sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Pequeno delírio em parágrafo XVII



A que se presta alguém destinado a circular como um dicionário ambulante? Insuflado de palavras, sinto o peito bombardeado por nefastos significados que querem como que se colar às palavras. Rodopio dezenas de vezes na minha cadeira giratória, no espaço deste escritório em que, mais do que livros, é povoado pelos rastros perdidos da grande Obra dos falantes. Espero, em vão, que esses giros me atordoem e, talvez, façam com que a gravidade descole de mim as palavras. Desejo novamente a folha branca, a folha em branco! Folheio ao léu as correspondências entre Scholem e Benjamin. Quanto da vida cruzada de amigos está aqui, agora, nestes meus olhos que recebem, tal qual um cadáver inerme nas mãos do legista recebe pontadas do bisturi, palavras que não eram dirigidas a ninguém senão ao amigo Scholem ou ao amigo Benjamin? Nada. Apenas palavras soltas, com as quais brinco nos meus rodopios e que, no mesmo instante, espero poder senti-las se desprendendo de mim. Entretanto, ao deixá-las ir, outras tantas se colam em meu peito, e o jogo é interminável. Giro com mais força e velocidade: quero a tontura, uma ebriedade sem palavras. Mas o martírio desse Ahsverus é o erro, errar pelos caminhos das palavras, pelos caminhos nas palavras, pelas palavras que caminham, pelo ensurdecedor silêncio que as palavras carregam.  

Imagem: Paul Gauguin. Mulher caribenha com girassóis. 1889.

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