quarta-feira, 5 de março de 2014

Por um fio


Por um fio. Expressão insólita mas que dá conta do mundo. Por um fio. A realidade de uma cabeça perdida sobre um corpo é mais real do que os sonhos de um andarilho bêbado? Sem sentidos à vista, o mundo pendura-se diante dos olhos: é ele, o mundo, o mais puro sem sentido. A cabeça gira e, perdida na tênue linha que segura o mundo, não enxerga mais nada. Uma angústia matinal, a neblina que inunda a cidade, as cartelas de remédios que tentam tecer com o único fio uma malha de sentidos: memórias. Murilo Mendes uma vez disse que a memória é uma construção do futuro muito mais do que do passado. E por que, nesse devir fantástico e engenhoso, insisto, na hora da manhã cinzenta, em pintar um mundo colorido, azul, cheio de sentidos à cabeça vazia? Por um fio, mas, mesmo assim, sonhando construir futuros. Imagens cheias de curvas, Van Gogh que inunda de amarelo seu mundo gris, Gauguin tentando a redenção nos trópicos, um século morto e os espaços tranquilos das tardes pequeno-burguesas. Sem cabeça, as lembranças são espasmos, o mundo balança e apenas resta o fio, o mísero fio ao qual me fio.

Imagem: Van Gogh. O jardim do dr. Gachet, em Auvers. 1890. Musée D'Orsay, Paris.

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