domingo, 15 de maio de 2016

"Acredito na ligação entre filosofia e poesia" - Entrevista com Giorgio Agamben



Giorgio Agamben escreveu um belíssimo livro. Seus livros são sempre densos e claros (e imprevisíveis, como o que dedicou recentemente a Pulcinella, publicado pela Nottetempo). Têm o olhar voltado para o passado remoto. É o único modo para intensificar o presente. Tomemos seu último trabalho Che cos’è la filosofia? (publicado pela Quodlibet) e nos perguntemos: o que esconde uma pergunta aparentemente tão óbvia? “É minha convicção”, diz Agamben, “que a filosofia não seja uma disciplina na qual seja possível definir o objeto e os confins (como tentou fazer Deleuze) ou, como acontece na universidade, pretender traçar a história linear e talvez progressiva. A filosofia não é uma substância, mas uma intensidade que pode de uma só vez animar qualquer âmbito: a arte, a religião, a economia, a poesia, o desejo, o amor e até mesmo o tédio. Assemelha-se mais a algo como o vento, ou as nuvens, ou uma tempestade: como estas, produz-se de improviso, agita, transforma e até mesmo destrói o lugar onde se produziu, mas, da mesma forma, imprevisivelmente passa e desaparece”.

Oferece uma imagem volátil da filosofia.

“Tenho o costume de dividir o âmbito da experiência em duas grandes categorias: de um lado, as substâncias e, do outro, a intensidade. De uma substância é possível desenhar os confins, definir os temas e o objeto, traçar a cartografia; a intensidade, pelo contrário, não tem lugar próprio.”

Pode ser verificada em qualquer lugar?

“A filosofia, o pensamento, é, nesse sentido, uma intensidade que pode se estender, animar e percorrer qualquer âmbito. Ela partilha tal característica tensiva com a política. Também a política é uma intensidade, também a política, de modo contrário ao que sustentam os cientistas políticos, não tem lugar próprio: como é evidente não apenas na história recente, tanto a religião, como a economia e até mesmo a estética podem, subitamente, adquirir uma decisiva intensidade política, tornar-se motivo de inimizade e de guerra. É óbvio que as intensidades são mais interessantes do que as substâncias. Se as substâncias e as disciplinas – como, no mais, a vida – permanecem inertes, se não alcançam certa intensidade, elas recaem na práticas burocráticas.”

Um antídoto para a recaída na prática burocrática pode ser a poesia. Com frequência você afirmou a ligação entre filosofia e poesia; isso que o próprio Heidegger colocou no centro de sua reflexão. Em que consiste tal ligação?

“Sempre pensei que filosofia e poesia não são duas substâncias separadas, mas duas intensidades que percorrem um único campo da linguagem em duas direções opostas: o puro sentido e o puro som. Não há poesia sem pensamento, assim como não há pensamento sem um momento poético. Nesse sentido, Hölderlin e Caproni são filósofos, assim como certas prosas de Platão ou de Benjamin são pura poesia. Se dividíssemos os dois campos de maneira drástica, eu mesmo não saberia de que lado me colocar.”

Na sua biografia intelectual há um diploma em Direito, mas com uma tese, certamente insólita, dedicada a Simone Weil. Como nasceu tal escolha?

“Descobri Simone Weil em Paris, em 1963 ou 64, comprando por acaso a primeira edição dos Cahiers na livraria Tschann, em Montparnasse. Fiquei tão deslumbrado com aquilo que, tão logo voltei para Roma, lia-os para Elsa Morante que por ela também foi conquistada. E imediatamente decidi que dedicaria ao pensamento político de Weil minha tese de láurea em filosofia do direito. Naquela época seu pensamento era quase desconhecido na Itália e sobre ela eu sabia muito mais do que os orientadores com quem deveria fazer minha tese.”

O que o tocou de seu pensamento?

“De modo particular a crítica das noções de pessoa e de direito que Weil desenvolve em La personne et le sacré.

Foi a partir dessa crítica que li o ensaio de Marcel Mauss sobre a noção de pessoa e para mim ficou claro o nexo que liga intimamente a pessoa jurídica e a máscara teatral e, em seguida, teológica do indivíduo moderno. Talvez a crítica do direito que jamais abandonei a partir do primeiro volume de Homo Sacer tem no ensaio de Weil sua primeira raiz.”

Uma outra raiz na construção de seu pensamento foi Walter Benjamin.

“Na vida há eventos e encontros que são demasiado grandes para poder acontecer de uma vez por todas. Estes, por assim dizer, não cessam de nos acompanhar. O encontro com Benjamin – como aquele com Heidegger em Le Thor – é desse tipo. Como os teólogos dizem que Deus continua a criar o mundo a cada instante, assim tais encontros estão sempre acontecendo. O débito que tenho com Benjamin é incalculável.”

Débito é uma palavra intensiva.

“Aqui basta acenar apenas para um problema de método. Foi ele que me ensinou a extrair à força de seu contexto histórico aparentemente remoto um determinado fenômeno para restituir-lhe vida e fazê-lo agir no presente. Sem isso, minhas incursões em campos tão diversos como a teologia e o direito, a política e a literatura, não teriam sido possíveis. Quando se frequenta tão intensamente um autor, fenômenos que parecem quase mágicos são produzidos, mas eles são apenas o fruto dessa intimidade. Assim aconteceu comigo quando reencontrei manuscritos de Benjamin: primeiro em Roma, na casa de um amigo seu de juventude, e, depois, na Biblioteca Nacional de Paris (os manuscritos do livro sobre Baudelaire nos quais Benjamin trabalhava nos últimos anos de vida)”.

Nos últimos anos acentuaram-se suas observações sobre a “biopolítica”. É um conceito que deve muito a Michel Foucault?

“Certamente. Mas tão importante quanto para mim foi o problema do método em Foucault, isto é, a arqueologia. Estou convencido de que, hoje, a única via de acesso ao presente seja a investigação do passado, a arqueologia. Sob condição de especificar, como o faz Foucault, que as pesquisas arqueológicas são apenas a sombra que a interrogação do presente projeta sobre o passado. Em meu caso, tal sombra é com frequência maior do que aquela que Foucault perseguia e reveste campos, como a teologia e o direito, que Foucault pouco frequentou. Os resultados de minhas pesquisas por certo poderão ser contestados, mas espero que ao menos as investigações puramente arqueológicas que desenvolvi em Estado de Exceção, O Reino e a Glória ou no livro sobre o juramento ajudem a compreender o tempo em que vivemos.”

Um outro pensador que ajudou a entender o tempo em que vivemos foi Guy Debord, com seu livro A Sociedade do espetáculo, um texto que ainda hoje nos ajuda a compreender nosso presente.

“Eu o li no mesmo ano de sua publicação, 1967. Me tornei amigo de Guy muito tempo depois, no fim dos anos oitenta. Mas lembro, tanto no momento da primeira leitura quanto em nossas conversas, da sensação de alívio ao ver como sua mente era absolutamente livre dos preconceitos ideológicos que comprometeram os destinos dos movimentos. Em 1968 e nos anos sucessivos os amigos dos movimentos de que participava se proclamavam sem dúvidas nem vergonha, e com uma absoluta abdicação da faculdade de pensar, “maoístas”, “trotskistas”, e assim por diante. Guy e eu chegamos à mesma lucidez: ele, a partir da tradição das vanguardas artísticas de que provinha, eu, pela poesia e pela filosofia.

Não obstante a afirmação que você cita, não penso que nele existisse algum conflito entre o filósofo e o estrategista. A filosofia implica sempre um problema de estratégia pois, mesmo se procura o eterno, só o pode fazer por meio de um confronto com seu tempo.”

Nos anos em que você viveu em Paris via com frequência Italo Calvino. Como foi a relação com ele, com suas geometrias iluminantes?

“Ao lado do nome de Calvino gostaria de colocar o de Claudio Rugafiori que, com Italo, sempre via naqueles anos porque trabalhávamos juntos em um projeto de uma revista que jamais viu a luz. A tentativa era de definir aquilo que entre nós chamávamos as “categorias italianas”: duplas de conceitos por meio dos quais procurávamos definir as estruturas fundamentais da cultura italiana: “arquitetura/vagueza”, “tragédia/comédia”, “rapidez/leveza”, esta última que se pode encontrar textualmente nas Lições americanas de Italo. Eu estava fascinado pelo modo como trabalhavam as mentes de Italo e de Claudio.”

O que o seduzia?

“O fato de que fossem duas formas de pensamento puramente analógico, que percebia semelhanças e correspondências onde ninguém saberia encontrar. A analogia é uma forma de conhecimento que nossa cultura lançou cada vez mais às margens. Creio que a ideia de um Calvino geométrico e cientista deve ser corrigida. Ele tinha, isso sim, era uma extraordinária forma de imaginação analógica, uma espécie de instinto fisionômico que lhe permitia redesenhar a cada vez a geografia do saber literário.”

No começo você acenou para sua amizade com Elsa Morante. Como foi a relação com uma mulher com um caráter tão complexo?

“O encontro e a amizade com Elsa para mim foram, em todos os sentidos, decisivos. Uma vez Calvino me disse que era possível frequentar Elsa somente no interior de um culto. Talvez fosse verdade, mas com a condição de especificar que o objeto do culto não era Elsa, mas aqueles deuses – de Rimbaud a Simone Weil, de Mozart a Spinoza – que ela reconhecia e amava partilhar com os amigos. Nisso Elsa era séria, selvagemente séria, e creio que tenha transmitido ao rapaz que eu era um pouco de sua intransigente paixão pela poesia e pela verdade. E desde então penso que não seja possível traçar confins claros entre a literatura e a filosofia.”

Sei que por meio de Morante você conheceu Pasolini. Aliás, você participou, com uma pequena mas bela ponta, de seu Evangelho. Que lembranças tem das experiências no set?

“Do Evangelho lembro da velocidade: Pasolini quase nunca repetia uma cena e cada um falava e se movia como bem entendia. Creio que isto dê a seu cinema a naturalidade que jamais pretende ser realística. A única longa pausa durante as filmagens foi culpa minha. Na Última Ceia vi diante de mim, sobre a mesa, enormes pães fermentados e tive de lembrar a Pier Paolo que para a páscoa judaica o pão tinha de ser ázimo.”

Você também fez menção às suas relações com Heidegger e aos seminários que frequentou em Le Thor em 1966 e 1968. O que para você restou daqueles encontros?

“O encontro com Heidegger, como aquele com Benjamin, jamais acabou. Em minha memória é inseparável da paisagem da Provence, então ainda não tocada pelo turismo. O seminário acontecia pela manhã, no jardim do pequeno hotel onde nos hospedávamos, mas, por vezes, em um cabana durante uma das numerosas excursões pelos prados circundantes. No primeiro ano estávamos em cinco no total; além do seminário havia as refeições em conjunto e eu aproveitava para fazer as perguntas que mais me interessavam a Heidegger: se havia lido Kafka, se conhecia Benjamin. Mas estas são apenas anedotas.”

Um dos principais aspectos de sua pesquisa foi a filologia. De que modo a praticou?

“A filologia sempre foi parte essencial de minha pesquisa. E não apenas porque me aconteceu de fazer trabalhos filológicos em sentido técnico – penso na reconstrução do livro de Benjamin sobre Baudelaire e na edição dos poemas póstumos de Caproni –, mas porque filologia e filosofia, amor pela própria palavra e amor pela verdade não podem de modo algum ser separados. A verdade permanece na língua e um filósofo que não tivesse cuidado com essa permanência seria um péssimo filósofo. Os filósofos, como os poetas, são, antes de tudo, os curadores da língua e essa é uma tarefa genuinamente política, sobretudo numa época, como é a nossa, que procura de todo modo confundir e falsificar o significado das palavras.”



Entrevista concedida a Antonio Gnoli e publicada dia 15/05/2016 no site “Diritti Globali”. Disponível em: http://www.dirittiglobali.it/2016/05/84776/ (tradução: Vinícius N. Honesko)

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