sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O arqueólogo e o historiador



A obra de Giorgio Agamben e de Patrick Boucheron se desenvolveram a uma boa distância uma da outra. O que há de comum entre o filósofo italiano e o historiador francês? Talvez justamente aquilo que parece separá-los: a língua – as línguas: o italiano e o francês que eles compartilham. Mas também o “terreno”, não exclusivo mas preferido, de uma Itália medieval e renascentista que eles percorrem. E sobretudo a importância que eles concedem à escrita e à variedade de seus regimes no exercício do pensamento. Há também, tanto em um como no outro, uma convicção que resume o termo foucaultiano arqueologia: é preciso interrogar as tradições da história caso se queira forjar conceitos para descrever o presente. E essa arqueologia, tanto Agamben como para Boucheron, é indissociável de uma inquietude política.

Critique tomou a iniciativa de lhes propor a entrada em um diálogo que prosseguiu por todo o outono de 2016. Essa entrevista, por questões e respostas, se desenrolou sem protocolo nem programa preestabelecido, sem fim previsto: ela foi interrompida (suspendida?) apenas pelo “fechamento” deste número especial. Ela não é a conclusão, mas a fermata[1].

Patrick BOUCHERON. – Na advertência de
O Uso dos Corpos, você explica como esse livro conclui e não conclui o grande empreendimento de Homo sacer. Pois uma tal pesquisa, você diz, “como toda obra de poesia e de pensamento, não pode ser concluída, mas apenas abandonada e, eventualmente, continuada por outros”. Nós devemos falar do abandono – e notadamente de suas implicações políticas. Mas detenhamo-nos inicialmente ao que você sugere como uma eventualidade: uma vez que você tem uma ideia tão elevada, quero dizer tão soberanamente poética, do ato de pensar, o que você pode esperar dos “outros” para inspirar, acompanhar e continuar sua obra?

Giorgio AGAMBEN. – Seria preciso subtrair de sua questão toda implicação psicológica, que estaria deslocada. Eu digo isso porque sempre me criticam por certo pessimismo – ou, o que dá no mesmo, por um exagero de otimismo. Não se trata também de esperança ou de seu contrário, pois se perdermos as esperanças nos outros – como nós estamos hoje totalmente autorizados a fazer – perdemos também as esperanças em si mesmos e caímos assim na psicologia.

De início, seria necessário precisar quem são os “outros”. Eles certamente não são a posteridade. Os outros, pelo contrário, eu os concebo num futuro anterior, quer dizer, como um passado no futuro ou um futuro no passado. Eles são, para retornar à sua questão, aqueles que serão tornados possíveis quando o trabalho arqueológico do pensamento tiver sido abandonado e não acabado. E esse passado futuro é o único presente que nós podemos alcançar, se é verdade – como é verdade – que toda história é sempre história contemporânea. Nesse sentido, os outros já estão aí, eles estão sempre a acontecer, mesmo se eles aí não estão e se aí jamais estiverem.

Para dizer de outro modo, os “outros” não proveem de uma necessidade – eles são da ordem daquilo que eu chamo uma exigência, eles são o que o pensamento exige, independentemente de sua existência factual. E a exigência é para mim a categoria filosófica por excelência. É em uma exigência desse gênero que deveria pensar Averróis quando dizia que a espécie humana exige que sempre haja um filósofo para se unir ao único intelecto separado.

Patrick Boucheron. – Um só filósofo, isso pode bastar, de fato diz Averróis: sempre haverá um filósofo no mundo. Mas, ao mesmo tempo, Averróis coloca o pensamento no exterior, quer dizer fora da interioridade do sujeito. Pouco importa então quem pensa, pouco importa quem sabe, o que importa é que se pense e que se saiba – e relativamente à espécie humana, tudo já é sabido. É essa a exigência da filosofia tal como você a concebe? Mas, nesse caso, como pode ela suportar uma forma de vida tão radicalmente anti-heroica? Dito de outro modo: de que maneira a sua escrita filosófica aceita a soberania do nome próprio?


Giorgio AGAMBEN. – Creio que seria necessário inverter a opinião atual que define o averroísmo pela separação entre os indivíduos e o pensamento. Parece-me, antes, que o verdadeiro problema de Averróis consiste em reunir o que ele separou, quer dizer o que ele chama de copulatio, a união íntima entre hic homo e o intelecto separado. A solução que ele dá é que o que torna possível a copulatio são os fantasmas que se encontram no indivíduo, isto é, a imaginação. Eu compartilho inteiramente dessa ideia. O que possibilita o pensamento é a imaginação, e a imaginação é aquilo que é mais próprio a cada homem. Dito de outro modo, o pensamento não pertence verdadeiramente ao indivíduo, mas por meio de seus fantasmas este pode se unir a ele e marcá-lo com algo como uma assinatura – com a condição de que os fantasmas desapareçam imediatamente no ato de pensamento.

Patrick BOUCHERON. – Retornemos a essa exigência, que faz, para Averróis, do sujeito o lugar suficiente e insuficiente do pensamento. Que consequência ela pode ter sobre nossa forma de vida? Eu penso no modo como você comenta, ainda em O Uso dos Corpos, a respeito do que dizia Guy Debord sobre a “clandestinidade da vida privada”: ela nos acompanha como um passageiro clandestino, quer dizer, de maneira separada e inseparável e, no entanto, você diz que é talvez nessa “presença homônima, indistinta, à sombra” que reside o segredo da política.

Giorgio AGAMBEN. – É em um de seus primeiros filmes que Guy evoca “essa clandestinidade da vida privada da qual sempre só possuímos documentos ínfimos”. É dessa demasiada íntima vida clandestina que Guy, como aliás toda a tradição política do Ocidente, não conseguiu dar conta. E, no entanto, a ideia de “situação construída” implicava a possibilidade de encontrar algo como o que ele chamava “a passagem ao Noroeste da geografia da verdadeira vida”. E se, em seus filmes como em seus livros, Guy volta à sua biografia, ao rosto de seus amigos e aos lugares onde morou, é, creio, porque ele sentia, de modo intuitivo, que era justamente aí que se ocultava o arcano da política, diante do qual toda biografia e toda política só poderia naufragar. O elemento político autêntico insiste na clandestinidade da vida privada, mas se a tentarmos agarrar ela nos deixa entre as mãos apenas o insípido e incomunicável cotidiano. Na verdade, era o significado político dessa clandestinidade – que Aristóteles havia ao mesmo tempo incluído e excluído da cidade – que eu desde o princípio tentei interrogar. Também eu procurava, à minha maneira, a passagem ao Noroeste na geografia da verdadeira vida.

Patrick BOUCHERON. – Falemos justamente de uma outra passagem, aquela que nos leva de uma investigação a outra. Como você trabalha? É sempre um livro que remete a um outro ou você se deixa levar por um filme, uma obra, uma conversa? Você sabe como chegam até você suas ideias e por que você se fecha repentinamente nesta ou naquela biblioteca – agora a literatura patrística, depois as regras franciscanas?

Giorgio AGAMBEN. – Em cada um dos livros que escrevi ou que abandonei há sempre um não dito que exige ser retomado e desenvolvido, como em toda vida há algo de não vivido que procura não tanto ser vivido, mas não ser esquecido. Mesmo se frequentemente não estou consciente disso, é isso, creio eu, que me obriga, como você diz, a me fechar – ou antes a me perder – nesta ou naquela pesquisa, nesta ou naquela biblioteca. É então do passado que vêm as ideias e é por isso que a investigação arqueológica é sempre duplicada por uma outra arqueologia, mais íntima e mais secreta.

Patrick BOUCHERON. – Essa outra arqueologia, “mais íntima e secreta” tem a ver com o ascetismo? Se a política da inoperosidade visa a essa deposição ou a essa destituição que você parece defender, a potência radicalizada em “potência de não” escava algo diferente de um pequeno refúgio de contemplação onde nós trabalhamos para nos tornarmos ingovernáveis?

Em outras palavras, o que quero perguntar é se você perdeu toda esperança política nas capacidades do instituído de nos assegurar uma vida coletiva desejável, uma vez abrandados ou debilitados os impulsos sempre relançados da energia instituinte? Eu penso evidentemente na democracia, mas não apenas.

Giorgio AGAMBEN. – Você toca numa questão – a da relação entre a instituição e a destituição na nossa sociedade – que decorre da própria constituição da cultura humana. Um bom exemplo é a linguagem. É algo essencialmente duplo, compartilhado, como nos dizem os linguistas, entre um ato espontâneo de discurso individual (é a “fala” de Saussure) e uma instituição muito complexa que se chama “língua”. À diferença da fala, esta não é algo de imediato, mas uma instituição, no sentido próprio do termo, constituída por meio de um trabalho secular de análise e reflexão. Ora, todo verdadeiro ato de linguagem resulta de uma dialética entre esses dois polos inseparáveis e heterogêneos: se o lado instituído se torna exorbitante, teremos frases estereotipadas e uma comunicação inerte.

Da mesma forma, creio que toda sociedade humana resulta de uma dialética entre um polo institucional e um polo que nós podemos chamar, por comodidade, destituinte ou não instituído (convém precisar que o polo instituído não coincide necessariamente com as instituições estatais). Se a dialética entre os dois polos permanece viva, a sociedade será viável; se, ao contrário, como ocorre hoje nas democracias pós-industriais, o polo instituído cresce e se tecniciza até sufocar o outro, a vida política se torna impossível.

Fica claro que não se trata de preservar um pequeno refúgio de contemplação, mas, ao contrário, de tornar possível a vida política. A contemplação de que você fala seria, nesse sentido, uma atividade política por excelência.

Patrick BOUCHERON. – Há um contraste na sua obra entre os trabalhos breves e incisivos (frequentemente decorrentes de conferências ou de seminários) e os seus livros arquitetados como tratados. Como você sente esse duplo regime de escrita? E no caso de Homo sacer, o que você espera da reunião em um só volume de diferentes livros cuja ordem de aparição não correspondia à sem dúvidas complexa numeração elaborada posteriormente? Trata-se de fato de uma reordenação ou de um meio de se criar outras surpresas, de percorrer diferentemente L´Aventure (para retomar o título de um pequeno livro recentemente traduzido em francês)?

Giorgio AGAMBEN. – É importante precisar que esses volumes não foram reunidos posteriormente; eles respondiam a uma concepção – ou, se você quiser, a uma “aventura” – que era presente desde o início. Quanto ao duplo regime de minha escrita, creio que há algo que é consubstancial à filosofia. A história da “forma” filosófica – ou da filosofia enquanto gênero literário – está ainda por ser feita. O caso de Platão é nesse sentido exemplar. No momento em que ele escolhe (inspirando-se em um gênero de prosa absolutamente menor, os mimos de Sófron) o diálogo como forma filosófica, Platão tinha atrás de si a tradição dos fisiólogos pré-socráticos, que escreviam, como Parmênides, poemas nos quais o autor não se colocava o problema da forma e tomava diretamente a palavra em primeira pessoa com o shifter “eu”. É contra isso que Sócrates, no Fédon, explica que não seria possível falar simplesmente da natureza, mas que era preciso antes de tudo “buscar nos discursos, nos logoi, a verdade dos entes”. Como dizia Kojève, a filosofia é esse discurso que, falando de algo, deve falar também do fato de que se está falando desse algo. É por isso que o diálogo se torna em Platão uma forma extremamente complicada, na qual com frequência alguém relata um diálogo que aconteceu antes, o que faz com que a forma dialógica se duplique em uma narrativa interna, que a interrompe e a subtrai à toda ficção teatral. Daí também a falsa lenda segundo a qual, ao lado dos diálogos exotéricos, destinados ao não-iniciado, teria havido na Academia escritos esotéricos, destinados aos alunos. Creio, ao contrário, que exotérico e esotérico, discurso sobre as coisas e discurso sobre a linguagem não cessam de se cruzar e de se separar na fala filosófica.

Patrick BOUCHERON. – A propósito dessa fala filosófica, volto à reedição em um só volume de
Homo sacer que permite atravessá-lo inteiramente a partir do index de nomes. O de Émile Benveniste, por exemplo, permite uma experiência de leitura singular. Percebo o quanto a reflexão (ou o devaneio) etimológico serve frequentemente de trampolim à sua argumentação – é também o caso, por exemplo, de O que é o comando? A arkhé das palavras é ao mesmo tempo começo e comando?

Giorgio AGAMBEN. – Desde o meu primeiro encontro com ela, no final dos anos 1960, a obra de Benveniste jamais cessou de me acompanhar. O que então me tocou especialmente é o momento em que Benveniste se torna cada vez mais consciente da insuficiência da semiologia saussuriana e radicaliza a oposição saussuriana entre “língua” e “fala” como fratura insuturável entre o semiótico e o semântico. A linguagem humana é dividida, nós o vimos, em dois planos inseparáveis e, ao mesmo tempo, incomunicáveis, e é essa ruptura que Benveniste procurou ultrapassar, sem o conseguir, nos últimos anos de sua vida. Há nele um enunciado incontornável sobre o qual eu não cessei de refletir: “O mundo do signo é fechado. Do signo à frase não há transição, nem por sintagmação, nem de outro modo. Um hiato os separa”. A filosofia foi para mim o esforço que consiste na superação dessa cisão, em encontrar para a língua uma voz e uma matéria.

Patrick BOUCHERON. – Os historiadores dos textos que você mobiliza em sua investigação filosófica (em particular a literatura patrística em O Reino e a Glória, as fontes litúrgicas em Opus dei ou as regras monásticas em Altíssima pobreza) com frequência se fascinam – e por vezes se irritam – com sua capacidade de atravessar a camada de interpretações acumuladas na literatura erudita para ir direto à fonte. Como você assimila isso? Por que você sempre deseja, em um momento, encontrar-se a sós com a fonte? Você acha que o trabalho de pesquisa poderia resultar do mesmo mistério da literatura, tal como você o evoca magnificamente em O Fogo e a Narrativa?

Giorgio AGAMBEN. – Você acaba de tocar em um ponto absolutamente decisivo, que concerne à significação que tem para mim o trabalho do filólogo. O título da obra prima de um grande filólogo italiano, Giorgio Pasquali, é nesse sentido instrutivo: História da tradição e crítica do texto. O acesso ao texto que queremos ler só nos é permitido pelo conhecimento crítico da tradição que o transmitiu até nós, e ele quase nunca é o original; esse texto é apenas o que nós podemos alcançar remontando a contrapelo a história de sua tradição. Daí para mim a lição política da filologia. O que ela nos mostra é que nós recebemos sem exceção nossa cultura – como aliás nossa língua – através de uma tradição histórica, que já está sempre mais ou menos conscientemente alterada e corrompida. O original não é o que o filólogo chama de arquétipo: à diferença deste, o original não se situa no passado, mas acontece no presente, no instante em que o filólogo se mede com a tradição num corpo a corpo que é necessariamente político e filosófico ao mesmo tempo. E é aqui que se insere o que eu gostaria de chamar, com Michel Foucault, de ponto de surgimento, que não coincide exatamente com a fonte que a tradição nos transmitiu. E é nesse ponto que o arqueólogo se separa do historiador, com o qual ele compartilhava até então o caminho e o método.



[1] N.T.: Fermata, também conhecida por Suspensão em italiano, significa parada. Trata-se do equivalente em português para a expressão “point d´orgue”, como se encontra na entrevista original. A expressão também remete às passagens mais intensas do diálogo que estão aqui relatadas. 

Fonte: « L’archéologue et l’historien. Dialogue avec Giorgio Agamben », Critique 2017/1 (n° 836-837), p. 164-171.
Artigo disponível em: http://www.cairn.info/revue-critique-2017-1-page-164.htm  
Tradução: Benjamin Brum Neto 
Revisão: Vinícius N. Honesko
Imagem: Ticiano. A punição de Marsias. 1570-76. National Museum, Kroměříž.

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