em luta com o anjo da morte que impiedosa e diariamente passa por nossas portas, estas que esquecemos de marcar com o sangue do cordeiro). E assim passamos a vida - a efêmera vida - em eterna despedida. Vivemos e dizemos adeus quase que incessantemente, quase que de forma natural. Mas, para nós, homens, não há uma simples naturalidade nesses gestos. O mundo, a toda vez que alguém morre, acaba. Aquilo que a presença daquele que agora é ausente carregava, já não há mais. O mundo acaba, definitivamente.
Ainda nos resta, entretanto, nossa ciência da morte (e da tal imortalidade lembrada por Borges), ainda nos resta a luta contra e, ao mesmo tempo, com o anjo da morte; ainda nos restam os sentidos construídos e por construir que aquele mundo que findou nos deixa como marca. Ou, para dizer com Jean-Luc Nancy, "digamos simplesmente que sem supor Deus nem salvação, jamais nos falta, mortos ou vivos, uma língua para eterna e imortalmente saudarmos um ao outro, uns aos outros. Tal saudação, sem nos salvar, ao menos nos toca e, ao nos tocar, suscita essa turbação estranha de atravessar a vida para nada - mas não exatamente em pura perda." 

Imagem: Jonas Bendiksen. Negociantes de sucata esperando por queda de satélite, Cazaquistão.

Pequeno delírio em parágrafo XI






A luz do dia que não nasce. Passos apressados de uma massa com seu desodorante que intoxica. Todos correndo para seus laboratórios de niilismo vulgar: a movimentação da roda vazia do capital, do valor autorreferencial e vazio do dinheiro. Vida? Pura repetição, como o hamster das gaiolas embonecadas. Vida? Vidas sopradas com o cheiro dos desodorantes (o que desodorizam?). Nenhuma brisa reconfortante, apenas o aviso do tempo e desta luz que insiste em não vir. Nenhum azul e, com isso, nenhum mito. Nada, tão somente o eco oco de passos rápidos desses seres que seguem atrás do nada e pelo nada são perseguidos; o nada da existência sob luzes que não vêm, mas ofuscam. Estou no mesmo ônibus onde alguma vez já estive, tentando dar às palavras as coisas do dia que a elas é impossível (e que fique ambíguo). Permaneço preso nessa cadeia de espectros e nada, apenas "o" nada parece dar-se a ver na sua plenitude absoluta. 

Imagem: Raymond Depardon. Nova Iorque, 1982.

domingo, 12 de maio de 2013

Pasolini, uma improvisação (de uma santidade)


Philippe Lacoue-Labarthe

De lui je ne sais rien que l'acte et que la mort.
L'une à l'autre ne donne aucune autorité
ni celle-là pourtant d'avance inscrite ni
l'autre le premier (ou peut-être le second)
où ne se lit nulle épitaphe nul indice
qu'il savait proche l'orage d'une sanction.
Aussi bien de toujours ne l'avait-il pas dit?

Hipótese I

"Talvez a santidade, desde a chegada do moderno, tenha encontrado refúgio (asilo) na arte: no ato da arte."

Santidade: é preciso arrancar seu significado do cristianismo pois aí ainda seria latente. Isto é, da religião - ela, provavelmente, indelével.
Moderna é a devastação, a desolação: aquele que aí se encontra e se mantém, solitário, portanto, mas não enlutado, é ateu, "privado de deus" (Sófocles, Édipo-rei, v. 661). Sua melancolia é heroica, é um furor, a cólera ("Ménin aeidé, Théa").
O ato, que é mais velho do que a obra, é o enigma de sua cessação: graça sem misericórdia. "Eu disse exatamente ato. Em nenhum caso é questão de criação. You know?"
A solidão - a desolação - é, com efeito, o deserto: ego vox clamantis in deserto, "o deserto cresce". Na tragédia antiga, na qual o deus é "presente na figura da morte", isso pode ser assim enunciado:

É uma grande procura da alma, no seu trabalho secreto, que no momento da mais alta consciência, esquiva-se da consciência (...). A consciência, em seu apogeu, compara-se então sempre a objetos que não têm consciência mas que acolhem, em seu destino, a forma da consciência. Tal objeto, eis o que é um país que se torna deserto, que na exuberância original de sua fecundidade amplifica excessivamente os efeitos da luz solar e, a partir de então, torna-se árido.
Hölderlin, Anotações sobre Antígona, 2 
*
Ele segue o antigo no seu traço: rastreia os vestígios. Vaga "sob o impensável" (Hölderlin, mas, desta vez, a respeito de Édipo).
*
Desamparado, abandonado - ele é simplesmente deixado. Se erra, em consequência, é governado exatamente por aquilo que lhe falta: aquilo lá mesmo.
"O que tu queres dizer, exatamente?"
*
A religião é camponesa: de modo permanente. Mas desligada, agora que a dissociação aconteceu, que eles foram todos deportados e que há a "desaparição dos vagalumes": Mors stupebit et natura...
*
A mãe e a criança na pradaria imemorável (vaffanculo) e o antigo barulho do vento: a apresentação do sopro, o mais acre. A mãe, uma lentidão; a criança, o gesto invertido do desejo, de uma precisão absoluta, mais potente do que a inocência que o turba.
Madame se mantém demasiado em pé na pradaria
Próxima de onde nevam os fios do trabalho...
[Madame se tient trop debout dans la prairie
Prochaine où neigent les fils du travail...] [1]
Rimbaud, Memória
*
Uma música, sagrada e coral, comum paixão distante, aí, irrespirável aura do bairro seco. Os rostos são primitivos, os sorrisos são aqueles da violência má e da obscenidade - da bondade pura.
A imundice. Os olhares são esquivos, e também sorrateiros, ousados. Coragem vã, mas coragem, furtiva, espasmódica: uma liberação.
*
A religião é familiar: a desamparada privação (de todos: pai e mãe, irmão e irmã, ou filho e filha) e a elevação improvável da camponesa, da servente (no grande coração?)
Branco é o instante.
Hölderlin, Pão e vinho
*
Atrás daqueles que podemos dizer em estado de semelhança com os santos, os desterrados de Assis ou de Siena, sujeitados mas em diálogo com as bestas, com os pássaros, sobretudo, há os gregos e sua selvageria oriental nativa: eles são brutais e ferozes, não verdadeiramente supersticiosos, mas inquietos, sem cessar, dirigindo seus ouvidos (O órgão do medo: noite e música) à escuta de um outro barulho. Tremem ao murmúrio daquilo que é, indiscernível, e eles o confessam (Hegel).
Outras vezes, no terror, eles estão mudos.
O céu dos santos é, sob seus passos, a própria terra. Eles, os gregos, caem e se levantam, não param de liberar a distância que jamais separa o mais alto do mais baixo.
*
Campesinato despovoado
Onde eles pressagiam as sentenças camponesas com sentido?
Hölderlin, Pão e vinho
*
Não há - eles não têm - mais idade.

Hipótese 2

"A santidade é uma disciplina da coisa. Ela engaja a experiência do abjeto." 

O santo prova o inumano no homem: o fato do homem, que o ultrapassa no interior, seu mais íntimo fora.
Interior intimo meo.
É sua ferocidade.
*
Ele diz:
É muito evidente que sempre fui de raça inferior. Eu não pude compreender a revolta. Minha raça jamais se levantou senão para saquear: assim como os lobos em relação à besta que eles não mataram.
Antes, ele reivindicava "a idolatria e o amor do sacrílego; - oh! todos os vícios, cólera, luxúria, - magnífica a luxúria; - sobretudo a mentira e a preguiça". (Rimbaud, Une saison en enfer)
Não é falso, ele responde, mas tal é a revolta: manter este passo ganho, toda revolta é lógica etc.. Não a menor efusão. Já dito.
*
A religião: sempre arcaica: a coisa nos consome. Não cercá-la de precauções nem cerceá-la. Sem brilho. Os mais consequentes dispensam os objetos.
*
Só há materialidade por fazer: sons, pigmentos; línguas, a luz. Ou corpos cuja alma é sua indecência.
Um nada o atrai.
*
Nenhum assassinato: é preciso evadir-se da figuração.
*
A santidade, por que ela exige e responde, é rigorosa, exata como um cálculo. Ela faz surgir um teorema, isto é, uma dor. Tal é o ato.
*
Isso pode se repetir assim:
É uma grande busca da alma, em seu trabalho secreto, que no momento da mais alta consciência se esquiva da consciência, e que, antes que o deus presente dela não tome posse efetivamente, afronta-o de uma maneira arriscada e com frequência até mesmo blasfematória, guardando assim viva a santa possibilidade do espírito.
Hölderlin, Anotações sobre Antígona, 2
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Ele prova o baixo, e isso é requerido pela contaminação. O chiqueiro não é o mundo, e a realidade o opaco desenvolvimento das coisas, por pouco, lampejo: o mal natural.
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(Assim que ele morre, falsamente crucificado, é pela verdade. Welles, se me lembro bem, não viu nada.)
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É o animal que palpita nele e se esforça, o velho deus feroz, ouriçado. Eis por que sua própria história é natural, azul como um mito.
... eu desci à terra com um dever por procurar e a realidade áspera por abraçar! Camponês! - É dito de uma vez por todas.
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Daí sua raiva, sua alegria, seu "É preciso" perfeitamente intratável. Cazzo. Ele não pede nem suplica, ele canta o suplício. Voz atonal soberba.


Três notas (por Armando Battiston)
Nenhuma efusão: Monk e Dolphy - não Coltrane; Morandi, Bram van Velde - não Kandinsky. Nada de "espiritual na arte".
São três, segundo as três religiões da Europa ocidental (hespérico): Kafka, Beckett e ele, Pasolini.
Praticamente, ele era justo.

[1] Há uma tradução ao português de Ivo Barroso: "A senhora mantém-se inteiriçada na planície / próxima onde nevam os fios de trabalho..."

Philippe Lacoue-Labrthe. Pasolini, une improvisation (d'une sainteté). Paris: La Pharmacie de Platon; William Blake and Co., 1995. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
   
 

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Pequeno delírio em parágrafo X


Às vezes sabemos que a carta que acaba de nos ser entregue já tinha sido aberta muito antes, num tempo em que nem mesmo sabíamos ler. É como se nenhuma novidade possa surgir; é como se tudo já tivesse sido escrito e, a despeito disso, ainda insistíssimos em querer escrever e ler, ainda tentássemos ter a ousadia de fracassar em cada movimento de olhos diante dessas manchas sobre a alva celulose. Destilamos as palavras como se as pudéssemos tocar, como se fossem as únicas coisas certas desta parca e efêmera existência. Não nos livramos disso. Giorgio Caproni pensava em escrever com uma única palavra, ou, quiçá, para além da palavra, para além da simulação dessa suposta coisa que chamamos realidade. A coisa chamada palavra e a coisa chamada realidade: e não saímos disso, dessa luta entre os universos paralelos da linguagem e da suposta realidade. Esses alforjes que embaralham as pistas da nossa existência, as palavras, jogam-nos contra nós mesmos, e não saímos disso. Recebemos cartas e as escrevemos, mas nenhuma delas jamais poderá ser real e, quicá, lida...

Imagem: Micha Bar-Am. O retorno de Entebbe. 1976.