quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Estudo sobre a memória XII



Palavras deitam-se e destroem
páginas outrora agoniadas
à espera de vida.

Uma mistura de areia e mel,
ao fundo, paredes brancas
assoladas pela imagem de Mussolini.

Pediam-me abrigo as palavras
confundindo-me com as imagens
de um tempo já findo.

Copos plásticos, pão francês,
imberbe e ainda matreiro.
Mil novecentos e que?

Deixe-nos contar os dias,
as horas e os porquês,
diziam-me as palavras.

Uma kombi arrastava jogadores,
noites de fumaça e cartas.
Mil novecentos e que?

Onde havia agonia e branco
agora há a tolice das palavras
que roubam a cena.

Cartas aleatórias, quadros de Tiziano
e uma agradável voz nova
que já parece tão antiga.

Como marcar o branco,
matar Mussolini e ainda assim
dizer palavra?


Imagem: Kazimir Malevich. Branco sobre branco. 1918. 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A nostalgia não é suficiente, mas é um bom começo



Entrevista com Giorgio Agamben
Organizada por Valeria Montebello

Nesta entrevista, gentilmente concedida por Giorgio Agamben, discutem-se alguns dos temas mais caros a Pier Paolo Pasolini, seja do ponto de vista teorético, seja do ponto de vista pessoal. Agamben conhecia Pasolini e interpretou o papel de Filippo em O Evangelho segundo São Mateus. A conversa tem como centro a anarquia do poder, o desaparecimento dos vaga-lumes e a potência aristotélica, com a intenção de trazer à vida esses conceitos, evocando cenários. Das lembranças de Agamben do presente, através da instrumentalização da comida, da decadência das cidades, até o futuro, acenando a um novo modo de habitar e a uma política que possa estar à sua altura. (Valeria Montebello)

***

Valeria Montebello:
Pasolini foi um lúcido analista do Poder que definia “sem rosto” e de sua congênita arbitrariedade. A propósito da origem anárquica que o diferencia – anarquia que, no fundo, também seria seu fim – e sua referência a “Saló ou os 120 dias de Sodoma”, no livro Nudez (“a única verdadeira anarquia é aquela do poder”), como se insere o ingovernável, “aquilo que está para além do governo e até mesmo da anarquia”? Podemos pensá-lo, antes, como uma forma de resistência, de princípio, em vez que de reação?

Giorgio Agamben:
O poder se constitui capturando em seu interior a anarquia, na forma do caos e da guerra de todos contra todos. Por isso, a anarquia é algo que se torna pensável somente se conseguimos, em primeiro lugar, expor e destituir a anarquia do poder. Klee, em suas aulas, diferencia o verdadeiro caos, princípio genético do mundo, do caos como antítese da ordem. No mesmo sentido, penso que se deva diferenciar a verdadeira anarquia, princípio genético da política, da anarquia como simples antítese da arché (em seu duplo significado de “princípio” e “comando”). Mas, em todo caso, ela é algo que se tornará acessível apenas quando uma potência destituinte tiver desativado os dispositivos do poder e tiver libertado a anarquia que eles capturaram.

Montebello:
Micciché,[1] anos atrás, propunha ler a “Trilogia da vida” com “Saló”, incorporando os últimos filmes numa “Tetralogia da morte”. De fato, o último filme pode ser visto também como a mescla entre impulso sádico ao gozo e pulsão de morte, o imperativo do gozo como forma de destruição da vida?

Agamben:
Diria que num certo momento Pasolini talvez acreditasse poder aceder diretamente à anarquia. “Saló” é certamente uma representação da anarquia do poder, mas uma representação desesperada, que não procura arrancar a anarquia das mãos do poder, como se Pasolini não conseguisse mais distinguir a sua anarquia daquela dos quatro hierarcas malvados. De um modo mais geral, nos últimos anos ele parece querer ultrapassar a obra para chegar imediatamente aos seus fantasmas (“Por que fazer uma obra quando se pode sonhá-la”?). Acredito que isso não seja possível e que, como você sugere – embora não ame as categorias psicológicas –, essa tentativa possa coincidir com uma pulsão de morte.

Montebello:
Inicialmente “Saló” devia ser um filme sobre um industrial milanês, que colocasse a nu a mistificação da grande produção alimentar. Sobrevive mais de um eco disso na cena do filme em que o hierarca ordena ao jovem: “então, coma a merda”. O consumidor médio come merda, é consciente disso e continua a fazê-lo. O que você pensa da EXPO, em seu logo “Alimentar o planeta, energia para a vida” e em sua quase obrigatória tendência atual?

Agamben:
Sinto não sei se comiseração ou desprezo pela tentativa, atualmente em curso por parte de um grande punhado de miseráveis, de colocar a gastronomia, a moda e o espetáculo artístico-cultural (não a arte) no lugar da poesia, do pensamento e daquilo que resta de vida espiritual. Isso coincide, de resto – do momento em que as duas coisas caminham sempre juntas e os miseráveis também são sempre pagos – com o projeto por parte do capital internacional de transformar a Itália (que é aos poucos metodicamente vendida) num parque de férias e de passatempo gastronômico-cultural.

Montebello:
“Eu daria toda a Montedison por um vaga-lume”: o famoso desaparecimento dos vaga-lumes anunciado por Pasolini, por causa dos “refletores ferozes do poder”. Didi-Huberman fala de amizade “estrelar” entre Agamben – horizonte apocalíptico – e Pasolini – nostalgia – sob o signo do desespero do presente. Vem em minha mente a potência, o papel que tal conceito aristotélico tem em sua obra e sua possível resistência ao ato. A transparência pode acolher a luz ou permanecer em sua escuridão. Assim, parecem delinear-se vários níveis de visibilidade: há um ser exposto à luz como algo de inevitável, ou se pode pensar numa forma de resistência, a dos vaga-lumes, como a dos peixes nos abismos de que fala Aristóteles em De anima, de algo que só pode estar sob a força das trevas. Poderíamos considerar a amizade “estrelar” entre Pasolini e Agamben sob o signo da resistência. Você também afirma, de fato, que não é necessário deixar-se “cegar pelas luzes do século”, os mesmos “refletores ferozes do poder” de Pasolini e, ainda em Nudez, você escreve que olhar para “a escuridão da época” e perceber nela “uma luz que, direcionada para nós, se distancia infinitamente de nós” é a tarefa de um pensamento crítico voltado à atualidade...

Agamben:
A resistência ao moderno em nome dos vaga-lumes se produziu não por acaso numa cultura, como a italiana, em que o desenvolvimento industrial chegou atrasado. Pasolini nasceu num país cuja população era composta em 70% de camponeses e na qual o fascismo havia procurado conciliar a industrialização com o controle social. Pode ocorrer, no entanto, que justamente uma situação aparentemente atrasada, malgrado suas contradições, passe a ser em certos aspectos mais avançada do que outras, que perderam toda capacidade de resistir. Mesmo Ivan Illich, ou seja, o mais profundo e coerente entre os críticos da modernidade, provinha de uma sociedade, num certo sentido, atrasada. Apesar disso eu me lembro de ter visto quando criança um rebanho de ovelhas que percorria todas as manhãs a Rua Flaminia até a Praça do Povo, para depois entrar na Villa Borghese; a minha infância coincidiu, ao contrário, com o início do processo frenético de industrialização e destruição que se deu depois da Segunda Guerra Mundial. Diferentemente de Pasolini e de Elsa Morante (que lhe era próxima), eu não podia criar ilusões sobre a sobrevivência daquilo que num certo tempo se chamava de povo ou de criaturas edênicas não contaminadas. Às vezes, pergunto-me o que teria dito Elsa e Pier Paolo se tivessem podido ver a transformação atual dos seres humanos e de suas relações por efeito dos celulares e, mais em geral, dos dispositivos fornidos de uma tela. Minha crítica do moderno é, por isso, menos impregnada de nostalgia e tomou necessariamente a forma de uma pesquisa arqueológica voltada a identificar no passado as causas e as razões do que aconteceu. Mas não acredito que seja por isso menos radical. Em questão, em todo caso, está a compreensão do presente.

Montebello:
A propósito da decadência das cidades e das periferias que se tornam os novos centros, falemos do Pigneto,[2] bairro muito caro a Pasolini, onde caminhava entre as pessoas “pobres e reais”. Estive há pouco tempo, à noite, em Necci,[3] um local que Pasolini frequentava e, realmente, seu rosto vem à tona por todos os lados, das fotos nas paredes aos broches de 1 EURO dentro de um velha máquina de venda de gomas de mascar. Sem que pudesse fazer nada, a nostalgia tomou conta de mim. Uma nostalgia de algo que jamais conheci, mas que talvez vivi sentindo os carinhos de minha avó – com suas sábias mãos ao reconhecer as ervas nos campos, ao desenredar os fios. Penso que uma certa nostalgia de retorno, de habitação, nos une; poder ser vista como um retorno a si mesmo, como algo que diz respeito a cada um tão intimamente e, exatamente por isso, não pode senão dizer respeito a todos?

Agamben:
Vivemos uma fase de extrema decadência da cidade, no sentido que os homens parecem ter perdido qualquer relação com o lugar em que vivem. É evidente que – como acontece em muitas cidades italianas – se a cidade se transforma num assim chamado ‘centro histórico’, que só deve servir ao consumo turístico e à diversão de fins de semana, ela não tem mais razão alguma de ser. A cidade era, antes de tudo, o lugar da vida política e, ao mesmo tempo, do habitar como prerrogativa humana. Tanto a política quanto a faculdade de habitar (e não simplesmente de se alojar) estão desaparecendo, graças também às iniciativas conjuntas dos capitalistas e dos arquitetos. A nostalgia não é suficiente. Seria necessária uma nova forma de vida que possa reencontrar, ao mesmo tempo, a capacidade de habitar e a vida política. É óbvio que tanto o habitar como a política deveriam ser pensados desde o início e redefinidos. Ugo di San Vittore[4] distinguia três modos de habitar: aquele pelo qual a pátria é doce, aquele pelo qual todo solo é pátria, e, o terceiro, aquele pelo qual o mundo todo é um exílio. É necessário inventar um quarto modo e, com este, uma política que esteja à sua altura.



Publicada em “Lo Sguardo: Rivista di Filosofia”, n. 19, 2015 (III), Roma: dossiê Pier Paolo Pasolini: resistenze, dissidenze, ibridazioni. ISSN: 2036-6558. Organizada por Luciano De Fiore e Antonio Lucci. Disponível em: http://www.losguardo.net/wp-content/uploads/2015/12/2015-19-Indice.pdf (Tradução de Davi Pessoa.)


[1] Lino Micciché (1934-2004), historiador e crítico de cinema italiano.

[2] Bairro de Roma, formado a partir de 1870. Durante a Segunda Guerra Mundial foi palco de manifestações populares antifascistas.

[3] Restaurante fundado em 1924; Pasolini o frequentava com frequência durante as filmagens de “Accattone”.

[4] Ugo di San Vittore (1096-1141), teólogo, filósofo e cardeal francês.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

As lembranças, por favor não.

Entrevista concedida a Roberto Andreotti e Federico De Melis

Há dois anos, em fevereiro, sequestramos Giorgio Agamben por um par de horas com a ideia de fazer com que ele esboçasse uma espécie de autobiografia intelectual por meio de fases e imagens e, hoje, a transcrevemos por ocasião da nova edição, pela Einaudi, de seu primeiro título: Stanze. La parola e il fantasma nella cultura occidentale, de 1977. A aposta foi constranger à temporalidade da lembrança – seja existencial, seja relativa a articulações do pensamento – um filósofo ‘morfológico’ por excelência como Agamben, o qual sempre preferiu pensar fora da cronologia, isto é, por categorias e paradigmas.

Essa forma mentis lhe permitiu agredir o momento presente permanecendo firmemente ancorado no estatuto do pensamento (distante, por isso, da prática do opinionismo difundida entre os filósofos) e produzir “imagens” cognoscitivas radicais e que se deslocam em relação às categorias políticas tradicionais, desde Auschwitz como monstrum da biopolítica até o estado de exceção que se faz a regra dos governos democráticos. Esses resultados surgem de uma permanente aposta de método sobre o eixo Benjamin-Warburg (eixo que já está, no mais, no primeiro livro) em que a filologia é sempre uma interrogação filosófica – como mostra sua pesquisa sobre a concepção paulina do tempo.



R.A.: Giorgio Agamben, a ideia seria descrever seu pensamento por meio de uma topografia existencial, os lugares da vida, digamos. Mas já essas duas palavras, “lugar” e “vida”, prestam-se a uma pequena preliminar metalinguística, não?

Agamben: Recentemente me diverti, com um scanner, colando juntos – coisa que se pode fazer com muita facilidade – mapas de várias cidades, compondo uma espécie de grande cidade em que um vicolo de Roma desemboca em uma praça de Paris, um boulevard parisiense acaba em uma pequena rua de Berlim, e assim por diante... Por que isso? Porque, para mim, o único modo interessante, ou mesmo possível, de pensar algo como uma biografia, ou uma relação com os lugares, entre a vida e os lugares, é a cartografia. Com frequência se ligam as biografias ao tempo, mas o tempo é muito íntimo e, desse modo, ligado à memória... para um desmemoriado como eu, prefiro o espaço, os lugares: portanto, projetar uma vida nessa grande cidade imaginária.



F.D.M.: Por isso a chave é sincrônica e espacial...

Agamben: Espacial. E por quê? Porque também, me parece, as cidades, agora em grande decadência, são o lugar onde esperamos nos encontrar e onde perdemos nossa vida. Parece-me que a forma da cidade seja a forma do nosso perder-se e do nosso possível reencontrar-se.



F.D.M.: E em que consiste, para o senhor, a decadência da Cidade?

Agamben: Parece-me evidente que nesta fase o capitalismo – que era ligado, na origem, ao nascimento de grandes cidades – coincida com o encerramento, com a decadência das cidades.



R.A: Roma e as grandes cidades italianas periodicamente colocam os automóveis para dormir: todos a pé. Talvez tenhamos chegado a um ponto extremo na crise da relação entre o caminhar e o ser invadidos pelos automóveis.

Agamben: Bem, sim, os automóveis são um dos motivos que contribuíram para a decadência das cidade, fazendo desaparecer a grande figura benjaminiana do flâneur, aquele passeia sem objetivos pela cidade. Ou mesmo um outro autor que me interessa muito, Debord, o situacionista: essa ideia da deriva, do deixar-se caminhar à deriva e sem objetivo pelas ruas da cidade, para seguir esse nosso dissipar, perder-se e eventualmente reencontrar-se. Mas a imagem mais verdadeira e concreta em que se faz própria uma cidade não é tanto a do passeio, a do vagar; mas é o mover-se nessa cidade nos momentos de revolta, na série alternada das fugas e dos ataques. A cidade se torna mais própria, a experiência da cidade é mais intensa, exatamente nesses momentos de revolta.



F.D.M.: Suspende-se o tempo, segundo uma leitura messiânica da revolta.

Agamben: Suspende-se o tempo e está-se absolutamente no espaço, mas também se está numa espécie de história absoluta, e a cidade, aí, torna-se própria. A cidade, o lugar onde sempre nos perdemos... por isso gosto de me extraviar nas cidades.



R.A.: Professor Agamben, agora gostaria de fazê-lo falar de Roma para exibir sua adolescência. O senhor nasceu em Roma, nela viveu a adolescência e, talvez, também uma parte da juventude. Talvez seja possível dizer que tenha sido Roma a dar início a sua “vocação”? E qual foi o dispositivo pelo qual o senhor, estando em Roma, começou a pensar em si mesmo e no seu futuro?

Agamben: Sim, Roma é a cidade da minha infância, da minha adolescência e, portanto, está ligada a certa opacidade. Creio, entretanto, que isso corresponda muito bem à estrutura de Roma, cidade tão imbuída de história que nos esquecemos que é histórica. De fato, com frequência se repete esse lugar comum da cidade eterna, como se Roma fosse uma cidade intemporal, a-histórica, quando, pelo contrário, é imbuída e feita de história mais do que qualquer outra cidade. Aliás, diria que a verdadeira imagem de Roma é a de uma cidade vertical...



R.A.: Por estratos.

Agamben: ...sim, porque uma igreja barroca tem debaixo de si, acessível, uma igreja românica, sob a igreja românica uma basílica paleo-cristã, e então se desce ainda mais e temos o mitreu romano... Essa é Roma. Mas, pelo contrário, Roma aparentemente é atemporal, parece não oferecer nada; e os acessos são secretos à verdadeira realidade de Roma. Desse modo, corresponde muito bem ao estado opaco da infância e da adolescência, quando se é tomado por essa coisa estranha que é o querer escrever...



R.A.: O que é o querer escrever?

Agamben: Se pensamos sobre isso, quem quer escrever não quer escrever esta obra, este romance, quer escrever em geral, que é a experiência mais insensata e estranha, mas, acredito, também a mais profunda. Muitos anos depois vi que na filosofia medieval a escritura é o modelo ou a imagem da potência, da possibilidade: a criança que aprende a escrever ou o escriba que já sabe escrever, que é senhor de sua potência. Creio que seja isto: no querer escrever, na realidade, há uma espécie de desejo e de experiência da possibilidade. Querer escrever significa querer tornar a vida possível.



F.D.M.: Assim, seu querer escrever, no início, não coincidia com um querer pensar?

Agamben: Sim, creio que no início tinha a forma “querer escrever”, deve ser um pouco assim para todo mundo. Mesmo depois sempre me interessei mais pelo antes e o depois da obra do que pela própria obra. É a dimensão do antes do querer escrever ou a do voltar, depois, à escritura.



R.A.:
Não terminará também o senhor, Deus o livre!, entre os pensadores que, num determinado ponto, escrevem romances, verdadeiro professor?

Agamben:
Não, da maneira mais absoluta: não. Entretanto, creio que uma verdadeira vocação, justamente porque ligada à possibilidade, tem uma experiência de poder algo, significa, antes de tudo, uma revogação de uma vocação precedente: isto é, começa-se a escrever porque se pensa querer ser poeta, e então se diz: mas não, mas não é isso que quero, gostaria de outra coisa, uma coisa mais importante, mais urgente; e se faz outra coisa, e de novo essa vocação é revogada, interrompida...



R.A: Mas é uma ideia um pouco neoplatônica?

Agamben: Na tradição se diz que Platão começou sendo poeta trágico, então ouviu a voz de Sócrates nas feiras e disse: não, não. Queimou as tragédias e... Parece-me que a filosofia seja sempre um pouco a revogação de uma vocação, o colocar em questão uma vocação.



R.A.: Não, eu falava, em sentido plotiniano, de algo que deve ser liberado – como dizer? – dos estratos acumulados: uma ideia, em poucas palavras, que é preciso libertar.

Agamben: Sim, significa também que o pensamento não pode ser uma disciplina, um âmbito, correspondente a uma vocação determinada. A filosofia, o pensamento são “intensidades” que podem percorrer qualquer âmbito: a poesia, a arte, a religião, o direito, a economia. Não existe uma especificidade da filosofia. Por isso a vocação da filosofia só tem a forma da mudança, do colocar em questão uma vocação.



F.D.M.: E essa afirmação já abre para sua experiência assistemática de método, multidisciplinar também, isto é, a tendência de integrar na experiência cultural. Um clímax seu é: Provença, 1966, onde o senhor, com 24 anos, assiste a seminários de Martin Heidegger, um pensador que provavelmente já conhecia, mas destinado a influenciar muito sua elaboração teórica. Vamos à Provença.

Agamben: Sim, vocês me obrigam a recordar... Sim, a experiência daquela estada na Provença por certo foi para mim muito determinante como encontro com a filosofia. Filosofia que ainda ali tinha uma forma, no entanto, de um lugar, isto é, de uma paisagem da Provença. Também a presença de René Char, o poeta francês, que Heidegger havia ido encontrar... Portanto, mais uma vez era uma constelação que se abria para mim, mais do que um seminário no qual teria aprendido coisas. Era mais interessante a experiência em si do que os conteúdos do seminário, para mim.



R.A.: Mas o que fazia Heidegger na Provença? Era mesmo ligado a Char?

Agamben:
De início havia ido para encontrar René Char e, como ele sempre trabalhava, decidiu fazer esse seminário: estávamos em cinco num pequeno hotel e o seminário acontecia ao ar livre, sob as árvores, algumas vezes passeando pelos campos encontrávamos uma clareira e aí sentávamos... era uma experiência muito extraordinária.



F.D.M.:
Muito grega...

Agamben: Muito grega, sim. Para mim, então, o encontro com Heidegger acontecia mais ou menos nos mesmos anos em que havia “encontrado” Walter Benjamin, e creio poder dizer que me serviram um como antídoto do outro. Creio que sempre, quando se tem uma forte relação com um autor ou com algo que amamos, que é é preciso também um antídoto. E os autores mais interessantes são aqueles que já contêm um antídoto contra os próprios venenos.



R.A.: E assim a seleção se faz mais estrita.

Agamben: Sim... é um colocar em constelação dois autores que eram muito críticos um relação ao outro e, provavelmente, um deles nem mesmo conhecia o outro (perguntei a Heidegger se já havia lido Benjamin e ele me disse que não): ainda que eles estivessem próximos em Friburgo nos mesmos anos, quando Benjamin era estudante.



F.D.M.: De que maneira Benjamin foi utilizado como antídoto de Heidegger?

Agamben: Em certo sentido, são o oposto, com esta experiência curiosa: tocam com frequência os mesmos problemas a partir distâncias remotas, e, por vezes, o mesmo termo. Existem termos que o jovem Benjamin usa que são os mesmos do pensamento tardio de Heidegger. São duas experiências, para mim, muito diferentes. Em geral, quando trabalho com autores que amo, a minha relação é um pouco guiada por essa lei... certa vez Feuerbach disse que em qualquer obra – obra de pensamento, de poesia, de arte – o elemento filosófico é a capacidade que essa obra tem de ser desenvolvida: o germe, o ponto não dito que pode ser desenvolvido, retomado. Sempre segui um pouco por esse fio. Com os autores que amo, mais do que os imitar, repetir, procurar encontrar um ponto em que podem ser desenvolvidos, levados, continuados.



F.D.M.: O que o senhor lembra das leituras de Heidegger no tempo dos seminários na Provença, isto é, a metade dos anos sessenta?

Agamben: Naquele momento era demasiado escassa e, na Itália, quase inexistente: em vão tentei traduzir obras de Heidegger para duas das editoras mais importantes, Einaudi e Adelphi: ambas refutaram. A recusa continuou na Einaudi mas a Adelphi, pelo contrário, muitos, muitos anos depois, publicou as obras de Heidegger.



R.A.: Cinco “provençais” em torno a Heidegger, portanto – e um era o senhor: qual era o objeto dessas aulas, desses seminários? Dessas conversas também, imagino...

Agamben: Ah, não, não, não era um verdadeiro seminário, com um tema preciso, isto é, a leitura de fragmentos de Heráclito, mas, de maneira muito livre, e me lembro de que haviam contínuas interrupções por parte de Jean Beaufret, esse simpaticíssimo aluno de Heidegger. E, por fim, a certa altura Heidegger disse: “Vocês constantemente me impediram de terminar meu seminário...”.



F.D.M.: E também a figura de Char costumava interromper?

Agamben: René Char não estava no seminário, mas com frequência íamos até sua casa para encontrá-lo; Heidegger lia textos, pedia-lhe explicações sobre a frase de Rimbaud: a poesia não ritmará mais a ação, será antes da ação.



R.A: No plano do pensamento, que traços deixou Heidegger em Agamben?

Agamben: É difícil responder porque mais que traços estão presenças: os textos que alguém continua a levar consigo... Para mim, tratava-se de compreender o que é a filosofia, simplesmente.



F.D.M.:
Como era Heidegger pessoalmente?

Agamben: Para mim dava a impressão de uma espécie de amabilíssimo camponês. Tinha 76 anos, mas era muito ativo, com olhos vivíssimos... Muitos anos depois, frequentando as Leituras bíblicas que Levinas fazia na sinagoga da Rue Michel-Ange, em Paris, acompanhei Levinas no caminho de casa e ele, que sabia que eu havia estado nos seminários de Le Thor, me fez a mesma pergunta que o senhor acaba de fazer: “Mas Heidegger... como é?”. E eu lhe dei a mesma resposta; Levinas, surpreso (havia sido aluno de Heidegger em 1934): “Eu me lembro dele completamente diferente. Era um homem duríssimo”. E então se fechou e disse: “Ah, mas no meio-tempo aconteceu a derrota da Alemanha!”.



F.D.M.: Agora gostaria de voltar ao problema da cidade moderna, ainda por meio de Benjamin e seu Paris. Capital do Século XIX: quais são – desse livro – as chaves de leitura mais operativas hoje?

Agamben: Benjamin também escreveu, para mim, as mais belas páginas sobre Nápoles.



R.A.:
Talvez depois de Croce.

Agamben: Não, para mim mais bonitas. A “cidade porosa”, diz... É óbvio que a relação de Benjamin com a ideia de cidade era diferente da nossa. Ele vivia um momento em que as grandes cidades europeias ainda eram cheias de vida, e então perseguia o modelo da grande cidade do século XIX, onde sempre procurava o que certa vez definiu “os trapos da história”: a imagem da cidade que Benjamin perseguia era feita com uma atenção minuciosa aos detalhes insignificantes, um pouco secundários, ínfimos, portanto, os trapos da história. E essas experiências aparentemente secundárias se tornam, pelo contrário, o paradigma para compreender uma cidade segundo seu modelo, porém, de conhecimento histórico, que era aquele sempre para estabelecer... obviamente, não lhe interessava de fato o passado como tal, e tampouco a nós interessa, a ele interessava o que chamava de uma “constelação” entre um momento do passado e o presente, o agora, o então. Todo seu modo de trabalhar é “realizar” essas constelações; entretanto, atenção: não se trata da ideia de que o passado deve lançar luz sobre o presente ou vice-versa. Não, era algo mais complexo: o objeto histório não mais no passado nem no presente, não está mais numa linha cronológica; está, ao contrário, numa relação paradoxal entre dois momentos. E essa é uma ideia, parece-me, muito bonita, que nos retira dos problemas da cronologia, do passado, do tornar-se especialista de uma época...



R.A.: No entanto, permanece em pé, imagino, o problema da percepção.

Agamben:
Sim, porque esse momento, que justamente não é mais um objeto, um ponto localizável no tempo, torna-se para Benjamin aquilo que ele chama “imagem”. Benjamin usa esse termo estranho – Bild, imagem, chama-a “imagem dialética”, para dizer isso que é o objeto do conhecimento. Assim, por exemplo, as “passagens” de Paris (lugar ao qual dedica tantas páginas) eram para ele uma imagem dialética, isto é, uma imagem que tinha a capacidade de operar essa constelação entre passado e presente; entretanto, ela própria, diz Benjamin, era uma “dialética imóvel”: imobilidade da imagem que se trata de apreender... Essa imagem dialética é – diz Benjamin – “carregada de tempo”. Creio que seja um olhar muito penetrante sobre as imagens; também me interesso muito pelas imagens, porque quando são tomadas em sua verdade acabam carregadas de tempo e de história. Isso vale também para a fotografia mais banal, a de um rosto, aquela que num instante apreende um passante, ou uma figura, ou um lugar. O que apreende uma fotografia? Apreende um quê de absolutamente temporal, algo que estava ali e que agora está aqui.



R.A.: Essa é também a ideia de Barthes.

Agamben:
...que seja também a ideia de Barthes, sim. Mas, traduzida em termos benjaminianos, o que significa? Que as imagens têm a ver com o tempo de maneira fundamental.



F.D.M.: Para Barthes com a morte, pelo contrário.

Agamben: Essa era a particular ótica de Barthes, e diria que para Benjamin não deveríamos nos exprimir assim, pois seria mais com a vida: se as imagens são carregadas de tempo, são algo vivo. Há uma vida das imagens. Isso vale para Benjamin, e vale para Warburg, e creio que exista uma importante corrente de todo o pensamento, também da arte, do século XX, que procura apreender a vida das imagens.



R.A.: Segundo essa ideia da dialética que precipita numa configuração, quais são suas “imagens” de Paris, cidade-chave de sua experiência intelectual?

Agamben:
A Paris que conheci nos primeiros anos, isto é, nos anos sessenta, ainda tinha muitas das coisas que Benjamin perseguia, isto é, quando menos se esperava, uma rua lateral conduzia ao século XIX. Creio que essa natureza temporal da cidade seja importantíssima. Uma vez, me lembro, Ingeborg Bachmann comparou a cidade a uma língua: também uma língua tem seu centro histórico, tem seu centro mais antigo, uma periferia mais nova... Queria dizer uma coisa óbvia, não?, que a língua que usamos como se fosse um quê de intemporal é a coisa mais histórica que existe. Nós repetimos com nossa boca sons e conceitos que remontam não só, eventualmente, à Roma Antiga, mas com frequência aos vaqueiros indo-europeus de dez mil anos atrás, quando chegaram à Europa... Portanto, com essa ideia de que a cidade e a língua são dois seres temporais, usando-as ou nelas estando, nos movemos no tempo... De fato, na Paris que conheci ainda havia isso: lembro de que havia uma rua que “era” o século XIX, intacta; com as lojas, as vitrines, as mesmas que Atget tinha fotografado mais de um século antes.



F.D.M.: São experiências de tipo epifânico, em Benjamin: isto é, a história se mostra.

Agamben: Sim, a história aparece justamente numa imagem. E tal imagem pode ser um objeto, um livro, mas também uma imagem em sentido técnico, uma fotografia. Para a Paris de agora creio que não seja possível mais dizer isso, depois das grandes destruições do período pompidouriano que apagaram Les Halles, para o qual fortemente colaboraram os arquitetos, que são grandes destruidores: os arquitetos são sempre grandes destruidores...



R.A.: Lançamos um grito de dor.

Agamben: Beaubourg, que agrada tanto, contribuiu para a destruição do mais belo e vivo bairro de Paris. Creio que agora seja muito mais difícil, por toda parte um pouco, mas é óbvio que tudo ainda pode sempre acontecer. Aquilo que muda se esconde no que permanece intacto; aquilo que permanece intacto se esconde no que muda.



R.A.: E então o senhor que estudou as Res gestae de Augusto, o que permanece da velha Ara Pacis nesta nova?

Agamben: A Ara Pacis era um objeto histórico já contido em algo, em um invólucro de época fascista: é o problema da assim chamada conservação do passado – que é bastante desastrosa. Ou ainda a ideia de restaurar os monumentos do passado: a ponte Sisto, que eu percorria cinco vezes por dia, permaneceu fechada por anos porque essa deliciosa ponte, que na forma de então era como uma do início do século XX, fins do XIX, foi restaurada sem nenhuma razão. Esses tipos de operações são o contrário de uma constelação benjaminiana, não há mais uma relação viva entre um momento do passado e um momento do presente; e um passado como tal é reconstruído, restaurado como era. Benjamin sempre critica a ideia do historicismo, de que se possa ter acesso a algo tal como era.



F.D.M.: A transformação da história em imagens, que opera Benjamin contra o historicismo e a ideia de cronologia, como deu forma então a seu método de trabalho?

Agamben: Creio que exista uma relação, também nesse sentido, muito forte. Benjamin, quando devia se autodefinir (existe uma troca de cartas muito dura com Adorno sobre o problema do método), com frequência se dizia “filólogo”. E é muito curioso entender o que ele queria compreender por filólogo: a filologia, para ele, é a reivindicação de uma relação quase material com os textos, com os objetos. E também eu... uma grande tentação que tive foi a de me tornar um filólogo: por sorte não me tornei, mas, em meu método, está muito presente essa relação com a materialidade de um passado. Entretanto, o bonito da filologia é que está presa na contradição, como dizíamos, por excelência: a filologia, por exemplo, ao propor a edição de um texto antigo, deveria restaurar o texto tal como era, mas, para fazer isso, deve recorrer a práticas como a conjectura, que são práticas quase adivinhatórias.



R.A.: Sim, de fato se chama divinatio.

Agamben:
Por isso o filólogo, na realidade, com frequência opera o paradoxo de “produzir” o documento do passado que deveria restaurar. Há uma proximidade forte, para mim, entre esse método filológico e um outro método, presente em Benjamin, mas também em Foucault – outro autor com quem, anos depois, tive uma relação muito forte –, e que creio que seja o método em relação ao qual quem quer que deseje trabalhar em pesquisas de ciências humanas, como fazemos nós, não pode deixar de referir-se: trabalhar por paradigmas. “Paradigma” é o termo grego para “exemplo” e significa simplesmente “um exemplo”. Tomemos o panóptico, que é um modelo arquitetônico concreto, possível de datar, em um livro escrito por Bentham em 1800 e poucos: portanto, é um fenômeno histórico particular, singular...



R.A.: Tinha uma finalidade judiciária, não?

Agamben: Sim, era o modelo dos cárceres, era um modelo de arquitetura carcerária em que um guarda podia ver uma miríade de prisioneiros...



F.D.M.:
Um edifício de controle social.

Agamben: De controle social. Porque é possível dizer que Foucault trabalha com os paradigmas? Porque, justamente, Foucault não usa o panóptico apenas como o tipo singular para indagar tal fenômeno histórico, mas como paradigma, como exemplo para compreender um conjunto muito mais amplo constituído por meio desse exemplo, desse paradigma; e que lhe serve, então, para entender a evolução das sociedades de controle, as sociedades disciplinares. Creio que todos os historiadores inteligentes trabalham assim. De fato, é possível dizer isso também de um livro como o de Kantorowicz sobre os dois corpos do rei. Os dois corpos do rei são um fenômeno específico que, entretanto, não está circunscrito a um ano, ou pode voltar no tempo...



R.A.: ... ele o aplica sobretudo às monarquias francesas e inglesas.

Agamben: ... francesas e inglesas. Se pensarem nisso, em nossa cultura acadêmica – na qual de todo falta uma reflexão epistemológica sobre o estatuto das disciplinas humanas –, quando um historiador quer ser sério, torna-se especialista de um século: “Eu sou um especialista do século XVIII!”, e não se dá conta ao dizer algo tão absurdo. No sentido que, na expressão “século XVIII”, o século é uma unidade de medida, não uma realidade; é uma unidade de medida muito recente, usada pela primeira vez no fim do século XVI pelos historiadores da Igreja – chamados, por isso, centuriadores, “secolarii” – e que só a partir da Revolução francesa toma o significado moderno, antes jamais o tivera...

Assim, ser especialista de um século significa ser o menos científico possível. Ao contrário, os contextos não-cronológicos, não-geográficos, como uma metáfora, um objeto, um paradigma, são muito mais sérios e interessantes.



R.A.:
Também o “estado de exceção” é um paradigma.

Agamben: Sim, no meu livro se vê justamente como o método por exemplos e paradigmas, sobre o qual falava antes, é também meu método. O “estado de exceção” é um instituto jurídico preciso que, na sua forma moderna, nasce com a Revolução Francesa. Mas, na realidade, mesmo se faço uma pequena história do estado de exceção, não sou um historiador e não o uso, portanto, como um objeto colocado cronologicamente, mas como um modelo para compreender a situação presente. E parti da constatação óbvia de que aquilo que na origem era uma medida excepcional, limitado no tempo e no espaço (o “estado de exceção”, para quem não o sabe, é a suspensão da lei para afrontar uma situação de emergência), a partir pelo menos da Segunda Guerra Mundial, de maneira sempre mais forte e evidente hoje, está se tornando um paradigma normal de governo nos estados democráticos em que vivemos.



R.A.: Por isso não falamos apenas dos regimes fascistas e nazistas, ou do “velho” estado de guerra.

Agamben: Sim, o regime nazista usou de forma potente o estado de exceção aplicando o artigo 48 da constituição de Weimar; todo o regime nazista desenrolou-se em estado de exceção, isto é, de suspensão das garantias pessoas, das liberdades civis etc.. Entretanto, não se trata, de fato, de uma prerrogativa dos estados totalitários, mas, pelo contrário, quando o vemos nascer com a revolução francesa, curiosamente o estado de exceção está ligado à tradição democrática, mesmo se democrática jacobina. E hoje não se entende a política americana se não se entender que o governo dos Estados Unidos quer impor um estado de exceção mundial, desta vez não mais localizado especificamente nos confins do próprio território, mas ‘móvel’, que se desloca de acordo com as ocasiões. Tal estado de exceção global, mundial, é a resposta a uma guerra civil mundial, o terrorismo, isto é, o interlocutor ideal do estado de exceção.



F.D.M.: O termo cronológico do estado de exceção, o senhor diz, é o fim da Segunda Guerra Mundial...

Agamben: Durante tanto a Primeira quanto a Segunda Guerra Mundial obviamente quase todos os estados beligerantes – e, é curioso, descobri também não beligerantes, como a Suíça – recorreram ao estado de exceção. Portanto, é nessas longas guerras que começa a se tornar um paradigma “normal”. A partir do fim da Segunda Guerra algumas características do estado de exceção, por exemplo, o que diz respeito ao direito internacional, permaneceram: desde então, nenhuma guerra é declarada – a da Coreia e a do Vietnã tampouco o foram –, assim não temos mais um estado de guerra segundo o direito internacional, no qual é possível distinguir os momentos em que uma guerra começa e termina, nem distinguir os militares dos civis... Como vocês sabem, desde o fim da Segunda Guerra nenhuma guerra é guerra: é guerra civil.



F.D.M.: Há uma continuidade em relação à vida civil.

Agamben: Exato. Do ponto de vista do direito, essas guerras não são guerras, mas guerras civis, ou operações de polícia.



R.A.: Do ponto de vista teórico jurídico, para o senhor, que papel tem o fundamentalismo islâmico no estado de exceção global?

Agamben: Antes de tudo, não há hoje país mais fundamentalista do que os Estados Unidos, que conseguiram transformar os conceitos da democracia em instrumento de pressão totalitária... Entre os dois, talvez, pseudo-adversários (que segundo a representação comum afrontam-se), nem um representa a tradição do Islã nem o outro a tradição da democracia ocidental. A primeira coisa que sempre seria preciso não esquecer é que o terrorismo é a figura ideal que corresponde a esse paradigma da exceção: porque o terrorista por definição é invisível. Por exemplo, vocês sabem que toda matéria relativa à investigação sobre as Torres Gêmeas foi declarada como não sendo das competências jurisdicionais e, portanto, é prerrogativa exclusiva dos serviços secretos americanos. Vocês confiariam em uma reconstituição feita apenas pelos serviços secretos, na qual nenhum juiz pôde colocar o dedo?



F.D.M.: Qual é o nexo entre estado de exceção que se torna forma de governo planetário e globalização da economia?

Agamben: Para dizer a verdade, no meu livro não há tal tema, porque quis fazer uma análise que dissesse respeito apenas ao Direito. Se pensamos em Foucault, ele quase sempre deixou intencionalmente de lado o exame do Direito: a ele interessavam mais os modos concretos em que aquelas que ele chamava as relações de poder se realizam nos corpos individuais. Para mim, parece que a pesquisa de Foucault é integrada com esse modelo do Direito, que, entre outras, no nosso tempo tem um estatuto muito curioso: de um lado, os únicos conceitos que circulam são de tipo jurídico, não existe mais nem uma ética nem uma política, são conceitos jurídicos travestidos de conceitos éticos ou políticos; no entanto, na realidade, a respeito do Direito ninguém tem competência, ninguém sabe mais nada, saiu da cultura comum. Assim, parecia-me urgente me ocupar dele. Eis por que em meu livro a economia não aparece, e, ainda, para ser sincero... se cada livro – como foi dito – é escrito para se aproximar, ou às vezes para fugir, de um centro que permanece escondido, em meu caso esse centro escondido é uma pergunta curiosa que diz respeito justamente à essência do Direito: se o estado de exceção torna-se um pouco o paradigma, o próprio centro do Direito, como a norma, o sistema jurídico do Ocidente, tem necessidade de ter essa relação com uma suspensão, com um vazio de lei, com um estado de anomia? Como nosso Direito contém em seu centro um espaço não jurídico, de suspensão?



R.A.: Não é um pouco como como as multidões para as marchas da máquina?

Agamben:
Ah, parece-me uma bela imagem! Sim, pareceria que essa máquina que é o sistema jurídico e político do Ocidente funciona com dois polos, que, entretanto, são articulados sobre essa zona indistinta, obscura, de indiferença, que é um lugar vazio: onde, no entanto, tudo pode acontecer, e esse vazio coloca em funcionamento a máquina, rege a máquina... Assim, a última pergunta, o centro secreto do livro, era mais vasta, dizia respeito quase à própria natureza de nosso sistema político e jurídico.



R.A.:
Um outro título chave seu, que teve várias edições, é Homo Sacer. Subtítulo é O poder soberano e a vida nua. Também aí o quadro é foucaultinano: quando é que a vida se torna a aposta em jogo da política?

Agamben: Sim, o termo é uma figura arcaica do Direito romano que designava um homem que era possível matar sem cometer delito (portanto, impunemente) e que, no entanto, não era possível sacrificar, matar nas formas prescritas, rituais. Portanto, verdadeiramente uma figura de indeterminação absoluta. (Uma espécie de figura absoluta poderia dizer-se também da vida no estado de exceção.) Mais uma vez não me interessava – mesmo se o quis fazer – procurar historicamente esse complexo problema da história do direito penal arcaico, mas encontrar um paradigma para entender a estrutura da política em que vivemos. E esse foi o resultado. Ali seguia a ideia foucaultiana de “biopolítica”: num certo ponto, com a modernidade, vemos que a vida, algo que estava fora dos cálculos e das miras do poder, a vida natural dos cidadãos e dos homens, torna-se uma das preocupações maiores dos cálculos e dos mecanismos do poder. Nós já estamos habituados com o fato do Estado se ocupar de nossa vida até mesmo nas minúcias: como fumamos, como comemos, como andamos de carro. Essa é uma novidade do Moderno... O que me ocorreu descobrir é que isso que para Foucault é a biopolítica – isto é, a política em que a vida está em jogo – é, na realidade, mais antigo, e, de algum modo, é a própria estrutura do sistema jurídico-político do Ocidente. Que sempre, desde o início, funda-se sobre essa curiosa figura do capturar algo: a vida, a vida natural que na Grécia clássica era algo exterior, que devia permanecer nos limites da casa, com os escravos, as mulheres, as crianças, a produção econômica... e, ao contrário, capturá-la na própria forma de sua exclusão. A pergunta era: mas como a política ocidental tem necessidade de excluir de si algo (no início, a vida) para fundar-se? Portanto, essa estrutura de fundação faz retroceder em muito o problema, e o que surge hoje é apenas o emergir a plena luz dessa estrutura escondida de inclusão da vida humana por meio de sua exclusão.



F.D.M: E o senhor vê essa inclusão forçada da vida na esfera do político figurada nos campos de concentração.

Agamben: Naturalmente aqui surgiram com frequência equívocos. O meu não é um juízo histórico nem sociológico, mas se trata, mais uma vez, de encontrar um arquétipo filosófico, e o Campo é o lugar da exceção: aqueles que entram no Campo o fazem apenas enquanto viventes; o judeu que entrava no campo de concentração era espoliado completamente de seu estatuto jurídico, até mesmo daquele resíduo de nacionalidade que lhes haviam deixado as leis de Nuremberg, de terceiro grau. No momento da entrada era totalmente desnacionalizado e, portanto, tornava-se uma pura figura daquilo que chamo “vida nua”, e a relação fundamental entre poder e vida nua emerge à luz do Campo. Pensemos naquilo que advém hoje em Guantanamo... a coisa mais curiosa é que os talibãs que ali se encontram não são acusados de nenhum delito de acordo com a lei americana e nem mesmo são prisioneiros de guerra; são, de acordo com a carta da instituição, a comando de Bush, que instituiu Guantanamo, detainee, “detentos”.



F.D.M.: Por isso são “vida nua”.

Agamben:
Não existem. Não têm nenhum estatuto jurídico e, portanto, qualquer coisa poderia ser possível, como nos campos alemães.



F.D.M.: Agamben, nessa última fase de seu pensamento o senhor está trabalhando sobre Aby Warburg, figura muito controversa mesmo na recepção. Gostaria de nos explicar qual é exatamente “seu” Warburg?

Agamben: Voltei a Warburg depois de muitos anos: tinha necessidade, creio, depois dessa inversão nos problemas de filosofia política... O trabalho mais recente que faço diz respeito exatamente ao que Warburg trabalhava nos últimos anos de sua vida, de 1924 a 29, isto é, o projeto do atlas por imagens (algo que muito me fascina) que ele chamava Mnemosyne, “memória”: um atlas da memória ocidental, em aparência; praticamente, trata-se de setenta e poucos painéis, grandes, recobertos de tela preta sobre a qual ele colocava, pregava, uma série de fotografias que podiam ser de obras de arte, mas também uma fotografia da publicidade, uma fotografia de uma camponesa pelas estradas do campo toscano etc.. O que queria fazer Warburg? A pergunta que me coloquei é compreender o enigma desse atlas – atlas que temos não materialmente, mas em sua reprodução fotográfica.



F.D.M.:
Incompleto, aliás.

Agamben:
Por certo incompleto, mas temos setenta tábuas com quase mil fotografias. Seguramente não era isso que depois, na realidade, foi “recolhido” pelos historiadores da arte: não era um repertório iconográfico da arte ocidental; para Warburg a história da arte interessava apenas como cifra de outra coisa. Essas imagens tampouco são imagens, em certo sentido. Poderiam também ser chamadas gestos, representam cada uma delas... o que? um gesto? Warburg diz: “cristais de memória” por meio dos quais se transmite a memória do Ocidente.



F.D.M.:
Pode ser comparado ao conceito de imagem de Benjamin?

Agamben: Certamente. No mais, Benjamin se interessava muito pelas primeiras pesquisas, então, de Warburg. Por que, de que são feitas essas imagens? Diria, mais uma vez, são carregadas de tempo, de história, são cristais... Algumas vezes Warburg usa a imagem da física de seu tempo, da técnica de seu tempo: “dinamograma”, são carregadas de energia elétrica... E receber essas imagens significa expor-se, lidar com essa carga de energia mnemônica (compreendendo a memória em um sentido muito vasto). E o artista, o estudioso, ou qualquer homem que se confronta com essas imagens, expõe-se a um risco – coloca em jogo si próprio – para reanimar essas imagens, que ali já estão como espectros. Warburg chamava esse álbum de “uma história de fantasmas e espectros para adultos, para verdadeiramente adultos”.



R.A.:
O atlas, assim como a Biblioteca, tem uma nível de variação muito forte do ponto de vista das aproximações sintáticas. Desestruturar e reestruturar, as ligações, as contiguidades.

Agamben: Sim, exato. E é muito difícil compreendê-los. Tomemos uma das figuras pelas quais Warburg tinha obsessão: a “ninfa florentina”, figura feminina em movimento que ele identifica pela primeira vez em um afresco de Ghirlandaio em Santa Maria Novella – assim sabemos o que é –, torna-se, porém, um paradigma, a Ninfa, que ele encontra desde a antiguidade até numa fotografia de publicidade de hoje, numa figura terrível – Judite, a cortadora de cabeça... Essa prancha, essa tábua, nós a temos (setenta e poucas fotografias...). Se perguntarmos: onde está a ninfa? Como a lemos de modo sintático? Não é possível designar, na realidade, um itinerário cronológico, como nos movemos dentros dessa prancha é impossível de compreender de pronto... A única coisa que é possível dizer é que nenhuma dessas fotografias é a original, o arquétipo, e nenhuma é uma cópia. A Ninfa é o conjunto dessas imagens, que, neste ponto, então, tornam-se fotogramas para um filme faltante. Nós devemos estar à altura de colocar em movimento esses setenta fotogramas, fazê-los se mover, dar vida às imagens. Esse era o objetivo literal de Warburg: dar vida às imagens. Ali estão imagens mortas.



F.D.M.: Por fim, São Paulo: o livro em questão é Il tempo che resta. Un commento alla Lettera ai romani. O que é “o tempo que resta”?

Agamben: Vocês me fazem voltar ao passado, aos livros do passado, aos livros assim como verdadeiramente eram...



R.A.: Mas São Paulo ainda está sentado aqui conosco.

F.D.M.: Não penso que se possa voltar ao passado: a propósito de São Paulo, então, efetivamente não.

Agamben: Antes dizia que me interessam mais o antes e o depois da obra: seria preciso situar esse meu livro entre um antes e um depois. Sempre gosto muitíssimo daquilo que dizia Vasari a respeito de Leonardo: “Leonardo por conhecimento da arte muitas obras começou e nenhuma terminou”. O fato de que o conhecimento da arte impede de terminar algo...



F.D.M.: É um modelo seu, imagino.

Agamben:
Não é um modelo, por favor! No entanto, em certo sentido, todas as obras são não-acabadas desde esse ponto de vista. Aqui, portanto, uma primeira questão (ao menos para mim foi assim) é perguntar-se, com Benjamin, se as obras do passado estão ali à disposição dos pesquisadores, que podem escolher esta ou aquela: não! Pelo contrário, cada uma delas contém um índice temporal que exige que elas sejam lidas naquele momento preciso. E, portanto, a inteligência do estudioso está em colher tal índice: as Cartas de Paulo exigem hoje ser lidas e relidas (não é um acaso que vários autores estejam voltando a esses textos). Talvez uma coisa que poderia dizer, a principal, é que Paulo me fez compreender de maneira diversa o problema do tempo histórico. O problema do “messiânico”, por exemplo, em Benjamin, compreendi apenas trabalhando sobre Paulo. Para Paulo o evento messiânico (que o interessava, a chegada do Messias) não é, como é comum pensar, apenas o fim, o ponto final do tempo, mas uma fórmula: “o tempo do fim”, o tempo que começa a acabar e se transforma qualitativamente. Nesse sentido, ainda seria possível dizer, com outra imagem, que o tempo messiânico, o tempo que resta, o único tempo em que vivemos, de que temos experiência real, é algo como o tempo que o tempo nos coloca para terminar. Que o fim está sempre em curso é uma verdadeira experiência política do tempo, e mesmo histórica, real, humana. Não é a cronológica, mas é viver o tempo sempre como tempo que resta, isto é, como esta parte do tempo que o tempo nos coloca para terminar, e na qual podemos apreender o tempo. E o fim não tem importância no momento do fim. O fim finda tantas vezes...



R.A.: E, de resto, é uma ideia profundamente cristã... Não por acaso tem esta expressão: “uma recapitulação vertiginosa”. Talvez é esta a imagem?

Agamben: Sim, porque para Paulo essa porção de tempo na realidade recapitula em si, contém em si – como uma verdadeira abreviação, um compêndio – toda a história. E toda a história passada encontra nessa nova experiência do tempo seu único sentido.



R.A.: Nesse livro sobre São Paulo havia também uma descoberta filológica. Estudando o manuscrito das teses de Benjamin sobre a filosofia da história, o senhor encontra essa citação escondida de São Paulo: “a potência se cumpre na fraqueza”, que está na segunda carta aos Coríntios.

Agamben: sim, para mim foi uma descoberta verdadeiramente muito emocionante. Havia lido esse texto infinitas vezes, mas jamais havia me dado conta de que é uma citação literal de Paulo e, portanto, quando no início das Teses benjaminianas temos a imagem de um homenzinho corcunda, escondido sob o tabuleiro – que é a teologia: a teologia pequena e feia que, no entanto, devemos usar na luta contra o inimigo –, esse anão corcunda, esse teólogo escondido, é Paulo. Foi uma descoberta muito decisiva, para mim, que me parece também ter provado com razões filológicas, mas que para os estudiosos de Benjamin não é fácil aceitar, por que há sempre essa ideia de que Benjamin está inscrito na tradição hebraica, e Paulo (quem sabe o porquê) não pertenceria à tradição hebraica. Enquanto Paulo é o hebraísmo mais puro e genuíno que alguém possa imaginar. Há esse corcunda que se move sob o texto das Teses... 
Entrevista publicada em 09/09/2006 no suplemento Alias, do periódico Il Manifesto (ano 9, n. 35), pp. 1-5. (Tradução: Vinícius N. Honesko)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Estudo sobre a memória XI


A D.H.

A vida imortal é inesquecível, esse é o sinal que nos permite reconhecê-la. É a vida que, sem monumento e sem lembrança, mesmo sem testemunho, deveria ser inesquecida. Não pode ser esquecida. Esta vida permanece, por assim dizer, sem recipiente nem forma, a imperecível. E dizer 'inesquecível' significa mais do que dizer que não podemos esquecê-la; é remeter a algo que está na essência do inesquecível mesmo, por meio do que ele é inesquecível. Até a falta de memória do príncipe durante sua doença posterior é símbolo do inesquecível de sua vida, pois ela está aparentemente mergulhada no abismo da rememoração de si, do qual não mais emergirá. - W. Benjamin.

Constituímos nossos modos, nossas formas de forjar relações, nosso estar no mundo, sobretudo a partir da profanidade que é o estar vivo. Antes de separarmos algo para os deuses (já mortos mas com os quais insistimos, às vezes mesmo cientes de seus corpos frios, em fabular relações), existe um tecido vivo de nosso uso, de uso profano, banal (e a tekné grega tem já nesses tecidos vitais uma espécie de protótipo). O escrúpulo que os sacerdotes, os fazedores do sagrado, tinham de ter para a construção da religio tem no aspecto profano de nossas "tecituras" sua origem, sua Ürsprung - e, atordoados pela percepção da morte, atordoados com o as dimensões quase infinitas do céu, criamos esse intocável que é o sagrado (Urano que será castrado por Zeus que, por sua vez, com Mnemosyne criará, como uma de suas filhas, Clio, a história). Todavia, a própria separação que cria o sagrado advém da profanidade que é nossa vida. Aos poucos vamos - tudo o que vive sobre este planeta -, em pequenos rituais profanos, formando isso a que damos o nome de memória. Estive, algumas horas atrás, sentado com meu tio, vítima do Alzheimer há 10 anos, e, nas poucas e confusas palavras que trocamos, meu pai tornava-se seu pai, seu pai tornava-se meu pai, e seus olhos estavam imersos nas obscuras águas do Lethe. Pareceu-me que ele já não habitava nenhuma profanidade ritual dos tecidos da vida. A segunda extemporânea de Nietzsche me veio à cabeça: toda ação requer, sim, esquecimento e é impossível sempre viver historicamente; mas a vida requer um tecido de memórias muito além de Mnemosyne ou de sua filha, Clio: vivemos e já não nos damos conta de que cumprimos nossos rituais profanos da memória no mais puro esquecimento. Este, porém, contrariamente aos olhos que me viam desde dentro do Lethe, é o que carregamos na "tecitura" de nossa vida, e que, em certo sentido, é o que Benjamin chamava de vida imortal (a vida inesquecível). O apagamento da possibilidade de forjar nossos modos (nossas técnicas) de estar no mundo, este algo terrível que acontece para nós (e o Alzheimer é mais uma de suas formas) quando nos aproximamos da morte, causa-nos o medo do infinito dos céus e a perpetuação dos escrúpulos rituais que separam nossa vida nas fabulações que entretemos com os sagrados. Tentamos, assim, fazer sagrado - e os sacerdos são os carregadores do sêmen de Zeus, e Clio é a honrosa glória de ser lembrado - e, com isso, talvez pensemos iludir a morte. Porém, a presença dessa ausência, do desaparecimento de nossa vida (e até mesmo a mais recôndita memória dos homens há de passar e nada mudará nesse vórtice enigmático a que, estupefatos, nomeamos universo), é uma constante presença dolorosa. Ainda há pouco, naquele sofá onde brincava quando criança, as palavras já não nomeavam ninguém: meu pai poderia ter o nome de meu avô, minha vó era minha mãe, minhas tias eram minhas irmãs. E aqueles olhos que me miravam desde as profundas águas do esquecimento eram, para mim, um irônico espelho a me lembrar daquilo que eu jamais posso lembrar mas que, num constante paradoxo, é de todo inesquecível: a profanidade de nossa vida.

Imagem: Aby Warburg. Atlas Mnemosyne (prancha 33). 1926