quinta-feira, 8 de junho de 2017

Caro Giulio, que tristeza essa Einaudi



A carta aberta de Giorgio Agamben, que aqui publicamos, contém um duríssimo ato de acusação face às vertentes atuais da editora Einaudi, e diz respeito principalmente a uma obra de mil páginas de Walter Benjamin intitulada “Baudelaire, um lírico na idade do capitalismo avançado”[1], até agora conhecida apenas parcialmente na França e na Alemanha. Dentre os mais conceituados estudiosos de Benjamin, Agamben foi o supervisor crítico da obra completa do filósofo publicada pela Einaudi. O primeiro volume, “Metafisica della gioventù”, veio à luz em 1982. Em 1986 é publicado o mastodôntico “Parigi capitale del XIX secolo” (mais de mil páginas). Em 1994 saiu “Ombre corte”, que reunia os escritos de Benjamin dos anos de 1928 e 1929. Agamben já havia falado sobre “misteriosos atrasos” em relação à obra-prima ensaística de Benjamin sobre Baudelaire, muito esperada entre os estudiosos, mesmo alemães. Atraso seguido pela troca de propriedade da Einaudi, depois de ter sido adquirida pela Mondadori. A obra, que havia sido entregue por Agamben à editora torinense em março de 1993, muitas vezes parecia que estava mesmo para sair, mas sempre patinava. Vittorio Bo, administrador representante da Einaudi, sempre foi muito tranquilizador: “A obra é muito complexa: não existem outras razões para o atraso da publicação”, é uma declaração sua para nosso jornal em junho deste ano (1996). Vittorio Bo prefere não responder, como diz Giulio Einaudi nas poucas linhas que nos enviou e que publicamos nesta mesma página. Eis o texto da carta aberta que Giorgio Agamben enviou a Giulio Einaudi.



Caro Giulio,

Ainda me lembro perfeitamente do dia em que, no distante 1981, você me confiou a organização da edição italiana das obras de Benjamin. Graças a Italo Calvino, eu há pouco começara a fazer parte do grupo de consultores da editora que se encontrava às quartas, na rua Umberto Biancamano n.1, e em cujas reuniões não raro encontrava Primo Levi, o próprio Italo, Franco Fortini, Cesare Cases e muitos outros amigos e intelectuais. Nasceram assim as Obras completas de W. Benjamin, que, juntos, queríamos que fossem novas em relação à edição alemã (dispostas como são em ordem cronológica e enriquecidas desde o primeiro volume por textos por mim encontrados) e que foram consideradas, por críticos estrangeiros, como um modelo de legibilidade e de rigor. Entre 1982 e 1986 saíram, um depois do outro, quatro volumes, aos quais se seguiram uma longa interrupção devido à crise financeira que afligiu a editora. Em 1991 retomei a organização a partir de uma obra de excepcional importância: a reconstrução e a publicação, em primeira edição mundial, do livro sobre Baudelaire no qual Benjamin havia trabalhado nos últimos anos de sua vida. De fato, encontrei em Paris um volume considerável de manuscritos benjaminianos que permitiam reconstruir, em seus particulares, uma obra da qual até então se conheciam apenas fragmentos sem ordem. O texto, em que trabalhava já há dois anos, foi entregue à editora em maio de 1992. Mas aqui começam as desventuras que motivam esta minha carta. Pouco depois que a editora passou à propriedade da Mondadori (isto é, ao grupo Fininvest) e a publicação da obra foi suspensa sem explicação. Pedi imediatamente meu afastamento da organização das obras de Benjamin e, graças também à sua intervenção pessoal, me foi assegurado que a obra seria recolocada na programação. Aceitei, assim, a organização de mais um volume das obras, “Ombre corte”, que saiu em 1994 e na qual se anunciava a publicação do livro sobre Baudelaire como volume XII das obras. Mas desde então as coisas não mudaram: a publicação do livro era constantemente postergada e a cada carta de protesto minha se seguiam vagas desculpas. Chegamos, assim, ao 20 de junho deste ano, quando, numa entrevista publicada no La Repubblica, respondendo a uma pergunta de Daria Galateria, tornei públicos meus temores. O conselheiro representante da Einaudi, ao ser interpelado por telefone por um redator do La Repubblica, declarou textualmente que a obra seria publicada o mais breve possível. Exatamente um mês depois recebo, ao contrário, uma carta do mesmo conselheiro representante em que me pedia para cortar e alterar substancialmente o livro (selecionar partes das seções individuais, de maneira a obter um livro com volume mais enxuto), porque de outro modo a obra não seria publicada pois podia prejudicar a reedição do precedente volume benjaminiano sobre Paris. Era como pedir para que um especialista em Dante encurtasse de modo substancial um manuscrito inteiramente novo da Comédia que ele acabara de encontrar para não prejudicar as precedentes edições. Diante da minha firme recusa de manipular o texto e de prosseguir na organização dos outros volumes enquanto o livro, já pronto, não fosse publicado, comunicaram-me que a editora havia decidido me retirar da organização das obras de Benjamin. Isto é, no mesmo momento em que a editora assumia para si a não leve responsabilidade de impedir ao público italiano a leitura da obra inédita de um nos maiores filósofos e escritores do século XX, ela se mostrava tão privada de escrúpulos a ponto de, por isso, retirar da organização das obras de Benjamin aquele que as havia idealizado e preparado seu planejamento. Caro Giulio, em verdade muito tempo se passou desde aquele distante 1981, e é talvez tempo para que ambos reconheçamos isso, mesmo se compreendo as razões que podem levar você a procurar defender a continuidade com o passado. Da minha parte, é com dor e pesar que comunico que não terei mais nada a ver, nem como autor nem como colaborador, com a editora que ainda leva seu nome e que tanta importância teve na história da cultura italiana do século XX, mas que, na verdade, hoje é apenas uma flor de papel na lapela de um império financeiro que cumpre uma ação nefasta e corrupta na cultura e na sociedade italiana.

Giorgio Agamben.



Caro Giorgio,

... Caro Giorgio, as razões técnicas, que eu compartilho, com base nas quais pensamos que não seja justo publicar o livro de Benjamin nos moldes como você propôs serão ilustradas para o leitor amanhã, nestas páginas, por Vittorio Bo. Aqui, deixe-me exprimir todo meu desgosto por sua presunção no que diz respeito às menções que faz a Mondadori e Fininvest, como se isso tivesse alguma coisa a ver com nossas decisões editoriais.

Giulio Einaudi.

 
Disponível em: http://ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/1996/11/13/caro-giulio-che-tristezza-questa-einaudi.html?refresh_ce (13/11/1996)


[1] N.T.: A obra somete foi publicada em 2012, depois que as obras de Benjamin entraram para o “domínio público”, pela Editora Neri Pozza. Cf. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Un poeta lirico nell’età del capitalismo avanzato. A cura di Giorgio Agamben, Barbara Chitussi, Clemens-Carl Härle. Macerata: Neri Pozza, 2012.

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