terça-feira, 19 de maio de 2015

Fenomenologia da vida cotidiana




1) do fundo de um naufrágio

Mein Sohn, es ist ein Nebelstreif.
GOETHE, Erlkönig

Há instantes débeis nos quais a patente irrealidade do nosso mundo – que geralmente esconde, sob uma capa compacta de aparente concretude, os sedimentos do hábito – jorra, qual um espectro que escapa de uma tumba colapsada: a Ausência.

Esta experiência metafísica (pois se trata de uma; tanto pior se isso sobressalta os risonhos e os cachorros), que parece, é verdade, uma prima da Náusea, tal como a descreveu Sartre – mas é aqui que se desvela a inexistência, com a qual atingir-se-á doravante a realidade, em vez de atingi-la com alguma trêmula existência –, eu a reencontrei ainda há pouco.

Eu me encontrava em uma rua levemente curva, nos confins da cidade onde moro. E estranhamente havia ali, em lugar de alguma outra coisa que não poderia reter minha memória, havia, dizia eu, esta coisa, que não deveria haver. Havia uma larga vitrina debaixo de um letreiro muito novo, brilhante, imaculado, apoiado à parede; sobre esse letreiro, achava-se escrita em caracteres rígidos a palavra “PADARIA”. Podiam-se divisar, através da vitrina, alguns mostradores que possuíam certo ar de semelhança – e até mesmo, para ser honesto, uma similaridade muito franca – com aqueles que são costumeiramente utilizados para expor bolos ou pastéis repugnantes, prateleiras, sem dúvida, colocadas ali para aumentar a confusão com lugares familiares, mas eu não era um crédulo. Quanto mais seu zelo era levado para além do crível, tanto menos enganado eu era; assim, plantada atrás desses fantasmas de prateleiras, levantava-se em posição expectante, perfeitamente imóvel, a padeira! – a padeira… e seu avental branco. E toda essa combinação, firme apesar de dispersa!, era ainda mais evanescente que aquela

falsa mansão
                                    de súbito
                                                      evaporada em brumas

de que fala Mallarmé, mais fugidia e mais impalpável que qualquer éter; por trás, ou nela, não sei, pois era como se aquela tela nebulosa, de tão sutil, se deixasse confundir com aquilo que já não cobria, como se fosse realmente tecida de lágrimas – terrível, o Nada.

Aturdido por tamanha estranheza, decidi entrar – e caminhei sobre o vazio. Já me sentia como alguém se sente, ou acredita se sentir ao despertar, em algum sonho muito vago em que não se olvida a sensação que o atravessou. Nessa nuvem que também era nuvem de nada, minha cabeça e meu corpo inteiro estavam como que selados, e mesmo o pensamento, que às vezes pode deslizar tão bem quanto uma lâmina de bronze, com um silvo claro, embora grave, e meu próprio pensamento era essa nuvem, esse gás que se propagava como se obedecesse à lei física dos gases ideais. Toda a matéria se havia fundido ou talvez estivesse sublimada, em todo caso estava como que anulada, desaparecendo. Por fim consegui, à força de vacilação, alcançar a tranquila padeira que exagerava seu papel impossível ao ponto de me perguntar, com música terrível de uma candura diabólica – pois o diabo sobressai nos ares cândidos – o que eu desejava. Eu não pude olhar ao redor, todo esse nada me cegou para além do suportável. Repentinamente me dei conta de que a única presença que poderia absorver minha visão, retê-la um pouco, em vez de refleti-la impermeavelmente, que a única ilhota de existência que poderia me salvar de todo esse colapso, para melhor dizer, desse colapso de tudo, era essa mulher, disfarçada de padeira, com seu rosto e seus braços, apenas eles emergindo do espúrio traje. Reconheci nela certo encanto espanhol que me perturbou um pouco, mas muito menos que todo esse nada no qual quase me afoguei! Enfim, um existente, em forma e em substância, também… um ser-aí que não se desvanece imediatamente em outra parte. Pensei: é impossível que essa mulher, que está à minha frente, em meio a todo esse Nada, a todo esse abismo rapidamente adornado como um simulacro de padaria, é impossível que ela acredite nesse cenário de papelão, nessa penosa pantomima – essa cena!, somos obrigados a atuá-la? Não… Direi a ela… Direi que há que parar tudo isso… “Senhora, sabemos perfeitamente, não sabemos?, que tudo isso não é mais que uma chantagem absurda, que você não é uma padeira, que isto não é uma padaria, e que seria absurdo que eu fizesse as vezes de cliente… Já passamos da idade de brincar de mercado, falemos com franqueza e esqueçamos toda essa decoração horrível, que não engana ninguém… Ignoro como você se colocou nessa estranha situação, conte-me, de que se trata tudo isso?” Essa réplica, a única razoável, e que me preenchia o espírito nesse momento como uma evidência salvadora, não pude contudo dizê-la, pois todo o meu ser, então nebuloso, era incapaz de responder praticamente à semelhante injunção da Razão, mesmo quando um homem apareceu atrás dela, grotescamente disfarçado como padeiro, fazendo-me temer que essa peça de teatro ruim se transformasse em vaudeville, desfecho de uma insolência que já havia durado demais. Eu então balbuciei, absurdo!, a petição imotivada de um número perfeitamente aleatório de baguetes, deixando para mais tarde a elucidação desse assunto. Ainda incrédulo, agora quase me entregando por completo ao jogo, por algum vício que me era desconhecido, deixei cair algumas moedas – para ver se essa cena patafísica estava deveras decidida a seguir seu curso. Assim sucedeu, e lamentei um pouco minha mentira, já que, afinal, eu queria a verdade, não pães. Saí então, atordoado e sonhador depois de tal evento. Fizeram-me notar, ao meu regresso, que o número de baguetes que eu havia comprado (eu mal imaginava que aquilo que estava se desenrolando naquele instante tivesse sequer um nome) era singularmente inadequado. Narrei minha aventura, e então, como não conseguia me fazer entender, solitário, refleti.

Aquilo que eu havia experimentado lá era verdadeiro, disso não cabia duvidar. Essa experiência revelou de maneira brutal a irrealidade desse mundo, a abstração realizada que é o Espetáculo. Toda a dimensão metafísica – portanto total e plena até a esfera do existencial – desse conceito me havia aparecido claramente nesse modo de revelação privada, e que apenas pode se mostrar como aquilo que de fato é, isto é, como algo realmente estranho, colocando um problema, e finalmente cuja própria essência é a estranheza absoluta, na medida que é vivida como experiência, como fenômeno. O hábito é o que faz olvidar o fenômeno enquanto fenômeno, ou seja, o suprassensível – devo ajuntar que a famosa afirmação de Hegel assume aí, ela também, uma concretude fulgurante, a potência de uma revelação? E no entanto, o hábito é precisamente o meio característico da metafísica mercantil, sua manifestação, que nunca manifesta mais que o apagamento de seu caráter de manifestação… É por isso que a notável intuição da Ausência revela também que está superada como tal, porque se apresenta como manifestação do olvido da manifestação enquanto tal, ou seja, como desvelamento do modo de desvelamento mercantil, como desvelamento do Espetáculo. Quando se dá a ver assim, a Ausência deixa de ser um espaço oco, uma pura ausência. É uma afirmação positiva do Mundo sobre si mesmo. É precisamente o retorno de toda realidade, assim como a possibilidade de sua reapropriação. Esse remoinho de paradoxos revelou o quanto minha experiência era metafísico-crítica. Eu pensei também em sensações similares, e tencionei fazer uma classificação quase zoológica das diversas texturas que o fenômeno pôde manifestar, desde a melancolia meio vaporosa, meio líquida, até esse outro estado em que tudo está, ao contrário, marcado com o selo de uma concretude tão massiva que é surpreendente (e a realidade é nesse momento sensivelmente muito concreta para não se revelar ainda como, de fato, abstrata até o delírio). Todas essas experiências mágico-circunstanciais são evidentemente inacessíveis ao Bloom que ignora a solidão, como é amiúde o caso. Nossos contemporâneos, a maioria deles, habitualmente evitam tais percepções não solicitadas do Nada, que é também seu nada, nosso nada de Bloom!, e que os aterrorizam, esmagando-as umas contra as outras em amontoados sórdidos que às vezes se atrevem até mesmo a chamar de amizade, essa grande palavra poderosa que os piores calhordas já não temem pisar com seus pés imundos, quando declaram, de modo não menos que saem juntos. Há também alguns aparelhos que oferecem tal serviço de esquecimento, de maneira equivalente a essa falaciosa proximidade: televisão, walkman, aparelho de som ou rádio ligado “para fazer um fundo sonoro”, etc. Enfim, quando apesar de tudo aparece esse Diabo que é a metafísica crítica, não obstante todas as precauções do Bloom, este último pode ainda tentar uma derradeira falsificação, mediante o uso tranquilizador de uma palavra desprovida de sentido, inventada ou recuperada para casos congêneres: estresse, fadiga; nos casos em que o Diabo entra até mesmo pela janela, depressão, ou enfim, se o Bloom em questão proclama o New-Age-ismo ou algum outro desses ismos que são tão bem acolhidos pelos jovens, ele poderá, em vez de negar diretamente esse fenômeno como fenômeno, exteriorizá-lo e colocá-lo em equivalência geral no mercado do psicodelismo, enquanto experiência puramente subjetiva[1], isto é, transformá-lo em má substancialidade, qualificando-o apenas como alucinação. Não se faz mister dizer que essa breve lista de entretenimentos é em larga medida não-exaustiva.

Todas essas atitudes esboçam negativamente um terreno, que é preciso determinar ainda mais e positivamente, e que seria aquele de uma atitude metafísico-crítica. Se a olhamos mais perto, esta aparece como um tipo de unidade entre, por um lado, a prática de uma dialética conceitualmente potente, e, por outro, certa atenção existencialista, certo deixar-ser, também. Essas duas aproximações, longe de serem inconciliáveis, se encarnam, unidas, naquele que sabe conceber e sentir o devir, que sabe o pensamento como ciência no sentido em que Hegel a entendia, que sabe a determinação da Figura, ao mesmo tempo que é bastante atento para deter-se sobre certos momentos, antes de sua supressão, até esgotar seu conteúdo, até neles imergir-se de todo (os surrealistas já haviam experimentado isso, mas explicitaram-no de outra maneira – compare-se com a súmula da atitude surrealista feita por André Breton em L'Amour Fou). Trata-se de considerar o Olhar como experiência e, portanto, como certa tensão entre dois momentos consecutivos: o primeiro momento é a sensação do fenômeno; o segundo, seu desvelamento como fenômeno. Quando se lhe aponta a lua, o metafísico-crítico olha primeiro para a lua, depois para o dedo. O fenômeno se dá primeiro em si, depois para si, e o ser-para-si funda o ser-em-si. O Paráclito nunca chega imediatamente e está sempre já aí. Essa atitude metafísico-crítica, explosivo-fixa, essa mudança do olhar, que não é cega, por certo não se pode alcancá-la e conhecê-la como tal, senão por meio da partilha de todas essas sensações e sua análise, não importando que essas experiências, elas próprias, sejam ou devam ser vividas solitariamente. Daí essa rubrica de fenomenologia da vida cotidiana, que será permanente, até novo aviso.


[1]      Quanto a nós, longe de considerarmos tal experiência como simplesmente subjetiva, afirmamos, ao contrário, seu caráter objetivo e eminentemente político.

--> Texto publicado originalmente com o título Phénoménologie de la vie quotidienne, no primeiro volume da revista Tiqqun (França, 1999).  Tradução: Arlandson Oliveira.

Imagem: Francisco de Goya y Lucientes. Farinha do mesmo saco. 1799.

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