quarta-feira, 26 de junho de 2013

A Molly Bloom



Enfrentando, em deriva, o vento de várias esquinas
não heroicas, esquinas de um bloom qualquer
saindo de bares quaisquer, com pensamentos quaisquer
forjei couraças, ouvi sereias, matei Cìclopes prestes a me devorar
meu mar foi a água que torrencialmente caía da rua Bartira
sozinho, irremediavelmente só, perdidamente exilado

Por que, Penélope, vem perturbar minha solidão
protegida contra intempéries e retornos?

Você me faz sonhar, em átimos, com a cama aquecida, com Ítacas-propriedades
com proteções

Mas minha não-esperança era uma educação sentimental
O mastro em meio ao vazio de desolação
Nec spe nec metu
Sem medo nem esperança
Não temo porque nada espero

Temer perdê-la é já tê-la perdido

Não há Ítacas,
Mesmo que meu coração sofra com o luto daquilo que não existiu
Não há Penélopes,
Apenas molly's que também sabem trair e fugir
Não há portos
Apenas devires, desespero e felicidades viajantes  


Imagem: James e Nora Joyce 


     

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Sobre levantes


Nos comentários políticos recentes, há uma tentativa (cretina, por que não?) de dicotomização e de tipificação ideal do "manifestante" - algo que me incomoda muito. Uma coisa que parece fora do horizonte desses "comentários" - talvez por estar demasiado escancarado - é que a insígnia do Estado é o "monopólio do uso da violência", a racionalização do uso da violência. Ora, o quase querigmático "sem violência" me parece uma espécie de fantasia, de quase redentorista anseio (e a linguagem é teológica mesmo!!!) por uma salvação "an-histórica", de um "como se" fosse político.

Num levante, ser atento, forte e não vacilar, pode ser, por vezes, resistir com violência. E ainda que haja uma tentativa de nivelamento dos gestos que estão em jogo, existe uma diferença imensa nas violências: por um lado, uma violência na manutenção de uma "ordem", isto é, o uso "legítimo da violência"; por outro, a irrupção de um possível outro tipo de "violência" - valha-me Walter Benjamin! -, de um "acontecimento" sem rumos ou rédeas...

Acompanhando a "estetização" que muitas vezes acontece nessa "ida à rua" - e ontem, aqui em Florianópolis, senti um pouco disso: a "manifestação limpinha", um coaxar de nacionalismo fascistoide etc. - às vezes me sinto perdido em meio ao que tem acontecido nos últimos dias. Mas isso, esse incômodo, é muito bom! É, talvez, o sinal de que, ao menos por ora, não há prognósticos! Não há previsibilidade! E isso é Política! Isso tem um mínimo de "ação" em jogo!

Lembro do "thymós", a ira - uma das características da psyché -, dos gregos, tão esquecido nesses "comentários políticos" do momento: com esse discurso monocórdico do "ordeirismo", parece-me que qualquer "violência" (como resistência!) é colocada na compreensão que foi dada ao "thymós" pela tradição "teológica" (desde, ao menos, Gregório I): "superbia", o orgulho, algo que deve ser afastado de um "homem bom e ordeiro" pois, se a "tivéssemos", caminharíamos para a autodestruição.

Parece que, para além da perspectiva "ruinosa", é preciso um furor timótico imprevisível! Insurreição é abertura, é construção de novos sentidos - a "mínima máxima" do um pouco de possível, senão sufoco! Diria Alain Badiou que "a única crítica perigosa e radical é a crítica política e em ação da democracia. Porque nos nossos países o emblema do tempo presente, seu fetiche, é a democracia. Enquanto nós não soubermos colocar em movimento, em grande escala, uma crítica criativa da democracia, estaremos estagnados no bordel financeiro das imagens."

Ora, o fetiche da ordem (e fetiche é algo típico da mercadoria, do capital, do que coloca a política num puro jogo "econômico"), é uma diagnose que não pode ser descartada. Não há que se esperar por nada! A contingência da ocupação do espaço público não é a expectativa de novas lideranças, de satisfação de anseios, de retratação pública por parte de políticos etc.. Não se trata simplesmente de um avance contra generalidades, abstrações (corrupção, governos etc.), mas de algo direcionado.

Para Florianópolis, p.ex., algumas dessas causas materiais poderiam ser elencadas: contra uma imprensa local que, estreitamente ligada ao poder público, defende interesses espúrios de grupos empresariais (o Estado como bancada de negócios...); contra a concessão de licenças para construção e ocupação de terrenos públicos (e, como exemplo, a Ponta do Coral - e aguardemos as cenas dos próximos capítulos...); contra um transporte público cretino que, numa ilha, sequer possibilita qualquer tipo de transporte marítimo. E, sobre os transportes: como estão os contratos de concessões? Quais as margens de lucro das empresas?

No plano federal, muitas outras causas podem ser apontadas: os contratos bilionários com as empresas nas construções dos "Estádios da FIFA." etc.; como o Estado, por meio dos governos, saneia instituições financeiras e grupos financiadores de campanhas (lembremos: Marka, FonteCindam etc.). Enfim, há coisas muito materiais em jogo!!!

De todo modo, é bom que se entenda que não postulo a uniformização das demandas. Só lembro que há materialidades nas lutas! Não uma simples fanfarronice que, tão logo alguém assuma um discurso político convincente, seja restaurada num "status quo" que limpe tudo, como uma onda faz com a marca de nossos passos na areia. Por isso, acho importante não fixarmos o olhar no horizonte dos "grandes ideais" (que, como o horizonte, nunca alcançamos), mas ser atentos para o que está a olhos nus na nossa frente.

O muito intrigante Furio Jesi, com uma inteligência e agudeza incríveis, certa vez disse:
"Pode-se amar uma cidade, podem-se reconhecer as suas casas e as suas ruas nas próprias memórias mais caras ou secretas; mas apenas na hora da revolta a cidade é sentida verdadeiramente como a 'própria' cidade: própria, pois ao mesmo tempo do eu e dos 'outros'; própria, pois campo de uma batalha que se escolheu e que a coletividade escolheu; própria, pois espaço circunscrito em que o tempo histórico é suspenso e em que todo ato vale por si mesmo, nas suas consequências absolutamente imediatas. Apropriamo-nos de uma cidade fugindo ou avançando no alternar-se dos ataques, muito mais do que brincando como crianças por suas ruas, ou por elas passeando mais tarde com uma moça. Na hora da revolta, não se está mais só na cidade."

A suspensão do tempo histórico - aquilo que, de outro modo, os gregos chamavam "kairós", o "tempo oportuno" - é o que marca o "possível" enquanto tal. Não o possível no quadro dos arranjos, das escolhas, mas o novo, o inesperado, o imprevisto, o imponderável. A irrupção de algo! O dar-se conta da própria impotência - consciência essa que é, talvez, uma das únicas coisas capazes de constituir o nosso agir, isto é, nosso resistir. E, com isso, lembro Gilles Deleuze:

"Diz-se que as revoluções têm um mau futuro. Mas não param de misturar duas coisas, o futuro das revoluções na história e o devir revolucionário das pessoas (...). A única oportunidade dos homens está no devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável."

domingo, 16 de junho de 2013

Polícia Soberana



Giorgio Agamben

Uma das lições inequívocas da guerra do Golfo é a entrada definitiva da soberania na imagem da polícia. A desenvoltura com a qual o exercício de um jus belli particularmente destruidor travestiu-se aqui, com modesta aparência, como uma “operação de polícia” não deve ser considerada (como fizeram alguns críticos justamente indignados) como uma cínica ficção. Talvez a característica mais espetacular dessa guerra é que as razões avançadas para justificá-la não podem ser descartadas como super-estruturas ideológicas destinadas a recobrir uma desenho escondido: ao contrário, a ideologia, nesse meio tempo, penetrou de modo tão profundo na realidade que as razões declaradas (em particular aquelas que concernem à ideia de uma nova ordem mundial) devem ser lidas de modo rigoroso. Todavia, isso não quer dizer, como juristas improvisados e apologistas com má fé quiseram fazer crer, que a guerra do Golfo tenha significado uma salutar limitação das soberanias estatais, dobradas para servir de polícia em favor de um organismo supranacional.
O fato é que a polícia, de maneira contrária à opinião comum, que vê nela uma mera função administrativa de execução do direito, é talvez o lugar em que se exponha com mais clareza a proximidade e quase a troca constitutiva entre violência e direito que caracteriza a imagem do soberano. Segundo o antigo costume romano, ninguém, sob nenhuma razão, podia se interpor entre o cônsul dotado de imperium e o lictor mais próximo que carregava o machado sacrificador (com o qual se executava as sentenças de pena capital). Essa contiguidade não é casual. Se o soberano é, com efeito, aquele que, proclamando o estado de exceção e suspendendo a validade da lei, marca o ponto de indistinção entre violência e direito, a polícia, por assim dizer, move-se sempre em similar “estado de exceção”. As razões de “ordem pública” e de “segurança”, sobre as quais ela deve decidir em cada caso, configuram uma zona de indistinção entre violência e direito perfeitamente simétrica àquela da soberania. Com razão observava Benjamin que:

a afirmação de que os escopos do poder de polícia sejam sempre idênticos, ou mesmo apenas conexos com aqueles do direito remanescente, é de todo falsa. Antes, o “direito” de polícia marca justamente o ponto em que o Estado, quer por impotência, quer pelas conexões imanentes de todo ordenamento jurídico, não está mais à altura de garantir, por meio do ordenamento jurídico, os fins empíricos que pretende atingir a todo custo.

Daqui a exibição das armas que caracteriza em todos os tempos a polícia. Decisiva não é tanto a ameaça contra quem transgride o direito (a exibição acontece, de fato, nos mais pacíficos lugares públicos e, em particular, durante as cerimônias oficiais), mas a exposição dessa violência soberana testemunhada na proximidade física entre o cônsul e o lictor.
Essa embaraçosa contiguidade entre soberania e função de policia se exprime no caráter de inatingível sacralidade que, nos antigos ordenamentos, associa a figura do soberano àquela do carrasco. E tal proximidade talvez nunca fora mostrada com tanta evidência como no acaso fortuito (narrado por um cronista) que, em 14 de julho de 1418, fez com que se encontrassem, numa rua de Paris, o Duque de Borgonha, recém chegado à cidade como conquistador na chefia de suas tropas, e o carrasco Coqueluche, que naqueles dias para ele trabalhara de modo infatigável: o carrasco, coberto de sangue, aproxima-se do soberano e o pega pela mão gritando “Meu caro irmão!...” (Mon beau frère!)
A entrada da soberania na figura da polícia, portanto, não tem nada de tranquilizador. É prova disso o fato, que não cessa de surpreender os historiadores do Terceiro Reich, de que o extermínio dos judeus foi desde o início concebido exclusivamente como uma operação de polícia. É notório que jamais se pôde encontrar um único documento no qual o genocídio fosse atestado como decisão de órgão soberano: o único documento de que dispomos a esse respeito é o processo-verbal da conferência que, em 20 de janeiro de 1942, reuniu no Grosser Wannsee[1] um grupo de funcionários de polícia de média e baixa patentes, dentre os quais se destaca para nós apenas o nome de Adolf Eichmann, chefe da divisão B-4 da Quarta seção da Gestapo. Apenas por que foi concebido e realizado como uma operação de polícia é que o extermínio dos judeus pôde ser tão metódico e mortífero; mas, por outro lado, é justamente enquanto “operação de polícia” que ele parece hoje, aos olhos da humanidade civil, tanto mais bárbaro e ignominioso.
Mas a investidura do soberano como agente de polícia tem um outro corolário: torna necessária a criminalização do adversário. Carl Schmitt mostrou como, no direito público europeu, o princípio segundo o qual par in parem non habet jurisdictionem excluía o fato de que os soberanos de um Estado inimigo pudessem ser julgados como criminosos. A declaração do estado de guerra não implicava a suspensão desse princípio nem das convenções que garantiam que a guerra contra um inimigo – no qual se reconhecia uma dignidade similar – se desenrolasse respeitando regras precisas (uma delas era a clar distinção entre a população civil e o exército). De modo contrário, nós podemos ver com nossos olhos como, seguindo um processo iniciado ao fim da Primeira Guerra mundial, o inimigo é primeiro excluído da humanidade civil e marcado como criminoso; apenas na sequência torna-se lícito aniquilá-lo com uma “operação de polícia” que não é submetida a nenhuma regra jurídica e pode, portanto, confundir, com um retorno às condições mais arcaicas da beligerância, população civil e soldados, o povo e seu soberano-criminoso. Esse deslizamento progressivo da soberania para as zonas mais obscuras do direito de polícia tem, no entanto, ao menos um aspecto positivo que convém aqui assinalar. Aquilo de que os chefes de Estado, que se lançaram com tanto zelo na criminalização do inimigo, não se dão conta, é que essa criminalização pode voltar-se a qualquer momento contra eles. Hoje não há sobre a terra um chefe de Estado que, nesse sentido, não seja virtualmente um criminoso. Quem quer que hoje vista o triste redingote[2] [manto] da soberania sabe poder ser um dia tratado como criminoso por seus colegas. E por certo não seremos nós a lamentar por eles. Pois o soberano, que de bom grado consentiu apresentar-se vestido de tira e de carrasco, mostra enfim hoje sua originária proximidade com o criminoso.

                                                                                                (1991)




[1] Região de lagos a sudoeste de Berlin na qual se encontrava o edifício – Wannsee Villa –, onde os oficiais nazistas se encontraram para discutir o plano da Solução Final. (N.T.)
[2]  Espécie de vestido longo feito sob medida que passa a ser usado no século XVIII pelas mulheres dos círculos da corte inglesa, e que, entre 1785 e 1795, foi incorporado pela moda francesa e denominado redingote. (N.T.)


Giorgio Agamben. Polizia Sovrana. In. Mezzi senza fine. Torino: Bollati Boringhieri, 1996. pp. 83-86. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko) 


Imagem: Rogier van der Weyden. Philippe le bon. Depois de 1450. Musée de Beaux-Arts, Dijon.  

sábado, 15 de junho de 2013

Por uma polícia democrática



Levantemos uma hipótese absurda: o Movimento Estudantil toma o poder na Itália. De modo pragmático, claro, sem ter premeditado, por puro ímpeto ou ardor ideológico, puro idealismo juvenil etc. etc.. É preciso "agir antes de pensar", portanto... agindo pode acontecer tudo. Bem. O Movimento Estudantil está no poder: estar no poder significa dispor dos instrumentos do poder. O mais vistoso, espetacular e persuasivo instrumento do poder é a polícia. Assim, o Movimento Estudantil se encontraria com a polícia à disposição.
O que faria dela? Iria aboli-la? Nesse caso, é claro, perderia imediatamente o poder. Mas continuemos com a nossa absurda hipótese: o Movimento Estudantil, visto que tem o poder, quer conservá-lo, e isso com a finalidade de mudar, finalmente!, a estrutura da sociedade. Dado que o poder é sempre de direita, o Movimento Estudantil, portanto, para atingir o fim superior consistente na "revolução estrutural", aceitaria um regime provisório - por assembleia, não-parlamentar, em última instância - de direita e, desse modo, entre outras coisas, deveria decidir ter à sua disposição a polícia. 
Nessa absurda hipótese, como o leitor pode ver, tudo muda e se apresenta sob forma miraculosa, inebriante, diria. Só uma coisa não muda de fato e permanece o que é: a polícia.
Por que levantei essa hipótese maluca?
Porque a polícia é o único ponto cuja necessidade de "reforma" nenhum extremista poderia objetivamente criticar: a propósito da polícia não se pode ser mais do que reformista.
O que fez o Poder em Avola (o Poder atual: o da democracia burguesa, parlamentar centralista)? Causou quatro vítimas.
Por meio de um velho espírito de caridade (que, entretanto, vem a coincidir com a atualíssima exigência de democracia real), eu não saberia dizer se são mais infelizes os dois mortos ou os dois policiais que dispararam.
Pensemos por um momento: como o Poder criou os dois mortos? Discriminando os cidadãos privilegiados e os cidadãos não privilegiados. Criando "carne humana" de preço alto e "carne humana" de preço baixo.
Ser: 1) siciliano (ou seja, pertencente a uma área pré-industrial e pré-histórica), 2) boia-fria [bracciante] (isto é, pertencente à mais pobre das categorias pobres dos trabalhadores), significa ser um homem do corpo sem valor e que pode ser morto sem demasiados escrúpulos (a polícia, para dar um exemplo, praticou todo tipo de atos vis contra os estudantes, carne humana com valor médio bastante alto, mas jamais disparou contra eles).
E como o mesmo Poder cometeu os dois assassinos? É simples: tomando dois daqueles homens "de baixo custo" (meridionais, potenciais boias-frias) e transformando-os: de "pobres" a "assassinos" (ao Poder, para fazer isso, basta dar um generoso salário de quarenta mil liras mensais).
Como faz o Poder para transformar os pobres em instrumentos inconscientes? (É uma operação fácil: de fato, a inocência dos pobres é indefesa porque é natural; e é por meio dessa "inocência" - inconsciência política - que o Poder, em centros de treinamento, depois de ter persuadido alguns dentre os pobres com o sonho das quarenta mil liras, cria reflexos condicionados: que são algo muito diverso de uma educação e assemelham-se muito mais a um adestramento de autômatos do que de homens. Aos pobres "inocentes" se contrapõem assim os mesmos pobres facilmente "corrompidos". É uma notória técnica fascista para cumprir sua influência sobre as massas lumpemproletárias.)
Me dirão: mas tu partes do pressuposto de que os dois policiais que dispararam, nas origens sociais e na "cultura", são de todo semelhantes aos dois mortos. Sim - respondo -, parto do pressuposto que representa melhor a condição média dos policiais, a massa dos policiais. É verdade que, fisicamente, os que disparam e matam podem ter sido dois velhos policiais, provenientes dessas classes médias desgraçadas e terrivelmente incultas; mas essa seria a exceção, que seria a intervenção "direta" do Poder, e que não representaria tanto a tipicidade da intervenção "indireta", consistente no opor pobres a pobres, inocentes a inocentes. Ambos "marcados", diria, racialmente.
O massacre de Avolo tornou-se então o pretexto para pedir uma "reforma" da polícia, consistente, para o momento, numa primeira medida radical: desarmá-la.
É apenas uma reforma e, como tal, a sua exigência é sentida também pela parte mais lúcida do Poder atual. Eu penso que também a parte mais avançada e extremista deveria apoiar a imediata realização dessa reforma.
Desarmar a polícia significa, com efeito, criar as condições objetivas para uma imediata mudança da psicologia do policial. Um policial desarmado é um outro policial. Ruiria nele, de pronto, o fundamento da "falsa ideia de si" que o Poder lhe deu ao adestrá-lo como um autômata.
De tal "mutação" psicológica derivaria, sempre "objetivamente", e talvez na própria consciência do policial, a necessidade de outras reformas: isto é, nasceria no policial "desarmado" uma nova consciência dos próprios direitos civis. E ele mesmo seria o primeiro a pretender um novo tipo de "treinamento profissional", que não se aproveite de modo tão brutal da sua inocência e pobreza. Por meio de tal consciência, ele se tornaria um policial social-democrata em vez de fascista. O que não é pouco. A menos que não se queira instrumentalizar as mortes provocadas pela polícia, fato que, entretanto, colocaria os opositores do Poder no mesmo nível de desumanidade do Poder.  

Pier Paolo Pasolini. Da "Il caos" sul "Tempo" 1968. In.: Saggi sulla Politica e sulla Società. Milano: Arnoldo Mondadori, 2012. pp. 1160-1163. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko) - Trata-se de uma parte da seção Il Caos, que Pasolini mantinha no semanário Tempo, de 21 de dezembro de 1968.

Imagem: Salò ou os cento e vinte dias de Sodoma.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Ateologia política



Entrevista com Roberto Esposito

Professor Esposito, a ideia da fé como instrumentum regni é funcional apenas para uma ideologia conservadora ou esconde algo mais profundo?

A ideia de que sem valores religiosos dominantes não se mantém junta uma sociedade não é algo dos “ateus devotos”, como Giuliano Ferrara. Também pensadores refinados como Massimo Cacciari ou Mario Tronti creem que a referência às raízes teológicas seja decisiva. Eis a demonstração, se isso fosse necessário, do quão persistente e penetrante é esse modo de pensar.



Outros, entretanto, sustentam que vivemos na era da secularização, do relativismo, da moral do “faça por si”.

De fato, mas isso não significa que estejamos “liberados”. Categorias como “secularização”, “desencanto” e “ateísmo” são conceitos teológicos negativos ou invertidos. Existem apenas no interior do horizonte que, ao contrário, gostar-se-ia de ultrapassar.



Podemos dar um exemplo de alguns conceitos “teológicos” operantes na atualidade política dos nossos dias?

Posso dar muitos: pensemos no recente debate sobre o presidencialismo. Foi sustentada a ideia de que somos uma sociedade que não pode desprezar a figura do pai. Ora, a ação do presidente Napolitano foi um bem para todos, encontrou uma solução, desemperrou uma situação que tinha chegado à paralisia. No plano simbólico, entretanto, há algo que não está bem. Pois a democracia não deve ser um regime de “filhos”, mas, antes, de “irmãos”. Não é verdade que temos necessidade de uma instância superior, transcendente.



Mas em que consiste o mecanismo opressivo que o senhor atribui à teologia política?

É uma tradição de pensamento que corta em duas nossa vida. Que tende a realizar a unidade por meio da marginalização de uma das partes e que exclui enquanto pretende incluir. A igualdade, historicamente, sempre foi “cortada”: entre brancos e negros, homens e mulheres. E assim também o Ocidente que subjuga o resto do mundo, a globalização que empobrece grande parte da humanidade. 



Para o senhor, é chegado o momento de sair desse “dispositivo” que nos capturou e impede uma autêntica liberdade de pensamento. Mas como isso é possível?

Por certo que não é uma tarefa fácil. Ao contrário, é dificilíssima. Creio que o manto que nos mantém presos, e que temos que tentar romper, esteja fundado sobre o conceito de pessoa. De maneira mais precisa, sobre a ideia de que o pensamento pertença ao ser individual [singolo], ao indivíduo. Isso, é claro, depois de Descartes. Por outro lado, é preciso voltar a uma tradição que de Aristóteles chega a Bergson e Deleuze, passando por Averróis, Dante e Spinoza. É uma cadeia que remonta à antiguidade, na qual o pensamento é visto como um lugar que todos podemos atravessar, um patrimônio que todos podemos atingir. O primeiro e mais importante, seria possível dizer, dos bens comuns.



Chegamos à “teologia econômica” em que a parte central de seu pensamento se desenvolve em torno da ideia de dívida (débito).

Por ora, pensemos na ironia de definir as dívidas (débitos) dos estados com a expressão “dívida (débito) soberana” (e soberania é um conceito eminentemente teológico). Hoje, é claro, a soberania não pertence mais aos estados individuais, mas às finanças.



O que há de teológico no conceito de débito?

Walter Benjamin definia o capitalismo como “o único culto que não purifica, mas culpabiliza”. A origem teológica desse conceito é claríssima. Se pensamos que na língua alemã uma mesma palavra significa tanto dívida (débito) quanto culpa, entendemos muitas coisas. Compreendemos por que os alemães pensar viver como virtuosos e consideram, por exemplo, os gregos não apenas endividados, mas também culpados. Mas hoje, por meio da dívida (débito) pública, estamos todos endividados.



Somos todos prisioneiros da dívida (débito)?

Nietzsche dizia que a dívida (débito) nos tornou escravos uns dos outros. E não apenas em sentido simbólico. O círculo biopolítico que liga o corpo do devedor ao credor tem origens distantes. A instituição romana do nexum consignava o destino da pessoa endividada ao seu credor, que dele podia dispor livremente, para a vida ou para a morte. O mercador de Veneza, de Shakespeare, pretende ser pago com uma libra de carne de quem não o pode fazer com dinheiro. Mas também hoje a dívida (débito) se paga com a vida. Pensemos nos imigrantes que devem pagar para sempre com o seu trabalho quem lhes emprestou o dinheiro para sair de seus países. Pensemos nos suicídios por dívidas.



Se chegamos a tal ponto, não é apenas por fruto da “máquina” teológica, existem também responsabilidades mais recentes.

Sem dúvida todo esse processo foi facilitado pela governança liberal, principalmente a partir dos anos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que não nos liberou. Ao contrário, transformou o welfare em um peso insustentável, teorizando o Lightfare, o estado leve. É a ideologia do “cada um por si” que levou à crise e deixou 99% da população mais pobre.



O senhor sustenta que para nos liberar como indivíduos é preciso agir coletivamente.

Creio que sim. O mecanismo de desenvolvimento mudou, devemos voltar a pensar nos investimentos sociais úteis, não nos ganhos pessoais. Para isso, ajuda-nos o conceito de communitas, que significa ter em comum um munus, palavra que na origem significava ao mesmo tempo dívida (débito) e dom. Nas sociedades arcaicas a dívida (débito) era vivida como uma ligação social. Ser comunidade não significa procurar oprimir um ao outro, mas sentir-se vinculados por um dom de fraternidade.    

Entrevista de Roberto Esposito a Leopoldo Fabiani, publicada no jornal La Repubblica no dia 27 de maio de 2013. (Disponível em: http://www.iniziativalaica.it/?p=15821) Tradução: Vinícius N. Honesko

Imagem: William Blake. Cristo como redentor do homem. 1808. Museum of fine arts, Boston.
         

   

sábado, 8 de junho de 2013

Destinatárias impossíveis


Para minha destinatária impossível.
Querida, há anos que lhe escrevo e só agora, bêbado, me dou conta de que cometia um crasso erro. Não há uma impossível destinatária - você, como impossível -, mas impossíveis destinatárias. Só agora percebo o quanto de você estava solto por todos os vocês que insistimos (?!) em falar. A impossibilidade é absoluta (palavra doentia), e, com isso, todo destino torna-se plural, assim como você. Os mapas que tracei e que traço, talvez em derradeira tentativa, são como a estranha fruta que Nina Simone sopra em meus ouvidos: impossíveis e destituídos de limites. Mas o que é um mapa sem o non plus ultra, sem a determinação do não ir além, do parar antes do tocar, do ser lido antes da peregrinação? Querida, sinto que você não é senão uma das vozes em meio à multidão barulhenta que habita minhas horas de silêncio. A impossibilidade nos une no momento exato em que todo nó é cortado, em que toda imagem parece acompanhar a fumaça do meu último cigarro. São apenas vozes, querida, vozes cujos traços mnemônicos - essa maldição à qual os homens se confiaram, as letras - marcam este espaço em branco, estas lembranças de coisa nenhuma que são nossas cartas. Desenho agora um esboço do modo como vocês - é, já me é impossível dizê-la; só me resta dizer-lhes - se mostram no plus ultra que vislumbro apenas de relance. E é difícil não tentar apagar este mapa, não tentar borrá-lo para lançar-me na indeterminação, no espaço jamais cartografado dos nossos encontros. Talvez jamais nos vejamos, talvez apenas construamos uma engenhoca de palavras que nos lance à beira-mar, onde Murilo Mendes espera notícias de si mesmo. Mas, mesmo assim, insistiria em tocar suas bordas, seus cantos imprevisíveis, suas vozes que jamais ouvirei, seus sorrisos impossíveis e, por isso, tão sublimes. Mesmo com nossas impossibilidades (algo como o inconstante monólogo que produzo com suas vozes), talvez jamais deixe de cartografar, querida; talvez nunca pare de tentar escutar ao menos os ecos de sua voz, a única coisa que porventura se faz possível nesse emaranhado de mapas. Eco, ecco... o italiano, esse além-mar de nossos incomunicáveis, parece querer me trapacear: eis aqui e distância; imediatez e retorno; não há mais sentidos imediatos que possam significar essas minhas missivas, querida. E, assim, mapeando meus sonhos, me despeço com um adeus impossível de remeter a qualquer deus, mas que insiste nas suas (e que fique a ambiguidade) ausências e impossibilidades. 

Do seu remetente impossível.    

p.s.: não perco o costume de lhe enviar imagens aleatórias que, como essas cartas, são apenas águas de um rio para nenhum lugar... ademais, são as cadeiras vazias de uma conversa impossível...

terça-feira, 4 de junho de 2013

Segunda tentativa de escrever o que escreveria se escrevesse


Estávamos destinados a algum outro planeta distante, ao outro extremo da galáxia. Eu me pergunto como estarão se arranjando aqueles que estavam destinados a viver aqui, como estarão se arranjando aqueles que estavam destinados a viver aqui, como estarão as coisas para eles nesse outro planeta. Será que nosso terror vem desse pequeno equívoco de tão grande importância? "Pode ser que sejamos um acidente biológico, o vírus mais bem-sucedido e potente que se tenha criado", diz John Banville, que pensa que nós, seres humanos, tivemos que aceitar forçosamente que o que somos é autêntico. Mais que isso, inventamos a palavra normal. E até nos atrevemos a chamar de estranhos alguns de nossos semelhantes. Para encerrar, os normais às vezes chamaram a mim de estranho.
Fico agora pensando nesse pobre marciano que um dia ficará empacado aqui, isto é, aterrado. Terá resolvido tudo acerca da humanidade e, num primeiro momento, pensará que o mundo pertence aos automóveis, mas não tardará a ver que os parasitas a bordo dos carros são os que, na realidade, controlam as rédeas. Quando achar que resolveu o problema, descobrirá de repente que espirramos, bocejamos, lançamos uivos silenciosos no meio da noite. Por acaso isso é normal? O marciano conhecerá o terror em que vivemos quando observar que a metade da população mundial raspa o rosto a cada manhã com uma navalha e a outra metade não.
Já desde o momento exato do nascimento, conhecemos o medo e preferimos, dadas as circunstâncias, servir a exercer esse Poder que, como demonstra a famosa História, nunca é de ninguém. Entrar na vida normal é entrar na suspeita de que aqueles que realmente estavam destinados a viver aqui se extinguiram há anos, pois não é possível imaginar que tenham podido sobreviver num planeta feito para nos conter. Não somos daqui. E só a literatura parece se ocupar com seriedade de nosso espanto. Quando Poe escreveu aquele conto de um homem a quem enterram vivo, contou nossa verdadeira história. Daí o terror que ainda perdura naqueles que leram esse conto que dizia a verdade, um medo que se converte num terror duplo se chegamos a Kafka, o morto em vida. Os homens normais olharam Kafka sempre com estranheza, na realidade com a mesma estranheza com a qual ele os olhava, consciente de que não tinha um lugar neste mundo: "Duas tarefas do início da vida: reduzir cada vez mais teu âmbito e averiguar mais de uma vez se não te encontras escondido em algum lugar fora dele", escreveu Kafka num texto de juventude, um Kafka que sempre quis nos transmitir que aquilo que nos parece uma alucinação inimaginável é precisamente a realidade de cada um. Se pensarmos bem - nos diz Philip Roth -, veremos que em todos os seus romances Kafka traça a seguinte crônica: alguém é educado para aceitar que tudo aquilo que lhe parece absolutamente injusto e fora de lugar (além de ridículo e muito abaixo de sua dignidade) é de fato o que realmente está lhe acontecendo. Dito de outro modo, isso que está tão abaixo de nossa dignidade acaba por ser nosso destino.

Enrique Vila-Matas. Doutor Passavento. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Trad.: José Geraldo Couto. pp. 332-333.

Imagem: Elliott Erwitt. Pasadena, California, 1963. 

Guevarismo


“Característica fundamental de uma guerrilha é a mobilidade, o que lhe permite estar, em poucos minutos, longe do teatro específico da ação e em poucas horas longa da região onde ela se dá, se necessário; que lhe permite mudar permanentemente de frente e evitar todo tipo de cerco”. Abrir flancos, criar condições, a guerrilha move-se constantemente, é fracionada em pequenos grupos, adapta-se ao campo de combate e às circunstâncias, seus acampamentos são provisórios, nada de pesado que impeça o deslocamento rápido, imperceptível, sob a selva. Uma guerrilha não exige a mobilização de uma grande tropa, sempre um alvo fácil e previsível, é de suas fragilidades e inconstâncias que uma guerrilha extrai sua maior força. Movediça comunidade guerrilheira de camaradas. Teoria do foco e teoria da deriva. Ser guevarista é saber-se de antemão perdido, mas não se resignar a isso. É ser um quixote na arte do possível, mesmo que este possível tenha de ser instaurado nas condições mais adversas, contra os possíveis claustrofóbicos de Otto Von Bismarck. Não há condições objetivas independentes de sujeitos que agem no mundo, “não há um só instante que não carregue consigo a sua chance revolucionária”.  Ser guevarista é pensar e agir com coragem e atenção, uma contínua mobilidade aliada a uma intransigência, nada aceitável na maleabilidade preguiçosa do presente, em torno daquilo do que não se pode compactuar. Piglia: “É aquele que queima sua vida na chama da experiência e transforma a política e a guerra em centro dessa construção. E aquilo que ele apresenta como exemplo, o que transmite como exemplo, é sua própria vida. (...) Uma figura extrema do intelectual como representante puro da construção do sentido (ou, em todo caso, de certa maneira de construir o sentido).” O guevarismo como o mais autêntico bovarismo político: um apátrida Che revivendo e politizando “O coração nas trevas”, de Joseph Conrad, no Congo da metade anos 60. 


Imagem: Che Gevara no Congo, 1965. 

sábado, 1 de junho de 2013

De fantasmas e espelhos


A especulação - teológica, metafísica -, esse fazer-se dois per speculum, está arraigada na pretensão ingênua de um sentido absoluto, o "um sentido", como modo de nos com-preender. Vagamos como corpos cindidos, destituídos de qualquer integração e, desde quando tal cisão se deu - talvez, no fundo de uma caverna, segurando uma tocha e fugindo do frio, ao soprar pigmentos sobre a mão espalmada no granito daquele interior sombrio e, com isso, ver o distanciamento de si, uma imagem, uma specie de si -, insistimos na tentativa incansável de união, de comunhão, de comunidade. Sob as sombras desse passado presente, elevamos monumentos de sentido, tentamos fazer do per speculum a razão suficiente de um mundo do qual somos os senhores e únicos habitantes. Tentamos arrancar a máscara da impossibilidade de solidão com as ferramentas da comunhão, e não nos damos conta da necessidade de uma com-solidão. Sozinhos uns com os outros e, também, com nossa própria imagem de si: somos os perfeitos fantasmas da imaginação; somos a construção absoluta do espaço vazio entre nosso corpo e nossa especulação. Nenhum sentido único, nenhum ponto de passagem à consecução de um sentido do ser (aí, aqui, acolá, pouco importa). Somos o resíduo, o chorume, disso a que demos o nome de história. Não há realização per speculum, tampouco in concreto, pois não há o real de uma ação. Não há senão vazio, e espaço percorrido por imagens, sentidos frágeis que se soldam e somem como os passos dessa mesquinha humanidade nas areias à beira-mar. Não há salvus, não há são, não há sanidade. Restam fagulhas de lucidez no torpor do fadigado e claudicante aglomerado de bichos que articulam aquilo que não sabem bem o que é, mas que é o pressuposto do saber: as letras. Atravessados por luz, somos os eternos duplos de nós mesmos.  

Imagem: Francisco de Goya y Lucientes. Até a morte. 1799.